De uma noite recente
- Vinte e oito anos. Dez na putaria. E posso te dizer. O amor é uma farsa, meu bem. – Deu para ouvir uma voz meio afeminada e claramente embriagada falando do outro lado da cortina.
Botei os meus pés pra dentro do quarto e senti fumaça de incenso, cigarro e maconha me ardendo nos olhos. Eu não conseguia ver nada, dada a iluminação parcial, feita apenas por uma luz vermelha de um abajur.
- Você é muito pessimista, querido... O amor está por todos os lados. – Uma voz de mulher replicou.
- Você quer dizer... Sexo, tesão, desejo, luxúria... isso sim está por todos os lados. E muita conversa mole também... – O outro insistiu.
- Talvez porque você tenha procurado nos lugares errados. E insistido no erro até perder a esperança. Não dá pra achar pérolas longe do mar.
- Você fala essas coisas, mas tá no mesmo barco que eu. Um barco furado no meio de um mar de putaria.
- E quando foi que eu disse que não estava? É o meu karma nessa vida – A mulher falou sorrindo.
- Pois então eu devo ter pecado bem muito em outras vidas. Devo ter cheirado cocaína no cu de Maria Madalena, ou dançado Pole Dance na cruz de Cristo.
- Não acho que havia cocaína naquela época, meu bem. E se for pra você for ficar blasfemando aqui, eu me levanto e vou embora.
- Ai. Nunca imaginei que você tivesse esse tipo de sensibilidade religiosa.
- Por que não? Puta não pode ter religião?
- Pode ora. Mas coitado do padre que te confessa... ô trabalho difícil.
A mulher não respondeu e se levantou irritada. Aproveitei esse momento e atravessei a cortina.
- O que você quer? – A mulher perguntou quando me viu.
- Preciso que alguém abra a porta pra mim.
- Como assim? – Ela perguntou.
- Trancaram a porta. E todos os quartos estão ocupados, se é que você me entende.
- E o que eu tenho a ver com isso? – Ela perguntou, se aproximando para me olhar mais de perto.
- Não sei. Só que era o único quarto estava aberto.
- Para de torturar o menino, Amanda. Entrega logo a chave. – Falou o homem com voz afeminada.
A mulher virou de costas e foi até uma mesa de cabeceira. Pegou um molho de chave, passou por mim e andou em direção a sala.
Segui logo atrás. Tentando acompanhar o passo rápido dela.
Ela começou a testar várias chaves, até que verificou que nenhuma delas abria a porta.
- PUTA MERDA. – Ela gritou, quando uma delas ficou presa.
- O que foi?
- A minha cópia não está funcionando bem. Estou com medo de quebrar dentro da fechadura.
- Você mora aqui?
- Não... claro que não.
- Quem mora?
- Ninguém. Só alugaram pra essa festa.
- Ah. Entendi.
- Você vai ter que esperar outra pessoa pra te abrir.
- Tudo bem. Não tenho nada urgente pra fazer mesmo...
- E por que a pressa de ir embora?
- Só não estou me sentindo muito bem.
- Bebeu demais?
- Nada. Só não estou no clima pra uma festa desse tipo.
- Não tá no clima pra uma orgia? Então por que veio?
- Eu não sabia que tipo de festa era, até entrar.
- Surpresa ruim?
- Não exatamente... Só não tenho muita experiência com essas coisas.
Ela riu, e ajeitou o roupão de seda que cobria o corpo e se sentou num sofá no meio da sala.
- Você gosta de sexo? – Ela perguntou provocativamente
- Quem não gosta?
-Deve ter muita gente que não gosta por aí.
- Verdade. Mas eu sou do time que gosta bastante.
- Então você não transou hoje?
- Não...
- Nem eu. – Ela respondeu, catando um cigarro solto em cima de uma mesinha de centro.
- Quem estava no quarto com você?
- Stephan. Um amigo.
- Vocês pareceram estar discutindo.
- Normal. Quase sempre é assim. Assim como o amor, a amizade tem várias formas de se expressar.
Fiquei olhando enquanto ela fumava o cigarro, e me sentei no sofá que ficava bem de frente para ela.
- Conseguiu abrir a porta, cherrie? – Perguntou Stephan, saindo do quarto, enrolado num roupão vermelho, semelhante ao de Amanda.
Ele tinha quase 1.90. E aparentemente não usava nada por debaixo do roupão. Tinha uma barba com alguns fios grisalhos e o cabelo da mesma forma.
- Não. Ele está preso conosco até segunda ordem. – Ela respondeu ironicamente.
- Ah. Ele é até bonitinho. Não é de se desperdiçar.
Stephan veio andando e se sentou bem ao meu lado no sofá. Nas mãos ele tinha uma caixinha de madeira. Ele abriu e deu pra ver que havia um pedaço de uma cartela de LSD. Ele tirou um papelzinho, cortou no meio e botou debaixo da língua. Depois bebeu um gole de uma bebida que estava solta sobre a mesinha de centro.
- Vocês querem? – Perguntou.
- Não, obrigado. – Respondi.
Amanda estendeu a mão e pegou a metade que ele não tinha engolido e fez o mesmo processo que ele.
- Você nunca tomou um docinho, meu bem? – Ele perguntou, com uma mão sobre o meu joelho.
- Já... Algumas vezes. Já usei uns cogumelos também. É legal, mas essa fase já ficou no meu passado.
- Você fuma? Bebe?
- Não fumo. Bebo mais do que deveria, menos do que gostaria.
- Há... Acho que eu sou assim com sexo... - Ele disse, tentando me olhar nos olhos.
- Acho que ele não joga no seu time, Stephan. Deixa o menino em paz. – Amanda falou, soltando fumaça em nossa direção.
- Ah. Eu estava só testando. Vai que cola. – Stephan respondeu, com um sorriso malicioso.
- Não liga. Ele é atirado assim mesmo.
- Tudo bem. Não me incomodei. – Respondi.
- E qual o seu nome, moço? – Stephan perguntou, cruzando as pernas.
- Carlos.
- Você veio com quem?
- Vim com Cezzane. Mas ele deve estar bem ocupado agora.
- Com Cezzane? Aquela puta descarada? Nunca imaginei que um cara sério como você fosse ser amigo de uma pessoa tão explícita quanto ele.
- Eu não sou tão sério assim. Acho que só estou um pouco hoje.
- E o que aconteceu? – Ele perguntou, parecendo intrigado.
- Estou cansado de viver e reviver as mesmas coisas. Acho que estou um pouco desencantado.
- Decepção amorosa?
- Em parte sim.
- Stephan não acredita no amor. – Amanda falou cinicamente.
- Não acredito mesmo.
- O que você acha disso? – Amanda perguntou como se estivesse realmente interessada na minha opinião.
- Acho que é uma escolha triste. Mas quem sou eu pra julgar.
- Por quê triste? – Ela perguntou.
- Triste por que o amor é um motor para muitas coisas boas. Há quem escolha viver longe de qualquer sentimento real... do amor romântico. Mas na maioria das vezes essa escolha vem do medo ou da fuga.
- E do que você acha que eu tenho medo? ou do que estou fugindo. – Stephan me olhou, visivelmente contrariado.
- Talvez você tenha medo de ser você mesmo. Sem as máscaras. Sem as muralhas que construiu pra fugir de decepções. Eu não vou mentir... eu passei uma parte da minha vida me escondendo. Não do amor, mas de mim mesmo. Por que eu sou um otário. Eu sou o tipo de cara que ama cegamente. Fodam-se os resultados. Eu sempre estive pronto a me jogar em qualquer precipício, a escalar qualquer montanha... se fosse pra viver uma paixão... E eu já caí na real tantas vezes, só pra me ver sozinho, perdido, sem ter coragem de dar um passo sequer... Com a sensação de ter o estômago cheio de pedras, e não ter mais nenhuma lágrima pra chorar... Mas tudo passa, e então eu me vejo revivendo tudo de novo, com uma pessoa diferente, com uma história diferente, mas resultado semelhante... e no fim... parece um ciclo que nunca acaba.
Stephan ficou me encarando calado por um tempo. Depois enxugou uma lágrima que escorreu de um olho.
- Me desculpe se falei demais. – Murmurei.
- Não falou não. Foi o doce que bateu. – Ele respondeu, e esfregou os olhos tentando se recompor.
- Você não se sente meio masoquista por viver assim? – Ele perguntou, depois de alguns instantes de silêncio.
- Não. Masoquista eu seria se não me permitisse sentir as coisas que sinto. Acho que doeria mais do que quebrar a cara.
Stephan esvaziou o copo que tinha nas mãos e se levantou.
- Vou me deitar um pouco e curtir a brisa.
- Certo. Foi um prazer. – Respondi.
Ele deu um sorriso amarelo, concordou com a cabeça e foi até o quarto onde estava antes.
- Eu nunca o vi assim. – Amanda falou, depois de apagar o cigarro em cima da mesa.
- Assim como?
- Sentimental. Não faz o tipo dele.
- Acho que falei demais.
- Mas ele estava precisando ouvir algo do tipo... e eu também...
- Por que? – Perguntei intrigado.
Ela se levantou e se sentou no meu colo.
Ficamos nos olhando por vários segundos... Quase incontáveis.
Senti um arrepio quando ela pegou a minha mão e colocou ao redor do pescoço. Eu apertei um pouco e ela sorriu.
Mas o sorriso se dissolveu numa face séria, cheia de questões e de desejo. Não sei exatamente se ela me desejava naquele momento, ou se só queria fugir do tédio.
Acho que era algo que ficava no meio disso.
Amanda se aproximou e me beijou lentamente. Inicialmente eu senti um pouco do ácido na língua dela. Fui me perdendo no momento e na sensação. Até que ela me puxou e nos deitamos no sofá. Ficamos lado a lado, presos naquele beijo, até que ela parou, um pouco sem ar.
Eu não esperava me sentir algo tão intenso com uma completa desconhecida. Mas ao mesmo tempo, tive a sensação de que eu já tinha visto em algum lugar. Talvez em alguma outra vida, ou num sonho que me voltava como algum tipo de deja-vu.
Amanda se levantou e me puxou para um dos banheiros da casa.
Trancou a porta atrás de si e botou uma banheira pra encher.
Havia várias toalhas dentro do armário. Várias. Para o corpo, para a cabeça, para os pés.
Água quente, perfumes, óleos de banho.
Uma infinidade de coisas que ela parecia conhecer a dedo.
Ela misturou alguma coisa na água, se despiu e entrou.
Eu fui logo depois. Pronto para me afogar, pronto para desaparecer dentro dela.
Dentro da noite. Dentro de mim mesmo. Firme na certeza,
que enfim, era possível,
que eu fosse me perder mais uma vez,
antes mesmo de me encontrar.