Um santo remédio
Lembro de uma noite na casa de meus tios, Antônio e Tarcila. Passava um pouco das 23 horas, mas a ausência de iluminação elétrica e o silêncio da roça dava a impressão de ser muito mais tarde. A lua como um disco prateado irradiando luz atravessava a escuridão da casa através das falhas no telhado, projetando jatos de luz no chão e nas paredes brancas da sala. Um vento frio que entrava pela janela acentuava a dor latejante que não me deixava dormir. A cárie profunda destruíra a polpa do dente deixando no lugar um buraco preto agora todo preenchido pela dor que parecia mover-se em ondas de intensidade que progrediam chegando ao limite do suportável. Então, regrediam até quase cessar gerando um instante de alívio. Mas, o breve gozo durava pouco e logo o tormento recomeçava em ascensão pulsante arrancando-me gemidos que eu tentava abafar no travesseiro.
No povoado, onde me encontrava passando férias escolares, não havia posto médico e nem mesmo uma farmácia. E aquelas pessoas não dispunham de um reles analgésico para dor de cabeça. A vida rústica, pobre e esquecida pelos governos no interior do Nordeste, obrigava o povo a manter a tradição de usar o poder curativo das ervas, das sementes, dos frutos silvestres, das raízes, das cascas de árvores e mesmo das resinas que escorriam como lágrimas nos grossos troncos das retorcidas árvores da caatinga. Práticas que remontavam aos antepassados indígenas e negros escravizados que integravam a genealogia de meus parentes que, naquele lugar, me acolhiam com alegria por um mês inteiro a cada final de ano.
Minha Tia Tarcila foi quem primeiro despertou ouvindo meus gemidos.
- Ô meu filho o que se passa?
- Ah Tia, uma dor de dente de lascar, respondi choramingando.
- Deixa eu dar uma olhada. Abri a boca e ela viu meu dente molar do lado direito com um buraco preto no meio. – Fique aqui deitado enquanto preparo um remédio para aliviar essa dor. Saiu arrastando seus chinelos de couro carregando um candeeiro em direção a cozinha. Ouvi barulho de vasilhas sendo manipuladas, folhas secas trituradas e em seguida um cheiro refrescante invadiu a sala. Momentos depois irrompeu de volta trazendo um preparado pastoso que cheirava a hortelã e cânfora. Disse-me para aplicar diretamente no buraco do dente. – Isso vai desinflamar e aliviar a dor. O alívio foi imediato, porém, breve. Logo a dor voltou refazendo seu insuportável arco latejante que tentei sufocar com todas as forças para não voltar a incomodar minha tia.
Porém, o sono de quem já passou dos setenta anos não precisa de muito barulho para ser interrompido. Meu rolar inquieto fazia a esteira de taboa nova chiar sob o meu corpo. E, então a tia reapareceu na sala, desta vez acompanhada por meu tio Antônio. A dor agora me arrancava lágrimas e um choro incontido que preocupou meus tios. Tia Tarcila se aproximou e acariciou-me levemente a cabeça revolvendo meus cabelos dirigindo-me um olhar piedoso enquanto Tio Antônio seguiu resoluto para a cozinha. Daí a instantes saiu com um cigarro artesanal pronto, conhecido como “bazé.” Chamou-me para a varanda da casa e acendendo o “bazé” ofereceu-me sem cerimônia dizendo que era um santo remédio para dor de dente. Sua instrução era que eu deveria “chupar” a fumaça e deixa-la na boca por alguns instantes sem engolir. A esse exercício insólito seguiu-se um acesso de tosse e engasgos. O cheiro forte e o sabor amargo do fumo de corda me fizeram lacrimejar. Fui tomado por uma sensação de tontura e náusea. Logo meu estômago começou a contrair-se e um volume estranho se formou e subiu-me pela garganta. Minha boca expeliu um longo jato de vômito que emporcalhou o chão da varanda. Meus tios me observavam sem demonstrar a menor preocupação. Só me disseram que logo aquilo passaria.
A sensação de náusea foi passando. Mas, um entorpecimento foi se espalhando pelo meu corpo até que perdi a consciência e caí num sono profundo quase instantaneamente. Acordei já manhã alta e a dor de dente era apenas uma lembrança ruim. Mas aquele gosto horrível do bazé em minha boca me fez odiar cigarro pelo resto de minha vida. Foi, realmente, um “santo remédio” que me protegeu dos perigos do fumo.