As crianças

E foram indo e indo sem saber exatamente onde iriam chegar; sequer desejavam qualquer coisa específica senão caminhar e ir vendo o que se apresentava diante de seus olhos famintos, enquanto sentiam os cabelos sacudindo com a brisa constante e irregular do vento, lançando partículas de sedimentos a dançar pelos ares em um redemoinho lânguido. Suas peles gotejavam de suor, banhadas pelo sol sem nuvens. Não cogitavam que o solo arenoso e poeirento onde pisavam era o cemitério de uma civilização milenar, que, por sua vez, se estabelecera sobre o jazigo de uma outra comunidade ainda mais antiga, quando o tempo ainda não era o tempo e o sol ainda não possuía nome, apenas desenhos e inscrições nas rochas.

Eles, alheios a quaisquer conquistas da humanidade sobre a natureza, desavisados a respeito da metalurgia e da agricultura, foram apenas caminhando pelas ruínas silenciosas sem suspeitar que um anfiteatro havia sido erguido e destruído debaixo de seus pés, e que um ensaio torto da democracia —que até hoje não bem compreendemos e operamos— dera-se ali. Apenas entretendo-se entre brincadeiras, sem desconfiar da empreitada mitológica que os precedeu, foi que agarraram a vida pelas presas com sua bocarra aberta, e dela riram com gosto, desobrigados da necessidade de planejar quaisquer movimentos, inconscientes de que o espírito de aventura que os propulsionava era o mesmo que fundara toda a história invisível sobre a qual eles agora pousavam.

Eles se dirigiram ao topo do degrau dos destroços da arquibancada que se projetava em direção ao restante do sítio, com seus compartimentos e repartições tombados pelas inúmeras guerras e levantes que ali se deram. E, do ponto mais alto dos resquícios do povoado, eles bradaram em uníssono, com todo o vigor de suas vozes ainda agudas de jovenzinhos, para testar a potência e o alcance de seus rugidos. O que se sucedeu foi um eco seco que deslizou pela planície. Era o mesmo eco do grito de homens mortos em batalhas disputando o controle de territórios de dinastias anteriores, o mesmo eco do grito de mulheres que pariam meninos e meninas iguaizinhos a eles no passado, envoltas em panos quentes, quando a medicina e o misticismo ainda eram saberes de mesma ordem. Os sons que eles produziram com suas gargantas dispostas são sons que se repetem infinitamente, porque ainda que os idiomas se distingam, os gritos humanos de celebração e de terror, estes sim, perpetuam-se através dos tempos.

Eles, com seus semblantes absortos e distraídos, não poderiam saber que sua vitalidade carregava a essência que movimenta a vida. Se eles por um momento desconfiassem que detinham essa preciosidade em suas pequenas mãos, e que o instinto aventureiro que traziam consigo fora desde sempre a força motriz do desenvolvimento da espécie humana, sentir-se-iam pressionados a desempenhar um papel que lhes pareceria incomensurável: o de conduzir o fio da existência em seus passos inadvertidos, deixando pegadinhas e rastros por onde andavam. A responsabilidade de reerguer os alicerces que fundavam o substrato social daquela localidade abandonada lhes pareceria exasperante; como poderiam eles tornar-se navegadores, comerciantes, escrivães? E ainda, como poderiam tornar-se patriarcas e matriarcas, chefes de estado? Como poderiam eles idealizarem e conceberem uma nova tecnologia? Tudo isso lhes atingiria como uma responsabilidade demasiado sufocante. Queriam apenas brincar de esconde-esconde sob os escombros que os encobriam...

Eles haviam nascido inadvertidamente inocentes e puros, e somente durante o transcorrer da vida e suas experiências é que compreenderiam que não viemos ao mundo soltos. Estamos fortemente vinculados à condição daqueles que nos precederam, aos recursos dos quais dispomos e as consequências das circunstâncias que nos acometeram. Estar no mundo é situar-se como parte dele, criando afetos e permanências com o que nos alenta e buscando modificar aquilo que nos causa sofrimento. Não seria, portanto, sem certa dor e estranheza que as fibras que os compoem se expandiriam, para que enfim atingissem a maturidade que lhes seria exigida frente aos desafios que se imporiam diante deles como quimeras.

Contudo, naquela tarde de sol, eles ainda eram meras crianças sem qualquer preocupação. No seu mundo de faz de conta, onde a história nada evoca e o futuro nada pesa, restava o presente. Restavam as ruínas e as raízes petrificadas do que outrora fora uma grande sebe verdejante, onde os imperadores que comandaram aquele império foram também um dia crianças como eles, que brincavam de esconde-esconde em uma tarde igualmente escaldante, da qual lembrariam-se para sempre...

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 03/08/2022
Reeditado em 10/08/2022
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