PRISIONEIRO DA SOLIDÃO

   A velha casa parecia abandonada, o imenso jardim precisava de uma boa limpeza, o velho portão de entrada, com ferrugem aparente, indicava o abandono total daquele local tido por alguns como assombrado. Ninguém se aventurava a entrar ali onde existiam algumas fruteiras, o chão estava repleto de frutas apodrecidas como mangas, carambolas, goiabas, etc. O descaso era total. O imóvel estava localizado em uma área afastada do centro da cidade, mas não era muito longe, outras poucas residências ali se via, eram de pessoas que pouco se interessavam pelo que acontecia na rua, entravam e saíam de suas casas para seus compromissos e não se preocupavam com aquela casa que diziam ser mal assombrada. Apenas comentavam que um senhor que andava maltrapilho costumava sair esporadicamente e se dirigia a pé até o centro, voltava horas depois com sacolas contendo mantimentos e se enfurnava novamente por vários dias.

   Era uma tarde nublada quando uma mulher passou por ali, por aquela rua onde essa antiga casa mostrava total descaso no que diz respeito a sua aparência. Não era tão jovem, aparentava ter uns cincoenta anos, tinha um ar de tristeza e parou em frente da residência a qual é foco desta história. Passou alguns minutos ali olhando para a fachada do desprezado imóvel, notava-se claramente algumas lágrimas caírem de seus olhos. Segurando um lenço enxugava-os e voltava pelo mesmo caminho que veio. Na tarde seguinte estava de volta, o mesmo percurso, a mesma ação, as mesmas lágrimas derramadas. Isso se tornou uma rotina, uma ação que chamou a atenção de algumas pessoas das redondezas. Receosa, essa mulher, que se chamava Rosa, procurou disfarçar e usou roupas diferentes, cobria o rosto com um véu e parava em outro local das proximidades. A qualquer tentativa de aproximação de alguém ela fugia assustada, evitava contato.

   Agora vamos adentrar essa casa, o leitor deve estar interessado no que acontece lá dentro e é bom que saiba mesmo. Então vamos lá. A porta da frente, bastante desgastada pelo tempo e pela ação do sol e da chuva, deixava mostrar brechas, porém lá dentro só escuridão. Quem olhasse através delas nada veria, mesmo tendo a claridade do astro rei. Sigamos então por um dos lados, um corredor de pedras onde o capim abundava, tendo ao lado do muro ervas daninhas. Lá nos fundos, enfim, uma porta e ela se encontrava aberta. Vamos entrar? Vocês topam? Vamos lá então. Sentado em uma velha cadeira e com os braços debruçados sobre uma enorme mesa de madeira, olhar para o vazio, lá estava o homem, do qual falamos no início. Era aquele senhor maltrapilho, ele mesmo, que parecia mastigar alguma coisa. Perto dele um velho fogão a lenha com chamas que fumegavam e esquentavam uma panela já preta pela foligem. Algum tipo de comida ele preparava, devia cozinhar seu próprio alimento senão ali não estaria e nem conseguiria ficar de pé e andar até a cidade trazendo as sacolas com comidas e frutas, pelo menos algumas se via em uma fruteira de vidro sobre um balcão de madeira ao lado do fogão. Aproximemos mais, vamos olhar nos seus olhos, vamos ver se chora ou se resmunga alguma coisa, apesar de estar só. Nada. Nenhuma palavra. Pelos minutos que ali passamos diante dele apenas vimos que comia um pouco de arroz branco com um pedaço de coxa de frango. Em determinado momento levantou-se e foi até o fogão, pegou a panela pelo cabo e afastou do fogo depositando-a sobre um outro balcão de mármore onde existiam outras panelas vazias. Da panela tirada do fogo retirou um pouco do feijão que borbulhava usando uma concha e colocou algumas porções no prato sobre o arroz e o que restava do frango. Sentou-se novamente e pôs-se a comer.  Devia estar com muita fome, pois raspou o prato engolindo rapidamente o alimento. Sobre a mesa tinha um copo com um suco amarelado, podia ser de laranja ou maracujá, não dava para distingüir, que foi sorvido em fração de segundos. Vamos sair, leitores, vamos deixá-lo à vontade, deve querer descansar naquela cama de um dos quartos que dali dava para ver. Mas antes, peraí! Essa foto na parede! Acho que sei quem é, deu para conhecer, ou melhor, reconhecer. É aquela mulher que foi vista na rua e que sempre parava na frente da casa e ficava choramingando, depois ia embora. Tem algo estranho nessa história. Vamos sair logo daqui.

   Passaram-se alguns dias e Rosa sem aparecer na frente da casa, mas quem é vivo sempre aparece. E ela apareceu. E resolveu entrar na casa. Estava decidida. A porta da frente estava fechada, como sempre, mas ela sabia que poderia entrar pelo lado e foi o que ela fez. A porta dos fundos estava aberta e Rosa entrou. E lá estava ele sentado na cadeira, de costas para ela. Um "oi" dela foi o suficiente para ele levantar a cabeça, mas não se virou. Reconheceu aquela voz, mas não estava acreditando e permaneceu parado, talvez esperando um outro "oi" que tanto desejava. Mas antes de terminar essa parte da história vamos entrar em outro parágrafo.

   Era o mês de setembro, mês das flores, de um ano qualquer, não vai fazer diferença, só posso dizer que faz um tempo muito grande, décadas, melhor dizendo. Rosa estava no jardim de sua casa junto com seu companheiro, Paulino era o seu nome. Tinham ambos vinte e três anos, eram felizes e ali viviam depois da morte trágica e misteriosa dos pais dele, fato que ocorreu há um ano. Rosa e Paulino se amavam, ele, porém, a amava mais ainda. Se conheceram fazia uns três anos mais ou menos, eram jovens ainda. Ali naquele jardim bem cuidado e com flores cheirosas, Rosa precisava lhe dizer algo, mas estava sem coragem. Era uma revelação que iria machucá-lo muito e então optou pelo lado covarde de se sair dizendo o seguinte: "Me espere, quando voltar tenho algo para lhe dizer". Com aquele sorriso meio esquisito ela se foi e não mais voltou. Paulino até agora ficou esperando pelo retorno da amada, passou alguns dias sem poder trabalhar mas se viu obrigado a isso, o dinheiro que o pai deixara em bancos não seria suficiente para ele viver como filho único. Os anos se passaram e ele somente pensando em Rosa, nem sabia onde ela morava e quem era sua família. Aquela imensa casa para ele se transformou em um presídio, pode se dizer assim, ficou recluso depois que perdeu o emprego e o jeito foi viver com os recursos disponíveis, ou seja, foi usando o dinheiro que tinha no banco e o que recebia dos aluguéis de alguns imóveis deixados pelo pai. Só saía de casa para comprar alimentos quando pegava o necessário para a sobrevivência. Ainda tentou procurar Rosa, seu grande amor, mas as buscas foram em vão, o que o deixou praticamente fora de si. Prometeu a si próprio que só deixaria essa vida quando ela retornasse.

Voltemos agora para o retorno de Rosa e seu "oi" para Paulino. Ele apelou mentalmente para que aquele "oi" fosse repetido e isso realmente aconteceu. "Oi, Paulino, eu voltei!" - disse ela para aquele que foi seu companheiro muitos anos atrás. Ele queria virar-se, mas estava pensando que era uma alucinação, só acreditou mesmo quando a mão dela foi depositada no ombro dele. Virou-se rapidamente e chorou ao ver aquela imagem que tanto desejava ver, aquela imagem que o deixara em longa solidão numa espera que nunca tinha fim. Levantou-se da cadeira e abraçou a amada, que também chorava. Ambos tiveram alguns momentos de prazer num abraço apertado e emocionante. Terminou a espera, enfim esse pesadelo acabou e os dois sorriam um para o outro. Mas o sorriso dela era forçado, aquelas lágrimas dela não eram de felicidade, ela tinha um peso muito grande nas costas e queria nesse momento se desfazer dele.

- Eu voltei, mas quero que você me mate e faça justiça - disse Rosa para ele, estava em prantos e dizia que não queria mais viver nessa situação e que não era digna do seu amor.

- Matar você por que?

- Porque eu matei seus pais.

Assustado e não querendo acreditar ele deu início a um soluço interminável, não estava aceitando essa revelação daquela que foi o seu grande e único amor, preferia que ele morresse e assim tudo terminaria. Rosa então confessou a sua participação na morte daqueles que eram seus sogros, interessada nos bens e no dinheiro deles simulou um assalto a residência que culminou com o assassinato dos dois. A intenção era subtrair objetos de valor e obrigá-los a assinar cheques e logo em seguida dar cabo deles, isso enquanto Paulino não estava em casa. Quando ele chegou encontrou a desgraça feita e logo depois ela apareceu dizendo ter ficado surpresa e chocada com a investida de bandidos e conseqüentemente com a morte dos pais dele, que acreditou piamente numa fatalidade. Depois dessa tragédia Rosa se arrependeu amargamente e resolveu sumir da vida dele, sua ganância a levou a praticar tamanha crueldade quando contratou forasteiros para forjar um assalto e tirar proveito dessa ação criminosa. Abalado, Paulino só fazia chorar e mesmo ela implorando para que lhe tirasse a vida ele não teve coragem. Foram longas décadas esperando Rosa, foram anos a fio sofrendo numa solidão sem fim que nesse momento nada mais sobre o caso interessava para ele, já sofrera muito e não queria manchar suas mãos de sangue. Ela, no entanto, não queria que fosse assim e que também sofrera muito com uma solidão sem fim e uma mágoa muito grande dela mesma. E já que ele não queria a sua morte ela mesma deu cabo de si, pegou uma faca que estava no balcão da pia e cravou em seu peito com bastante força. O sangue jorrou e Rosa ainda teve forças para aprofundar mais ainda o obejeto perfurante em seu corpo. Esvaindo-se em sangue ela caiu, ostentava um sorriso macabro de satisfação, pagara pelos crimes que mandara cometer, era a autora intelectual. Paulino continuaria como prisioneiro daquela casa estranha, daquela solidão que tirou o seu sossego. Imaginava viver ali e continuar sofrendo essa dor insuportável agora agravada com esse novo episódio. Mas alguém vira a mulher entrar naquela casa que diziam ser assombrada e tomou conhecimento do que aconteceu em seu interior. A Polícia foi chamada e Paulino foi acusado de um crime que não cometera, pois não tinha como provar. Sua solidão iria continuar sim, porém em uma penitenciária.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 16/06/2022
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