Realidade insólita

Desde muito cedo, quando ainda dormia no quarto dos pais, não se sentia parte daquele ambiente; o camisolão de algodão, amarelado pelo tempo, filho a filho, a penumbra da luz de lamparina, as paredes envelhecidas do quarto, o berço comezinho e surrado, os ruídos de sexo fugaz e dissimulado e o colchão encharcado de urina impregnando seu corpo com frequência indesejada. Tudo lhe era estranho. Algo parecia errado, fora de ordem. Se sentia desconectado daquele cenário. Tinha 02 anos, ou seriam 03, 04, 05, não importa, o fato é que essa sensação era atemporal e parecia muito real.

Com pouco mais idade vivenciava o asco pela casinha, denominação bizarra para sanitário de buraco com pequena elevação de tijolo ao centro, com 10 a 20 cm de altura e 30 a 40 cm de diâmetro. Nessa base que servia como um “pedestal” e onde se ficava de cócoras, era impossível não sentir repulsa, tanto da visão do conteúdo do buraco como do cheiro fétido que exalava da fossa e tomava conta do ambiente. Mesmo segurando a respiração era difícil ficar muito tempo por lá. Se aquela era sua vida desde sempre, como sentir ojeriza pela casinha? Como estranhar seu habitat, sua própria realidade?

Sem racionalizar, apenas por instinto, se auto isola num processo inconsciente de fuga. Se esconde em algum dos cômodos da casa e se posta, em silencio, sem nada fazer e sem maturidade para refletir sobre seu estranhamento. Nesses momentos apenas sonha o pouco do sonho que a idade lhe permite ter. Aos poucos, meio por acaso, se vê próximo a uma pequena estante carcomida pelo tempo. Olha os livros, folheia, se encanta com alguns desenhos e ilustrações em preto e branco e, com o tempo, passa a ler alguns parágrafos. Sem perceber, lentamente, encontra na literatura uma ponte para fugir da sua realidade e para se conectar com outros mundos, com outras vivências.

Lê, um atrás do outro os romances de M. Delly recheados de personagens sonhadores, viris, verdadeiros heróis e heroínas que sempre terminam juntos e felizes. Imerge e viaja nessas estórias por horas a fio, esquece do mundo real e se vê nos personagens cavalgando pelos campos e salvando a tudo e todos. É tão intensa a entrega que à mínima interrupção se assusta como se fosse acordado abruptamente de um sonho bom.

Desenvolve mais e mais, o gosto pela leitura, seja pela possibilidade de imersão nas estórias, seja pela chance de fugir da sua realidade, por ambos talvez, difícil saber, a ponto de mais à frente partir para a leitura de tudo que lhe chega às mãos. Sente falta das tramas novelescas de M. Delly, mas sem títulos disponíveis passa a ler obras cujos temas são inadequados para sua idade e que fogem à sua compreensão. Lê os Miseráveis de Victor Hugo, lê Crime e Castigo de Dostoievski, lê Metamorfose de Kafka e muitos outros. Como quer sumir na leitura e esquecer do tempo não encontra nessa literatura repleta de personagens angustiados e infelizes suporte para viajar. Se cansa, perde o fio da meada, cochila, sonha, chora com o pouco que percebe e se apavora com a possibilidade de perder sua rota de fuga.

Cada vez mais isolado insiste na busca por livros que lhe permitam voar e escapar da sua estranheza na esperança de que um dia, quem sabe, encontrará personagens também desconectados de suas vidas e possa começar a entender a sua insólita realidade.

FCintra
Enviado por FCintra em 04/07/2022
Reeditado em 25/04/2023
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