Crush, crush, crush - Parte 002

Ela estava encostada numa árvore. Tinha cabelos azuis, usava um vestido negro e tocava uma espécie de flauta. A partir de minhas primeiras percepções sonoras, comecei a prestar a atenção naquela moça. Parecia uma melodia medieval, ou algo assim. Quando terminou, levantou-se calmamente e foi auxiliar um garotinho que tentava se equilibrar no em cima de uma corda. Acho que o nome disso é slackline. Foi nesse momento que percebi que estava enfeitiçado. Foi nesse momento que também me ocorreu que ela deveria ser uma das organizadoras, provavelmente de fora da cidade, e que eu talvez nunca mais a visse.

 

Eu definitivamente não sabia como começar uma conversa, menos ainda com uma mulher. Sim, considerem-me um retardado. Só que eu cheguei a gelar ao pensar que era minha única oportunidade. Eu tinha que aprender a ser homem na marra, instantaneamente. Fiz um tipo de oração, puxei e soltei o ar.

No momento em que me aproximei, ela estava de costas se afastando cada vez mais. Dei um grito desesperado, que pareceu brotar do fundo das entranhas: MOÇA!!!!

 

Percebi um rapaz se divertindo com a minha situação, mas apenas ignorei. Então ela parou e se virou. Fui até ela.

 

Desculpa te gritar, assim. É que estou querendo pintar o cabelo (isso era verdade; e sim, naquele tempo, eu tinha cabelo) e achei lindo esse azul. Que tinta ou spray você usa? Sabe de alguém que poderia pintar para mim?”

 

Falar olhando nos olhos de outra pessoa é coisa que, mesmo hoje, não faço com frequência. Chamem de covardia, mas afirmo categoricamente que não é, e apresento provas. Digam que não passa credibilidade, não darei a mínima. O que acontece é que falar olho no olho cria conexões muito fortes, com efeitos, muitas vezes, indesejáveis. Ou docemente surpreendentes.

 

E naquele momento, de algum modo, através do olhar, nossas mentes pareciam conectadas. E pra ajudar, a criatura ainda tinha olhos claros, levemente amarelados. Pensei em topázios.

 

Na verdade”, ela começou a responder, “eu mesma pinto o meu cabelo e o dos meus amigos , mas não sou profissional. A ideia era pintar o cabelo da geral aqui, mas os equipamentos sumiram”.

 

Eu apenas sorri.

 

Um breve silêncio.

 

Você mora aqui mesmo? Vou estar aqui semana que vem. Se quiser, eu pinto pra você!”

 

Havia paz naqueles olhos. A mesma paz que precede a guerra. De todo modo, a situação me parecia bem favorável. Fora o sorriso.

 

Tudo bem, então”, respondi. “Qual é mesmo seu nome?”

 

Meu nome é meio estranho, duvido que vá se lembrar. Akileen.”

 

Não achei estranho. Na verdade, me lembra nome de personagem de mangá. Ou de seriado adolescente estadunidense. Tipo aquelas líderes de torcida”.

 

A jovem bruxa flautista caiu na gargalhada, mas concordou com um breve aceno de cabeça.

Mais um silêncio constrangedor. Então, ela perguntou quem havia desenhado o símbolo que eu trazia na lateral esquerda da cabeça, feito com navalha. Mais do que isso, se mostrou muito interessada em saber o seu significado.

 

Foi um barbeiro ali da avenida de cima. É um tipo de suástica, símbolo de um deus eslavo. Mas não sei muito mais sobre isso.”

 

Muito legal, cara! E conforme você olha, parece um cata-vento!”

 

Dessa vez, fui eu que não me contive e desembestei no riso.

 

Sentindo que havia cumprido a minha missão, disse que estava indo embora, mesmo que a festa ainda estivesse começando. Ela me deu o endereço de onde nos encontraríamos, que memorizei facilmente, por ser bem perto da minha antiga casa.

 

Nos despedimos e, sem olhar para trás, saí do parque pelo portão lateral, já acelerando o movimento de pernas, me preparando para as várias subidas que teria que encarar até retornar pro “meu pedaço”. Só depois percebi que não havia dito meu nome, nem deixado nenhum contato meu.

 

Rodiel
Enviado por Rodiel em 24/06/2022
Código do texto: T7545021
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.