Essa escolha terá consequências
(Conto originalmente publicado na Revista Pólen, em 2021.)
Me lembro de quase tudo que fiz e vi na infância. O dia no qual quebrei um dente girando uma pirueta. Os olhinhos petrificados nas bailarinas sobre o palco. O desejo urgente de tirar os pés da água para depois descobrir que eu até gostava do mar. Olhar para as nuvens que meu avô me apontava no céu e enxergar ovelhas. Ouvir histórias antes de dormir.
Mas não me lembro da primeira vez que me disseram que eu tinha jeito para ser escritora. Ainda assim, me lembro dessa frase. Me lembro de ouvi-la com orgulho, puxando o ar pelo nariz e inflando o peito.
Essas palavras me perseguiram por anos a fio, grudadas no canto do ouvido como um fantasma ou chiclete debaixo da carteira da escola, perturbando-me, mas também acalentando-me. Me trazendo certa calma e certo desespero, ambos na mesma medida.
Eu poderia ter escolhido não ouvir palavra alguma. O cheiro de café ainda estaria impregnado nas minhas narinas se eu não o houvesse feito? E essas personagens que dançam e me batucam dia e noite, para onde elas teriam ido? Outras cabeças? Estariam nadando no cosmos, esperando que eu me lembrasse de algo? Minha forma sensível de olhar para uma flor, ou para as ovelhas do céu, seria a mesma? E as ideias que cultivo? E o sol que bate numa folha e a faz brilhar em tons de verde-claro e dourado, que importância teria para mim?
Paro. Descanso a caneta ao lado da folha. O vento forte me ricocheteia; é como um aviso.
Essa escolha terá consequências.
Quando eu era criança, gostava de arrancar as folhas dos meus cadernos e brincar de fazer verso. Eu chamava de poesia, mas ainda se tratava de uma bagunça. Um dia, aqueles versos se organizariam, eu acreditava. Alguns se transformariam em prosa, quem sabe. Eu aprenderia as técnicas, dominaria algumas teorias, e escreveria mais e mais e mais e mais.
Respiro. E escuto. O vento parece um fantasma, mas decido não ter medo.
“Jeito para ser escritora...”
Eu gravei o recado dentro de mim e me fiz acreditar, mesmo que só na minha cabeça, que as palavras me perseguiriam e que eu iria persegui-las de volta. Essa seria minha moeda de troca: a perseguição. Se elas fugissem de mim, eu faria de tudo para reencontrá-las.
Acho que escrever também é sobre a busca.
Sorrio. E relaxo. É como se já estivesse morando em mim; nunca fui uma menina falante, e eu havia encontrado uma forma de transbordar todo o sentimento que escorria do meu peito inflado.
Aperto a frase entre minhas mãos, abro algumas frestas para que ela respire, saia um pouco, dê uma volta na cidade e me traga novidades.
Não sei se tenho jeito para ser escritora, como me disseram há anos atrás. Mas que eu tenho vontade... Ah! Vontade eu tenho de sobra.
E, para mim, basta.