Solidão?
Ele acordou bem cedo, antes do sol. Seus olhos puderam ver apenas uma penumbra fabricada pela claridade dispersa pela iminência do amanhecer. Com o apoio de sua bengala, firmou o corpo sentado à beira da cama com colchão de palha, o barulho que seu corpo fazia ao mover-se era, para alguns, irritante, para outros, nostálgico. Com extrema dificuldade ele conseguiu esticar as pernas de modo a pôr-se de pé sobre a sandália de couro, que sua neta havia lhe trazido de Pernambuco. A passos bem suaves e nada ligeiros foi em direção ao banheiro, não sem antes parar em frente à janela. Janela essa que fica em frente ao nascer do sol durante o verão. Ao olhar, ele observou que uma beirada do sol, latejante, derramava seus feixes de luz para fora. Começava, assim, o dia. Voltou então a sua atenção aos passos vagarosos, forçando seus velhos músculos na manutenção do equilíbrio corporal, que pendia, ora pra frente, ora pra trás. Locomover-se em seu casebre era uma tarefa dispendiosa para alguém como ele. Embora as distâncias entre suas extremidades fossem irrisórias, ele ficava ofegante como um maratonista na linha de chegada. Cada passo era como uma jogada de xadrez e seu semblante pensativo como a de um jogador. Às vezes olhava ao redor, talvez procurando a origem de algum ruído, ou talvez na esperança de encontrar uma companhia. O certo era que ele dormia com a solidão e acordava sozinho. Pobre velho! Que sorte foi essa que lhe sobreveio? Após arrastar a sua sandália até a soleira do banheiro, encostou a bengala no canto, abriu a torneira, com as mãos juntas e com suas palmas viradas para cima, formando uma concha, deixou que as águas corressem sobre elas por um instante até que pôs o seu rosto nelas. Isso lhe rejuvenescia um pouco como uma chuva de verão num dia cansativo. Seus olhos, por um momento, pareciam ganhar vida e lhe sorria no espelho. Mas logo, quando abria a boca e via que não tinha dentes, seu brilho apagava. Um gargarejo com água fria e pronto, tá resolvido. Depois disso, com a mesma dificuldade de antes, se assentou na porcelana fria. Nessa hora é que os pensamentos afloram, devido à ociosidade, e as lembranças ocupam todo o cérebro, monopolizando as sinapses em seu benefício. É certo dizer que algumas dessas lembranças produzisse lágrimas involuntárias, ou seja, verdadeiras, mesmo não sendo ali, um lugar apropriado para isso. Depois de muito pensar e seu trabalho terminar, esticou seu braço e alcançou sua bengala que lhe deu apoio para levantar e se arrumar. Não demorou muito até que saísse de lá em direção à cozinha. Com os mesmos passos arrastados, produzindo som áspero causado pela fricção do couro com o piso queimado, ele caminhava com os olhos fixados na claridade do sol que já banhava o fogão à lenha, vermelho vivo, que estava adormecido à espera de trabalho. "A vida agitada não contempla a beleza como a tranquilidade". Era nisso que ele meditava, enquanto juntava gravetos para atiçar as primeiras chamas. Você deve estar agora imaginando aquelas mãos cheias de rugas e calejadas com pele grossa de um exímio trabalhador rural, pegando a lenha, a palha, acendendo o isqueiro e soprando a brasa na fornalha. Quanta lembrança isso lhe dá, não é verdade? Enquanto o fogo se alastra em meio a lenha e a palha, ele "corre" pra encher o caneco de água. O caneco é daqueles esmaltados, com desenhos de flores, herança de sua falecida esposa, e a água é da bica. Ela vem de uma nascente distante, encanada com bambu, límpida "que só cê veno"! É comum dizerem que água não tem gosto, mas posso dizer que essa tinha um sabor de pureza. E que privilégio desse velho poder bebê-la! Pois bem, o caneco já em cima da trempe começou a sentir a água borbulhar. O velhinho, então, ajeitou aquele paninho encardido, esticou sobre o mancebo e com uma colher encheu-o com o pó de café. O café, a propósito, era da última safra que ele trabalhou, que ele mesmo plantou, colheu, torrou e moeu. E agora, seu último processo, coá-lo-ia para só então, saboreá-lo. Que prazer que ele deve sentir! Uma satisfação sem tamanho. E o seu café é daqueles medrosos, que não gostam de andar só, veio acompanhado de uma broa, assada no mesmo fogão. Era tradição ter um forno conjugado ao fogão à lenha, além da serpentina para aquecer a água do chuveiro. Isso que eu chamo de eficiência! Sentou-se à mesa, feita de jacarandá, que tombou certa vez, quando ele ainda era rapaz. Tomou seu café prazeroso e comeu sua broa saborosa. Depois se levantou, em direção à sala, onde estava a sua TV, daquelas de tubo ainda, com carenagem de madeira, uma relíquia. Era, de certa forma, um milagre ainda funcionar! Ele gostava de ver um programa matinal, onde as pessoas conversavam entre si, era ali que se via integrado a uma comunidade, tinha a sensação de pertencimento e sentia-se acolhido e amado. Nesse dia, ele adormeceu em frente à TV, embora tivesse despertado a pouco. Ele nunca mais acordou. A televisão ficou ligada e ele sobre a poltrona por dias até que ninguém sentiu sua falta.