Tempestade

Naquele tempo eu estava saindo com uma mulher casada. 42 anos, cabelos loiros pintados, olhos verdes, lábios estreitos. Parecia alguém que tinha trocados socos com a vida durante muitos anos, mas que não havia perdido o senso de humor. Pensionista de pai militar, vivia da pensão e nunca tinha trabalhado. Tinha a pintura como seu único hobby. Fazia um trabalho decente, mas não muito inspirado. Tomava uísque e conhaque. Fumava cigarros indianos de cravo e mantinha incensos e velas aromáticas sempre espalhadas pela casa. O marido, Alcebíades, tinha vinte e oito. Era funcionário dos correios. Passava a maior parte do tempo no trabalho ou jogando futebol com os amigos, e a deixava muito sozinha. Segundo ela gostava sempre de repetir. Dalila insistia que ele não precisava trabalhar, pois ela ganhava o suficiente para os dois. Provavelmente era verdade, mas dá pra entender porque o cara não queria ser um peso morto, vivendo vida de gigolô.

- Tem homem que merece os chifres que carrega. – Dalila me disse, enquanto acendia um cigarro de depois. Eu estava parado ao seu lado na cama, olhando para o teto, tentando recuperar o fôlego.

- Não acho que nesse caso se trate de merecimento.

- E do que se trata?

- Acho que ninguém merece isso.

- Vai dizer que você tem pena?

- Talvez.

- Se tem pena, por que está aqui?

- Boa pergunta.

Me sentei na cama e fiquei olhando Dalila terminar o cigarro.

- Você já foi traído? – Ela perguntou.

- Já. Mas não é algo que eu gosto de lembrar.

- Desculpa então.

- Tudo bem, Dalila. Tá tudo bem.

Ela sorriu e apagou o cigarro num cinzeiro de pedra sabão que estava na cabeceira da cama.

- Alce provavelmente não vai dormir em casa. Você não quer ficar por aqui hoje?

- Acho melhor não.

- Ah... por que não?

- Acho que dormir aqui já é um pouco demais.

- Ah tá. Você pode me comer, mas não pode dormir comigo? Difícil entender essa sua moral.

- Eu só não ficaria muito à vontade.

- Então está bom... você que sabe.

- Pois é.

Dalila virou de costas, abriu as pernas e me tocou com a ponta de um de seus pés.

- É uma pena, eu adoraria acordar você pra um pouco de sexo matinal... fico com muito tesão pela manhã.

- Quem sabe em outra ocasião. – Falei, me levantando da cama.

Procurei minhas roupas espalhadas pelo chão e comecei a me vestir.

O telefone de Dalila começou a tocar, e ela se esticou para pegá-lo.

Ela sentou-se na cama e atendeu.

- Oi Amor. – Falou com um sorriso no rosto.

Dalila levou a mão esquerda até o seu monte de vênus e começou a se acariciar.

- “Não vai dormir em casa hoje?” “Que pena meu amor...” “Então vou aproveitar para botar o meu sono em dia...” Beijo... Te amo...”.

Dalila largou o celular na cama, e murmurou.

- Como eu disse... Tem homem que merece os chifres que carrega.

Ela sorriu e fechou os olhos, quando quase que magicamente fez desaparecer três dedos dentro de si mesma.

2

Dalila tinha um certo vício por intensidade.

Seja nas relações que desenvolveu ao longo da vida, seja no café que tomava logo depois de acordar, e principalmente durante o sexo, que é a forma que eu melhor consigo visualizar na minha cabeça a materialização do seu vício.

Ela sempre fez questão de um certo nível de exagero ou transgressão. Ou talvez essa visão seja apenas algum tipo de caretice ou preconceito da minha parte. Provavelmente por não conseguir achar normal que alguém goste de ser sufocado até a perda de consciência, ou de ter pingos de vela quentes derramados sobre os mamilos durante o sexo.

Caretices à parte. Dalila gostava mesmo era de desafiar certos limites, e erguer o dedo do meio para a sociedade.

Aos doze anos, ela enfiou um lápis na mão de um colega de escola que achou que tinha direito de lhe tocar os seios.

Depois de ser expulsa do colégio por isso. Os pais perguntaram se ela se arrependia pelo fato.

Ela disse que se sentia muito arrependida sim. Mas apenas por ter enfiado o lápis em só uma das mãos do garoto. O que julgava injusto, já que ele tinha usado as duas mãos para assediá-la.

Não consegui disfarçar o riso quando ela me contou essa história pela primeira vez. Mas percebi imediatamente que ela não via graça nenhuma. Nem na história, nem na minha reação. Eu tinha a impressão de andar sobre ovos quando conversava certas coisas com ela. Qualquer pequeno detalhe podia ser razão de uma mudança total de humor da parte dela. Por isso eu aprendi a ouvir mais do que a falar quando estávamos juntos.

Foi com esse pensamento que eu bati na sua porta numa sexta feira a noite, pouco depois de voltar do trabalho. Alcebíades tinha viajado para a cidade vizinha para assistir um jogo de futebol, voltaria só no dia seguinte. Ou pelo menos foi essa a história que Dalila havia me contado. Por isso tinha me convidado para passar a noite no seu apartamento.

Ao aproximar o ouvido da porta, pude ouvir vozes lá dentro, como se ela não estivesse sozinha. Pensei em ir embora, mas então a porta se abriu.

Quem atendeu foi um homem magro que devia ter quase 1.90.

- Boa noite, querido. – Ele disse com uma voz afeminada.

- Dalila está? – Perguntei.

- Dalila, você tem visita – Ele disse afetadamente. E se afastou para que eu entrasse.

Dalila apareceu, vestida apenas com uma camisola vermelha de seda.

Entrei no apartamento e ela me deu um abraço.

- Você chegou cedo hoje.

- É. Consegui sair mais cedo do trabalho.

- Que bom.

- Então. Esse é Paulo, um amigo que é quase como um irmão. – Ela disse apontando para o homem magro.

- Olá Paulo. – Falei um pouco sem graça.

- E esse é Carlos... o que te falei outro dia. – Ela falou com um sorriso malicioso no rosto.

- Humm. Estou lembrado. – Ele respondeu sem disfarçar a malícia também.

Dalila me pegou pela mão e me puxou até o sofá. Então sentou bem do meu lado e Paulo numa poltrona que ficava bem na nossa frente.

- Paulo também é escritor, Carlos. E está escrevendo um Romance, acredita?

- Sério? Sobre o que é? – Perguntei.

- É um romance erótico. “Homens que amam nas sombras”.

- O nome é bom. Do que se trata?

- Sobre homens gays que não conseguem assumir o que são.

- É um tema bem complexo, não é?

- Você não faz ideia. – Ele respondeu, enquanto acendia um cigarro.

- Deve ser muito difícil não poder assumir o que se é pra a sociedade... amar em segredo, viver em segredo. – Dalila comentou.

- Enquanto se trata apenas de sexo, tudo é mais simples. A nossa sociedade sempre tolerou sexo entre homens. Desde que seja escondido. Desde que não tenha afeto ou amor. Por isso que tem tantos homens gays que são casados com mulheres e mantém a família como fachada.

- Acho que eu enlouqueceria se tivesse que viver assim. – Dalila sussurrou.

- Muita gente ainda enlouquece por isso. E não vai mudar tão cedo. – Paulo falou depois de um longo trago no cigarro.

- É triste pensar assim. – Falei, entrelaçando os dedos nos de Dalila.

- Mas é a realidade, querido. Nesta vida, todo mundo veste uma fantasia... algumas só são um pouco mais complexas do que as outras. – Paulo falou seriamente.

Depois de alguns segundos de silêncio, ele apagou o cigarro e se levantou.

- Preciso ir agora, meus amores. Se divirtam com responsabilidade.

Dalila se levantou também e o levou até a porta.

Fiquei olhando enquanto eles se despediam, me perguntando qual fantasia ela estava usando.

3

Tirei o revólver do bolso e apontei para uma mulher que estava bem na minha frente. Ela sorriu como se aquilo não significasse nada.

Eu tinha a vista embaçada, mal podendo discernir o seu rosto, mas sabia exatamente de quem se tratava. Meu estômago revirou com a tensão. Raiva, ódio, frustração, rancor... Lembrei de todas as mentiras e de toda a loucura de descobrir as traições que ela havia me submetido.

- Você merecia, mas eu não consigo. – Murmurei.

- Eu sei. – Ela sussurrou sem desfazer o sorriso.

Em seguida apontei o revólver para a minha própria cabeça.

- E até pra isso me falta coragem. – Continuei.

- E o que você pretende fazer? – Ela perguntou, finalmente.

- Só tem um jeito.

Baixei a arma e estendi para que ela pegasse.

A mulher andou até mim e pegou a arma sem dizer nada. Se afastou um pouco e analisou o revólver com cuidado. Depois, com a naturalidade de quem acende um cigarro, apontou o cano da arma pra mim e deu cinco tiros.

Eu caí no chão, com as balas cravadas em vários pontos do meu tórax.

A mulher ficou me olhando com uma face sem expressões enquanto eu sangrava, depois largou o revólver em cima do meu peito.

Sufocando no meu próprio sangue, eu tentava respirar, mas sabia que era inútil.

Estranhamente minha visão foi recuperando a nitidez, e eu pude ver detalhes de todo o ambiente, que não conseguia discernir antes.

A mulher deu um sorriso, como se saboreasse o meu desespero.

Finalmente, ela arrancou a pele do rosto como se fosse uma máscara, revelando uma face diferente por baixo.

Era Dalila, com uma expressão ao mesmo tempo, lasciva e cruel.

Naquele momento eu soube que estava no meio de um sonho, mas ao mesmo tempo tive medo de que aquilo tudo fosse real.

4

Acordei assustado e me sentei na cama, jogando o lençol que me cobria no chão. Dalila se virou para mim e ficou me olhando tentando entender a situação.

- O que foi, meu bem? – Perguntou.

- Tive um pesadelo... Puta merda... um pesadelo.

Ela se ergueu e me puxou para perto de si.

- Respire, meu bem... já passou.

- Puta merda, era você...

- Como assim?

- Eu achava que era a minha esposa... minha ex-esposa. Eu estava com uma arma, mas não consegui atirar nela. Então eu lhe dei a arma e ela me deu uns cinco tiros. No fim ela tirou a pele do rosto como se fosse uma máscara... e era você por baixo...

Dalila ficou me olhando com a maior seriedade do mundo, depois deixou escapar um risinho como se eu tivesse contado uma piada.

- Eu atirei em você?

- Atirou.

- Meu pai me ensinou a atirar sabia? Quando eu era adolescente. Mas eu nunca precisei atirar em ninguém.

- Bom saber disso.

Dalila virou por cima de mim e começou a me beijar. Primeiro na testa, depois na boca e então foi descendo até chegar no meio das minhas pernas.

Eu ainda estava ofegante por causa do pesadelo, mas o toque dela foi me acalmando.

Fechei os olhos e me deixei levar pelo momento. Ela era muito boa naquilo. Talvez a melhor que eu já tinha tido comigo.

Quando ela terminou, me agarrei na cama, enquanto o mundo girava na frente dos meus olhos, e eu tinha a plena sensação de ter morrido duas vezes na mesma noite.

5

Dalila fez questão de me convidar para o seu aniversário de 43 anos. Eu não me sentia à vontade de estar no mesmo ambiente do marido dela. Mas Dalila insistiu e disse que ficaria tudo bem. Não querendo contrariá-la, resolvi passar na festa apenas para que ela não tivesse o que reclamar. Cheguei lá com uma garrafa de conhaque como presente. Não tinha mais do que dez pessoas na casa dela quando entrei.

Dalila me recebeu na porta e me deu um beijo no rosto. Alcebíades estava sentado no sofá e se levantou para me cumprimentar. Apertou minha mão desinteressadamente e voltou a se sentar. Paulo estava sentado à sua frente de braços dados com um homem que mais parecia um urso. Paulo sorriu para mim e voltou a se concentrar na conversa com o marido de Dalila.

Fomos até a cozinha e Dalila me deu um beijo no pescoço assim que viu que não havia ninguém no ambiente.

- Pensei que você não vinha.

- Resolvi dar uma passada.

- Só uma passada?

- É. Não posso ficar muito.

- Tem algum compromisso?

- É.. algo do tipo.

- Vai sair com alguém?

- Pensei que você não se importasse comigo.

- Eu não devia...

- Mas...

- Ok. Tanto faz. Pode ir se quiser. – Ela falou contrariada, se virando para pegar uma cerveja na geladeira.

- Não precisa ficar com raiva.

- Não estou com raiva.

- E é o que?

- Ah. Nada demais.

Dalila me deu um beijo no rosto e saiu da cozinha com um passo rápido.

Abri a geladeira e peguei uma cerveja para mim. Puxei uma cadeira e comecei a beber.

O silêncio do ambiente era bom, mas a cozinha era muito quente. Sem ventilação... Ou talvez o problema fosse apenas o verão.

Antes mesmo de esvaziar a primeira lata, peguei outra na geladeira e fui pra a varanda. Fiquei bebendo sozinho enquanto as pessoas conversavam e riam na sala. Alguns bebiam e fumavam, e outros faziam uso de certas substâncias que estavam fora do meu cardápio. Alguns partiram para os quartos de hóspedes em busca de um pouco mais de privacidade... Enfim... Dava pra sentir o ar de liberalidade no ambiente, que me lembrava das noites que desperdicei em festas no meu tempo de faculdade.

Eu estava indo buscar a minha sexta cerveja quando dei de cara com Paulo encostado no balcão da cozinha, exasperado, mas com um sorriso no rosto.

- Tudo certo? – Perguntei.

Ele me olhou assustado, como se tivesse visto um fantasma.

- Tudo maravilhoso, querido. – Ele disse com uma voz meio engrolada, de quem havia bebido demais.

Foi quando percebi Alcebíades saindo da área de serviço, visivelmente ofegante, e terminando de prender o cinto que lhe segurava a bermuda.

Ele me cumprimentou com a cabeça, constrangido e saiu.

Peguei uma cerveja na geladeira e voltei pra a varanda pensando que talvez, fosse uma boa hora pra voltar pra casa.

6

Passei uma semana encarando a tela do computador, escrevendo e revisando alguns dos meus textos. Dalila ligou algumas vezes, mas eu não atendi. Eu precisava me concentrar, e era difícil fazer isso com ela por perto.

Eu precisava de silêncio e tédio pra botar as minhas ideias no lugar. Um porre e uma ressaca também ajudavam.

Eu não era nenhum Bukowski ou Hemingway. Nem tentava ser. Mas como eles, eu tentava encontrar alguma fagulha de inspiração na solidão absoluta e na contemplação da minha própria miséria... Meus maus passos, meus rancores, minhas memórias... Essas eram as únicas companhias que eu precisava.

Mas no fim de sete dias, eu sentia que precisava de ar fresco e de alguma interação social.

Deixei os meus textos inacabados de lado e fui até a casa de Dalila, sem mesmo me preocupar se poderia encontrar o esposo dela por lá.

Bati na porta e ela atendeu. Ela parecia mal. Tinha enormes olheiras de quem não dormia há tempos.

- O que foi? – Ela perguntou ao me ver.

- Eu que pergunto isso.

- Liguei várias vezes e você não atendeu.

- Estava ocupado.

- Percebi. Devia estar com alguma das suas mulheres.

- Só passei um tempo escrevendo.

- Você quer que eu acredite nisso?

- Você acredita no que quiser.

- Pois é. – Ela disse, indo em direção ao sofá.

Eu entrei e fechei a porta atrás de mim.

- E seu marido?

- O que tem ele?

- Não está em casa?

- Não faço ideia onde aquele veado está. Deve estar com Paulo, caçando macho por aí.

- Como é?

- Não ouviu...?

- Ouvi, mas não entendi.

- É isso, meu amor. Vamos dizer que o livro que Paulo está escrevendo é baseado em fatos reais.

- Bem... Sinto muito.

- Não sinta. Não por mim.

- Ah. É uma situação foda.

- Não é nem pela traição... mas pela falta de sinceridade.

- É o mais difícil de se encontrar em uma relação hoje em dia...

- O que?

- Sinceridade... A maioria das pessoas só é sincera quando convém.

- É isso mesmo...

- Vocês vão se separar?

- Sim. Ele já foi embora. Juntou as coisas e nem disse adeus... Acho que por vergonha, ou constrangimento.

Dalila pegou um cigarro e tentou acender com um isqueiro que aparentemente estava sem gás.

- PUTA MERDA. – Ela gritou, e jogou o isqueiro que se espatifou na parede.

Depois correu pra a cozinha e acendeu o cigarro na boca do fogão.

Fui até ela e a encontrei sentada no balcão com algumas lágrimas escorrendo do rosto.

- O pior é que até o meu vibrador o filho da puta levou!... PUTA MERDA, Até o meu vibrador. – Ela falou, entre lágrimas e risos.

Abri a geladeira e peguei duas cervejas. Entreguei uma a ela e abri a outra.

Ela tomou um gole e deixou a lata de lado.

- Só podemos desejar que ele seja muito feliz nessa nova fase. E que o vibrador lhe faça companhia nas noites de solidão. – Comentei depois de tomar um gole.

Dalila enxugou as lágrimas e caiu na risada.

Quando ela acabou o cigarro, eu a puxei pelas pernas pra perto de mim.

Ela me beijou com um desespero que eu nunca tinha visto. Por fim se acalmou e ficou me encarando, sem dizer nada.

Então pegou a minha mão e levou por debaixo do seu vestido até o meio de suas pernas.

Perdido no momento, olhei para o lado de fora pela janela e vi o céu carregado,

e uma tempestade pronta a desabar.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 26/06/2022
Código do texto: T7545845
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