O casarão
O casarão, antes sede de uma fazenda, ocupava um dos lados da praça e era ladeado à esquerda por um jardim malcuidado onde, esporadicamente, se colhiam angélicas e dálias, flores da moda, além de rosas, invariavelmente doadas ou surrupiadas para enterros de anjos que, dizia-se, não podiam chegar aos céus sem flores. Ao lado direito, num pretenso pomar infestado de ervas daninhas, habitavam poucas fruteiras com aspecto esbranquiçado, muitos galhos secos, pontudos e escurecidos. As poucas frutas que chegavam ao estágio final de maturação eram raramente colhidas, seja pela competição faminta dos pássaros e insetos seja, pela rapinagem da meninada que pulava o muro baixo do quintal em busca de aventura.
O interior do casarão, bem conservado, contrastava com o aspecto de abandono da área externa. O acesso era feito por um corredor comprido e largo que se iniciava com uma pequena antessala separada do corredor principal por um vistoso portal de madeira trabalhada. No alto do portal um sino dourado, sempre polido e cintilante, era objeto de desejo da criançada para desespero resignado dos moradores. Margeando o corredor, quartos enormes com camas enfileiradas, similares a de internatos e quartéis, porém bem arrumados e limpos, eram ocupados por mobílias antigas e ao lado de cada cama sempre havia um criado mudo repleto de bibelôs - guardião de segredos jamais revelados - e uma lamparina de louça decorada para iluminar as noites sem energia elétrica. Ao final, chegava-se à sala de jantar com uma enorme mesa ao centro, rodeada por cadeiras altas e torneadas, tendo em um dos lados uma magnífica cristaleira que remetia a um passado áureo, mas com os espelhos já carcomidos pelo tempo. Chamava à atenção em todos os ambientes o piso vermelho brilhante, caprichosamente encerado que chegava até mesmo a refletir, como num espelho borrado, o vulto dos passantes.
Na sala de jantar encontramos a personagem maior do casarão: uma senhora muito bonita, cabelos brancos bem cuidados e presos em coque finalizado com pente tipo espanhola. Tinha uma elegância simples e natural e vestia, invariavelmente, preto com detalhes brancos - jamais usava peça colorida em respeito aos que se foram – Era prazeroso sentir sua presença no vai e vem suave da cadeira de balanço onde se instalava, todos os dias, sempre no final da tarde. Seu rosto exalava doçura no olhar, nos gestos calmos e na fala mansa, pausada e gentil. Estava sempre disposta a um sorriso, a um gesto de carinho, a uma palavra de conforto para quem quer que fosse, mas nos seus olhos se percebia um quê de nostalgia e de saudade da explosão de vida que existia ali no passado, naquela sala, nos corredores, em todos os cômodos da casa e nos quintais, hoje tão malcuidados. Parecia irreal; uma pintura a óleo encravada na cadeira de balanço ou, quem sabe, um delírio imposto pelo casarão.
Através do seu semblante era possível imaginar e sentir, como numa cena de filme, uma multidão de crianças correndo em disparada por entre os cômodos, rindo e gritando e o séquito de empregados preocupados em resolver as pendengas entre irmãos e com as previsíveis quedas no piso vermelho encerado. Também se enxergava o carinho excessivamente protetor e condescendente dos Pais, alheios a qualquer tipo de cobrança – deixe-os se divertir, costumavam dizer – Acreditavam, piamente que o amor e a dedicação superaria as adversidades vindouras. Apesar de toda leniência conheciam como ninguém as qualidades e os defeitos de cada um dos filhos e filhas, mas se isentavam de refletir sobre o futuro da sua ninhada e de se preocupar com o amanhã de tanta vida feliz, hoje. Só havia espaço para amar, amar, amar, cuidar, zelar, amparar e venerar a prole certos de que o amor, o afeto, a ternura e o apreço sentenciariam para o bem o destino de cada um deles.
O tempo passou e o vento de fim de tarde que entra pela janela aciona lentamente a cadeira de balanço fazendo-a ranger suavemente, acentuando mais ainda a soturnez da sala silenciosa e sem vida. Ela olha distraidamente para o naco do casarão que a janela permite ver e tenta descobrir paz e felicidade na face distante dos seus filhos. Insiste nos seus pensamentos e não consegue enxergar resquícios, que seja, da alegria do passado – perderam o viço, pensa - e se questiona sobre o peso do amor despejado sem restrições sobre sua prole. Sorri um riso triste e não se furta de enxergar na decadência do casarão a alegoria da sua vida e dos seus. Serenamente, reflete sobre a doação pura e simples do amor.