___________À Luz

 

 

Por volta da meia-noite, Donana acordou com as dores. Sacudiu com jeito o corpo de Afonso que ressonava ao lado na cama, entregue ao merecido repouso depois da canseira de um dia arando a terra debaixo de sol quente.

 

— Se avie, homi de Deus! Vá atrás de Sá Maria, tá na hora de nascer...

 

Num pulo, o marido se aprumou. Pegou o paletó na cabeceira da cama, calçou as botinas, indo ligeiro arrear o tordilho que dormia no descampado do curral. A prática naquelas horas era coisa de precisão. Em dois tempos, ele atravessou o corguinho, bateu à porta de Sá Maria que já esperava a visita fazia dias.

 

No catre de tábuas rústicas, Donana se esvaía em dores e suores. Afonso segurou-lhe as mãos geladas, a ver se lhe passava alguma coragem, e foi esperar na cozinha. Em silêncio, a mulher mordia a ponta do lençol de algodão grosso: tinha lá os seus pudores, não queria que os filhos lhe ouvissem os gemidos. Sá Maria era experiente, gritou pela bacia de água quente que esquentava no caldeirão de ferro à trempe do fogão a lenha.

 

Às duas da madrugada, Caetano deu o ar da graça. Ao primeiro choro, de mãos postas, Donana agradecia à Virgem Santíssima. Sá Maria ria um riso frouxo de puro alívio, enquanto enrolava o menino em panos quentes: mais uma vida no mundo trazida por suas mãos. Pegou a toalha alvejada no encosto da cadeira, enxugou os restos de suor que ainda banhavam o rosto de Donana.

 

— Foi dor demais, né, cumade?

 

— Deus é grande... Já esqueci.

 

Aquela era a trigésima vez que Donana esquecia a dor mais doída — e mais bonita — de sentir: a de ser mãe. Deus fosse louvado!

 

 

Tema: Esqueci (conto)