Des-fim
O que, para um rio, é o fim, senão, de certo, um desfim? Que segue, essas águas unem vidas, meu filho, saiba, o doce ao salso - diiminuto mundo onde tudo segue pelo mesmo, doutro há o universal-geral, comum a todos, expançoso e perdidor de almas. Um canoeirozinho mui querido, dessa gente que a gente gosta só por existir, pelo mó de ser, e nem de alegria barulhenta ou demonstração de bem-querer feirante, mas sim quieto, vivo no-seu, bom por natureza, por isso inspiradora de julgamentos, vai de manhãzinha, no clariscuro, par'Avenida do Infim, buscar sabe-o-que, profissão, de nome Rindim; contrarioso do geralíssimo Carvais, chamado tal seo Caio Novais, que aparece também nesse mesmo tempo, mas é voltando, com peso vivou-morto nas costas, escorrendo e cheirando forte. Os dois, dia todos, se vendo no rio, chegando-se um ao outro, destino qual seria? Amigaram-se, pois. E conversa criava-se num passar de-lado, na tomada de espaço do lote sem fundo, ou mesmo na beirinha, aprumando-se. Era um indo, outro voltando; ambos igualizavam-se nos iguais aparentes, falsos, porém, de estarem em canoa, de calça arregaçada, vara n'ombro, rede na mão e vai nisso. Um puxava conversa, outro puxava silêncio - vazio de um se enchia pelo outro; que um aprendia a pensar, outro a siagitar. E é que Carvais, não parava quieto, até na pescaria noturna, momento melhor de calmaria peixana, se entendiava logo e assobiava, fazia barulho n'água, gemia um canto de serra sabe-lá onde tirado, mesmo inventado:
Da vida, da vida
Quero eu nada
Além, vida sofrida,
De comida e morada...
E que irritança fazia essa cantoria, que afastava pescante de mesmo ofício, e falado ficava no povoado como perigoso, numa brincadeira sobre espantar o alimento do povo, no intém, o jeito dele é que vencia, de chegar em festa e em rua como parente querido, abraçador. Onde tivesse gente e tivesse ele, dois viravam um, pelo menos uma vez... um mesmo só no rio, quando barulhava e espantava os outros, com certa raiva, mas dele ninguém levava mal. Ah, mas Rindim, filho também de pescador que sumiu por aí, no paradeiro misterioso, era tacitismo grande, porém sorridente. Menino grande e se fortecendo, da pele amorenada nos braços, e corpo estúrdio da magreza da infância que encheu-se impropriamente das doenças de verme, por isso é meio desengonçado, tomando porte, apesar. E gestionava quando, cedinho, querida Jô o chamava, ou qualquer um na rua que simpatizava. Era inspirador, já falei. Saber dizer porque, ninguém sabia, que tinha, tinha, uma energia de bondade. E nessa amizade, não ligava de atrasar instantes pra conversa - das muitas - com Carvais, novo menino com velhante. E esse queria ensinar muitas técnicas, muitas das coisas, de fisgar, com um anzol, três ou até cinco duma vez, coisa aprendida, claro, nos tempos, mesmo ninguém vendo mais que dois nas voltas para casa. O moço assentia a tudo, com jeito de homem certificado. E que um devia trocar de ofício com o outro, perfeito mais seria, mas quem que regiona as coisas? Quem disse que um não aprende no apontado erro alheio? E que ouvia desse homem de cantamento chamador de peixe, tal magia, sei lá. E Rindim não só concordava, pedia era demonstração e perguntava se certo estava, aluno virava. E de doido levava nome, também de besta, por cantar pr'água, atrás de peixe. Cortava seu silêncio. E que essa amizade já criava conversa de ser errada, de ensinar ao menino, direitoso, caminho, provável, de coisa errada, de querer se meter em casa que padre na frente não passa, como fazia os homens da família Novais - que tanto perdera a noiva por isso, na véspera do casamento, quando pego com uma contando piada sobre troco, e que foi-se embora pra junto do avô, e ninguém sabe mais o fim.
Passa tanto do dia nessas mesmas, acontece tanta da coisa, coisa tanta que é como folha em tempo de queda, cai tanta, tanto do chão se entapetando, parece não fazer mudança em vida nenhuma, mas cai uma num cantinho, no rastro duma formiga e, de repente, está lá o formigueiro numa porta de casa, acabando com pé de alguém que saiu e não percebeu a novidade. Vozes, palavras, gestos, olhares; coisas mínimas, duma vez viram ultimatas. E que Carvais, brabão duma noite preludiada de cachaça e fracasso duma escapada - e inda mais perca de isca, nessa -, vai saindo, no manhecer, e se encontra com o parente mais novo, e lhe passa direto, achando muito risonho prum dia ruim, e inté resmungando, deixou ele lá, na beirada, sem saber o que fizera, sem saber o que dizer, silenciava mais uma vez. E era primeira vez que se magoava com alguém. Sendo qualquer um, coisas de temperança se deixa para lá, mal momento tem todo mundo, mas amigo daquele, de tempo e tempo, de primeira palavra? Ah, que tristeceu mesmo, e não cantou naquela pescada, nem trouxe nada. Ficou pensando e puxando chão de riacho. Nada se resolvia. E passou um com incerteza do outro, adiando ida, demorando na volta. Não se viam mais, não se falavam mais, desconfiança dos sentimentos de vice-versa. Por tempo, seguiu-se, grande, dessa maneira. Que mudança no jeito de cada um se percebia, se comentava, murchava flor, virava arisco gato carinhoso. Noiticeu, Carvais não quis ir. Para se encontrar com o outro pela manhã? E sair sem nada, também? Ficar noite sem pescar, olhando pro tempo e pro próprio erro? E tinha errado? Ora! Quem apareceu, mesmo, foi Rindim, pela primeira vez. Na zero-hora. Eu digo... quéssas coisas são mesmo de mistério. Que não punhou vara, não jogou rede, guardou tudo e foi com a canoa para a correnteza, se levou, se levou, se levou, viu-se só a silhueta alcançando a lua, ganhando o mar.
~
n.r.