Maria

De imediato eu não entrei, parei na porta, minhas pernas relutaram, mas eu precisava. Comecei a sentir calor e frio, na verdade minhas vistas escureceram por um minuto ou mais, senti fraqueza, a boca seca, apoiei me no batente da porta, coloquei a chave e a empurrei, ela abriu rangendo como se fosse algo que estivesse se rasgando, uma engrenagem que se move, que busca o encaixe das peças.

Então, dei o primeiro passo. De fato, estava um pouco escuro, não enxerguei de imediato, mas foi acolhedor. A casa era velha para além das antigas lembranças, mas caprichosamente tudo estava no mesmo lugar da minha infância, porém com camadas extras de finas poeiras, as paredes e o chão amarelados comidos pelo tempo, juntamente com os móveis já mancos ou gastos. Ainda assim, pude sentir o cheiro do café coado, do bolo assado que quente eu comia e das comidas que minha mãe fazia. Das muitas vozes pelos cômodos que de repente inundavam a cozinha, e que agora ecoavam na minha cabeça, dançavam ao meu redor como ecos de um tempo precioso.

E tudo começou a surgir diante de meus olhos... eu vi uma menininha franzina, negra, de tranças no cabelo, com roupas surradas, pés descalços e de olhos voltados para o infinito. Essa criança sou eu com 5, talvez 6 anos, minha versão de pureza e inocência sentada no degrau da porta da cozinha que a pouco havia passado. Eu tremi! Senti meus olhos marejados de lágrimas, meu rosto quente e me permiti ficar ali, sem pensar em nada, apenas a me olhar, pois era um encontro do passado e o presente, e quando isso acontece não há palavras que consigam expressar tais sentimentos, apenas sentir.

Tive uma infância difícil e feliz. Difícil no sentido da “falta das coisas”. Você sabe o que isso quer dizer? Vamos por partes... falta significa ausência, e coisas, seria o que precisamos, por exemplo no dia a dia. Ou seja, tive uma infância que faltava comida. Sim, não tínhamos o que comer às vezes, e quando tínhamos faltava gás no botijão para cozinhar.

Para isso, era catar lenha e num fogão baixo improvisado com dois blocos em cada lateral e uma trempe queimada pelo fogo. A minha mãe passava uma mistura de cinza e água no fundo da panela, e a colocava naquele fogão de lenha.

Era assim, na chuva e no sol, minha mãe com o pano na cabeça, de cócoras sobre aquele fogão, foi que ela perdeu os dentes, pois a umidade e o calor não tiveram dó daquele rosto jovem que furtivamente se manchava de carvão e que os cabelos cheiravam à fumaça.

Lembro da minha mãe, como uma mulher bonita, mulata, cabelos negros e lisos, gorda e pequena, sendo de poucas palavras na frente dos outros, recatada, reservada, não era de ir aos vizinhos, não pedia emprestado, não queria muito, só queria. Tinha perdido o segundo filho poucos meses após o nascimento, era um menino, e dele não sei dizer muito, ela não gostava de tocar no assunto. Sempre trabalhou em casa de família, como se dizia na época, o que hoje equivale à doméstica ou diarista. Não tinha mais que a 1ª série, pois saíra da escola para trabalhar e passou a vida inteirinha trabalhando. Ela gostava de rir, beber e fumar, mas largou dessas coisas com o tempo e pelo próprio querer.

Eu e ela tínhamos uma conexão diferente, apanhava de cinto, chinelo e vara quase todos os dias, mas continuávamos próximas como mãe e filha tem que ser. Posso dizer, que minha mãe foi meu primeiro amor, e como toda criança, eu não queria que ela ficasse doente ou morresse, queria que ela fosse eterna, ou que eu morresse primeiro para não sentir a dor. Egoísmo? Não sei, talvez.

Lembro dela não se poupar para me dar algo diferente e “ser alguém na vida”, - como se dizia antigamente. Eu a vi por muitas vezes chegar em casa cansada, adoecida, fadigada do trabalho braçal, mas no outro dia, pegava cedo a sacola e a marmita, e ia estrada à dentro, era uma distância considerável, passar o dia inteiro de abaixada nos canteiros. E no final da tarde, pela mesma estrada voltava, trazendo na cabeça um feixe de lenha e na sacola a marmita vazia.

Ela foi mãe solteira, ainda muito jovem, e em um mundo que mulheres negras, grávidas e sozinhas tinham menos chances ainda, mas era essa a realidade. Ela não tinha ninguém que se importasse, sem pais, e os irmãos cada um seguindo sua vida com suas famílias não poderiam alimentar mais uma boca, boca essa que comeria por duas. Então, ela ficou ali e aqui, na casa de uma e outra patroa, para ter onde pôr a cabeça e a barriga à noite.

Minha mãe me contou uma vez, que quando ela sentiu que eu estava chegando, ela correu para pedir ajuda, e foi tudo muito rápido no hospital, ela era uma mulher forte, porém assustada, mas é difícil não ficar. Era uma tarde quente, bonita e de muito azul no céu, na sala da cesariana havia o obstetra, a enfermeira e um anestesista, minha mãe com os olhos cerrados, não me viu nascer, mas quando ela se recobrou e já no quarto, a primeira visita foi de um médico que disse que tudo correra bem, era uma menina e que eu não tinha chorado.

E foi assim por muitos anos, eu não chorava. Não me pergunte o porquê, mas eu trocava o choro pelos silêncios. Me refugiava no quarto por horas e ficava pensando... eu não entendia algumas coisas. E acho que nunca vou entender. Eu sentia um aperto no peito, uma pressão tão grande e forte que queimava, os meus olhos ficavam tentados, mas as lágrimas não desciam, eu tinha raiva daquilo, eu tinha medo, queria falar com alguém a respeito, mas o máximo que eu conseguia era me fechar. Vivi assim por anos, mas essa história fica para outro capítulo...

Ainda na cozinha, sentei em uma cadeira empoeirada, manca, e limpei a poeira da mesa à minha frente, o suficiente para apoiar o meu caderno sobre ela, eu não precisava de muito, por muitos anos não precisei, então acho que não seria agora o momento que iria precisar, pois tudo estava diante de mim, podia quase que tocar os personagens que sinuosamente se apresentavam a mim, aquela casa, aquela menina franzina e minha mãe de anos atrás. Era real, e eu não conseguia desviar os olhos, me parecia errado fazer isso, eu precisava ver.

Abri o caderno de folhas amassadas, era um caderno comum, desses que se compra na papelaria, mas esse era especial. Pois, nele eu escrevia meus poemas, meus sonhos e agora ia escrever a história que você está lendo. Mas antes, eu passei os dedos sobre as linhas escritas e pude sentir dor e alegria, uma mistura de sentimentos em palavras antigas, registradas através do tempo por uma menina franzina, uma jovem e agora uma mulher.

Eu sempre quis escrever, desde criança e isso não era uma opção, muitos me diziam para tentar, outros para desistir, mas eu não obedeci, e segui meu coração, minha vontade e meu desejo de ser feliz.

Queria falar do passado e do presente, deixar o caderno impregnado das coisas minhas, algumas ditas e outras não, e não seria fácil, ter que viajar no tempo às vezes tem um preço alto a se pagar, desenterrar fantasmas e mexer nas feridas, algumas ainda em fase de cicatrização, mas seria preciso nesse momento, porque eu queria fazer parte, pertencer, gritar e dizer:

- Estou viva!

Sim! Estava viva. Sobrevivi à fome, à condições difíceis para o ser humano, ia a pé para à escola, cortava por dentro do mato, correndo risco, era um atalho para não ter que andar muito mais, numa casa humilde, que o banheiro era do lado de fora, de chão de concreto, paredes sem reboco, a mãe com a 1ª série que lutava para me dar o estudo que não teve, que lavava roupa na casa de um de outro, que não teve medo e não olhou para trás, que cozinhava no fogão de lenha com a lenha que juntava pelo caminho, na volta do trabalho.

Peguei a caneta, e já com ela em riste para a debruçar na folha, ouvi um barulho. Era o som de um passo, pequeno, miúdo e abafado de sapatos gastos, solado fino. Minha imaginação e minha mente me pregavam uma peça? Mas arrepiei! Então, deixei escapar um suspiro e pensei em olhar para trás, porém tive medo. O que eu encontraria ali? Um fantasma, ou apenas o vento. Precisava olhar. Mas antes tive a sensação de conhecer aquele andar, e por um segundo, me veio às narinas o cheiro de um perfume tão conhecido, o meu coração acelerou e senti calor, meus olhos se inundaram e eu enfim chorei, assim, que uma mão frágil tocou meu ombro, a mão estava gelada, mas era familiar. Era a mão de minha mãe.

Não precisei me virar, ela simplesmente parou a minha frente, e eu pude a olhar. Me levantei e lentamente, eu a recolhi nos meus braços, a abracei. O seu corpo estava menor e senti os ossos mais salientes, mas foi quente e pensei ter passado muitos minutos ali, assim, abraçada a ela. Nossos corpos se sacudiam levemente no balançar dos soluços, entre as lágrimas que desciam sobre nossas faces e se misturavam, toquei naquele rosto suavemente e senti as rugas, as linhas profundas, e minha mãe me sorriu, e de repente eu voltei a ser criança...

Até hoje não sei o que a levou ali, na nossa antiga casa, e na mesma hora que eu estava lá. Nos sentamos à mesa, nas cadeiras empoeiradas e comidas pelo tempo, minha mãe viu o caderno a minha frente, não disse nada, mas entendeu tudo. E como num passe de mágica, o mundo girava a nosso favor, e eu comecei a escrever, segurando aquela mãozinha na minha mão que estava livre. E assim, ficamos por muitas horas, sentadas, segurando as mãos e as folhas sendo preenchidas numa rapidez, as palavras soltavam e caíam sobre a folha, e minha mãe me olhava e sorríamos.

Luciene dos Santos
Enviado por Luciene dos Santos em 14/08/2022
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