Crônicas de Boxe - A Barbearia

A luta estava marcada e eu carregava um saco de problemas nas costas. No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, não dá para viver do esporte. Então a gente tem que se virar e escolher entre sonhar e sobreviver.

Há alguns anos atrás eu parei de sonhar e me entreguei a sobrevivência. Casei, tive um filho e abandonei a vida que eu amava para viver um outro sonho, que eu pensei ser meu, mas que hoje acho que me arrependo.

Eu estava infeliz e de saco cheio da minha vida. Cansado de morar no terreno da minha sogra e de trabalhar no negócio dela. Não tenho nada contra a minha sogra, muito pelo contrário ela é uma mãe, mas eu quero ter a minha casa, meu negócio e o melhor fazendo o que amo.

Minha sogra é dona de uma confeitaria e eu trabalho nas vendas e entregas. Minhas três cunhadas e minha esposa trabalham na confecção dos bolos, por isso todo o lucro é dividido entre nós. Eu estava cansado disso, não importava o quanto eu ralava debaixo do sol ou da chuva vendendo, ou, quantas entregas eu fazia na minha bike, o lucro era sempre dividido. Eu precisava ter o meu próprio negócio. Então me revoltei e parti para o que sei fazer. Tentei dar aulas personas de boxe, mas não deu muito certo, entretanto consegui uma vaga na academia que tem perto da minha casa.

Recuperei minha autoestima quando voltei a treinar, dar aula e a malhar, mas não pude parar de trabalhar, pois o dinheiro das aulas não chegavam nem perto do que eu ganhava trabalhando com a minha sogra. Ministrar as aulas de boxe me levaram de volta ao cenário. Os nomes do meio da luta lembravam de mim e um deles me convidou a voltar a lutar. A proposta foi tentadora, cinco mil só para lutar, comissão na casa de apostas e mais uns bônus. Aceitei sem pensar duas vezes e esse foi meu erro.

Há alguns anos atrás fui diagnosticado com cefaleia e labirintite, devido aos anos de pancadas na cabeça e minha esposa com o apoio do médico me proibiram de lutar. Então, quando cheguei em casa contando o que fiz uma guerra se instaurou. Minha esposa é uma mulher fenomenal, sabia, cristã, fiel, boa mãe, companheira e cuida de mim como ninguém. A única coisa que não estava muito legal (mas que eu também não ligo muito, embora a concorrência lá fora esteja grande) era sua aparência física. Eu entendo que ela se preocupa comigo e com minha saúde, até por que se acontecer algo comigo ela quem vai sofrer.

Brigamos, mas o contrato estava assinado. Todos os dias se tornaram um martírio. Minha esposa fazia questão de mostrar todos os dias que estava insatisfeita e infeliz. A nossa vida se tornou um caos. A gente não se tocava, não trocava carinho, mal conversava dentro de casa. Passei a ficar mais tempo na academia e demorava mais nas entregas.

Essa situação me deixou mal, muito mal. Eu estava treinando mal, estava infeliz, pois não queria e não gostava de vê-la infeliz. A luta estava marcada e estava próxima. Não era brincadeira e nem algo amador, seriam doze rounds de três minutos nos pesos pesados. Não era só pelo dinheiro, era também pelo meu ego, minha saúde mental, minha autoestima e a chance de voltar a viver fazendo o que amo, e me livrar de vez da minha sogra. Meu plano era pegar o dinheiro da luta e investir na minha própria academia.

Faltava um mês para a luta. Era um sábado. Eu e minha esposa tivemos uma discussão acalorada por besteira e eu saí para correr e aliviar o estresse. Corri por horas sem rumo e parei em frente a uma barbearia. Havia uma muvuca lá dentro. Fiquei curioso e entrei. Era o salão mais diferente que eu já tinha visto. Havia uma mesa de sinuca, dois fliperamas, uma TV, um vídeo game, uma mesa de totó e um queijo com duas dançarinas, sem falar nas mesas e cadeiras de trabalho. Quando vi as dançarinas entendi o motivo do lugar estar cheio. Eram duas musas fitness seminuas rebolando para um grupo de marmanjos e adolescentes. Sou cristão e aquele lugar não condizia com a minha fé, dei as costas e sai.

Parei para atravessar e vi um jovem com Síndrome de Down entrar na barbearia. É claro que aquilo me despertou uma nova curiosidade. O queijo lá dentro estava estrategicamente posicionado em um local que não dava para ver pela janela do lado de fora, e foi naquela posição que eu fiquei observando o jovem pelo lado de fora.

O jovem entrou e as brincadeiras de mal gosto começaram. No início achei que eram amigos e ignorei, até porque o jovem ria, mas eles começaram a fazer brincadeiras físicas e mais grosseiras. O jovem deficiente estava com lágrimas nos olhos e agrediu um dos rapazes que o humilhava. O soco atingiu o nariz do rapaz, uma rodinha se formou, as dançarinas desceram e os trabalhadores se afastaram. Eu engoli em seco. Uma grande parte de mim queria entrar, mas a outra parte queria sair dali, já que não era problema meu. O rapaz agredido demonstrou ter noção de alguma arte marcial e aplicou uma série de golpes no jovem deficiente. Ao invés de separar as pessoas em volta riram e incentivaram a covardia. Eu parei de pensar e entrei na barbearia.

Entrei no meio dos dois e os afastei. Todos ficaram me olhando. O jovem com Síndrome de Down me abraçou e eu olhei com raiva para o rapaz. Todos se afastaram e eu sai com o deficiente da barbearia. Mas o diabo não consegue suportar a derrota e o rapaz saiu da barbearia para me desafiar. Eu ignorei e continuei andando com o jovem deficiente. O rapaz, influenciado por seus colegas, veio atrás de mim e me agrediu por trás. Eu respirei fundo. Ele começou a falar um monte de bobagens e eu comecei a orar. Ser ignorado fez a raiva do rapaz aumentar e ele me atacou. Eu me concentrei apenas em esquivar e fugir dos golpes dele. Por fim ele cansou, mas tentou uma última investida. Aconteceu rapidamente. O rapaz desferiu um soco violento, eu esquivei deixando um soco em seu estomago e o derrubei. O rapaz ficou atordoado no chão e seus amigos riram.

Pedi perdão a Deus e atravessei a rua. Levei o jovem deficiente até onde ele morava. Era um condomínio de luxo na Barra da Tijuca. Ele me convidou a subir para explicar o ocorrido a seu pai. Eu relutei e depois de muita insistência dele aceitei, afinal eu nem queria ir para casa mesmo. Subimos. O apartamento dele era enorme e luxuoso, pelo menos para mim. O jovem me levou até a varanda e me apresentou o seu pai.

Era um homem magro e de tez firme, cujos olhos pareciam jamais ter conhecido a tristeza. Ele era dono de uma grande fábrica de produtos descartáveis e uma distribuidora dos mesmos produtos. O jovem contou euforicamente todo o ocorrido e o pai ouviu com um sorriso no rosto. Ao término da história o pai me olhou, agradeceu e perguntou mais sobre mim. Costumo ser fechado, mas eu estava tão mal que aproveitei a oportunidade e me abri. Falei resumidamente as minhas frustrações e ele perguntou o que poderia fazer por mim. Eu neguei qualquer ajuda agradecendo apenas por ter sido ouvido, mas deixei, depois de muita insistência, meu telefone.

A luta chegou. Eu tinha experiência, mas estava nervoso, não com a luta, mas sim pelo fato de eu ter treinado mal. Subi no ringue. Não havia ninguém da minha família, todos foram contra e mostraram isso não indo até lá. Olhei ao redor e vi o jovem com Síndrome de Down e seu pai na arquibancada. Fiquei surpreso, pois eu havia comentado sobre a luta e onde ela seria, mas jamais pensei que eles realmente fossem até lá. Naquele momento eu me senti o herói daquele jovem e não podia fazer feio. Fiz a minha oração, me aproximei do meu oponente e tocamos as luvas.

O gongo bateu, era só eu e meu oponente. Nada mais existia para mim, só o cara na minha frente. Sou mais alto, resolvi manter a distância. Soltei um golpe reto de esquerda, ele esquivou e veio pra cima, dei um passo atrás e o evitei. Percebi que ele andava com a guarda baixa e ataquei com uma sequência de golpes retos, rápidos e fortes. Os primeiros não entraram, mas os ultimo entrou em cheio. Eu senti o osso da minha mão, mesmo com as luvas, doer quando encaixei o golpe. O último soco foi tão forte que o cara apagou, deu um giro enquanto ia ao chão e caiu na lona, apagado.

Venci quase sem ser tocado. Nasci de novo. Ganhei mais de 10 mil naquela luta e recuperei minha autoestima. Recebi um abraço forte e caloroso do jovem com Síndrome de Down e uma proposta de emprego de seu pai. Rejeitei. Como já disse eu quero ter o meu próprio negócio. O pai do jovem sorriu, se afastou e preencheu um talão de cheque enquanto o jovem me distraia.

Cheguei em casa com dois cheques, um de R$ 11.,755,32 e outro de R$ 5.000,00. Minha esposa chorou e pediu perdão por ter sido incompreensível e disse que teve medo de me perder. Eu entendi e a perdoei. Pegamos o dinheiro e investimos em minha academia. Agora estou aqui, na minha academia, escrevendo esta história. Ao meu lado está Andrés Riccardo Junior, o jovem com Síndrome de Down e dono do setor de barbearia da academia, que batizamos de A Barbearia do Boxe, onde funciona a academia no andar de baixo e uma barbearia no de cima.

Erich Noronha
Enviado por Erich Noronha em 21/06/2022
Reeditado em 29/06/2022
Código do texto: T7542656
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