MESA QUEBRADA
MESA QUEBRADA
BETO MACHADO
O mesmo vento que colocou para dentro do meu casebre as folhas do jambeiro, do abacateiro e de todo o ar quente que pairava sobre meu quintal levou, antes de anunciar a forte chuva vindo da serra, um casalzinho de jovens, para debaixo do quiosque da praça da igreja.
Entra padre, sai padre e a paróquia não consegue encontrar outra finalidade para as mesas em cujos tampos têm, centralizados, tabuleiros de DAMA, que não sejam as estabelecidas pela juventude freqüentadora daquele ambiente mal iluminado, sempre que o quarteirão de frente tem suas luminárias apagadas.
A arquitetura do quiosque é simplória, mas o telhado de quatro águas, estilo colonial, combina com o visual ao derredor. O gramado vem sendo bem tratado. Corte e varredura a cargo dos garis. Já a iluminação... Oh Divina Luz!!!! O órgão municipal encarregado da manutenção da iluminação pública vem deixando a desejar com os moradores, porém colabora com a garotada praticante do “esporte” mais prazeroso que o ser humano tem conhecimento: a atividade sexual.
O sol quase derrete as telhas de amianto, de segunda mão, que cobrem meu tosco barraco com pouco mais de dois metros de pé direito, tijolos aparentes dentro e fora, piso de vermelhão misturado com pó de sapato. Serviço no capricho de um saudoso pedreiro, morto por emboscada na época da ocupação. Tempos de dureza explícita. Salvaram-se quem pôde.
Fosse eu um religioso, diria que só aqueles abençoados por Nossa Senhora Das Graças puderam ultrapassar aqueles duríssimos obstáculos, entre outros, tiro, bordoada e bombas. Muita criança sofreu fome, sede, calor e frio debaixo de plástico preto. Muita mulher dormiu sozinha ou aconchegando suas crias, segurando barras que machões fracotes não suportariam.
O processo de ocupação do loteamento que originou a Comunidade foi osso. Osso duro de roer. Mas a tempestade de incertezas e a tristeza dos barbantes de fronteiras já passaram. Falta-me agora dar uma impulsionada de uns dez degraus acima, na minha auto-estima e transformar meu cafofo numa alcova digna de receber qualquer mortal.
A chuva inicia branda, mas logo se enfurece. Não dá para fechar as janelas ainda. O calor é tenebroso. Melhor puxar a rodo, secar com pano a água invasora do que desidratar o tão cansado quanto ocioso corpo velho. A Carobinha dorme o sono dos justos, mesmo sem conhecer justiça social. Ignorando até as intempéries climáticas como chuvas torrenciais, relâmpagos e trovões, essa gente de bem repousa seu corpo e sua consciência sobre o acolchoado das carências que a vida lhe assegura.
Cansaço nenhum é percebido no jovem casalzinho, pelo desempenho de sua tarefa: Satisfazer a volúpia de seus hormônios e suas libidos. Seus movimentos me levam a imaginar, com o coração acelerado, seus suores a escorrer e a se misturar mutuamente. O garoto, meio gordinho para os padrões de um morador de comunidade carente, conheço a família. O pai é meu parceiro de boteco. A menina é de fora. Não passa dos quinze. Menina-mulher com porte e idade de menina-moça. A dupla estuda na mesma escola. A história adora plagiar a si mesma. Desde que o mundo é mundo estudantes se enamoram, se apaixonam, se casam; ou não.
Liguei meu rádio-relógio para diversificar meu interesse, através de outro sentido. Cinco minutos para começar meu programa noturno favorito. “Uma Hora Só De Chorinhos”. Relâmpagos e trovões produzem ruídos desagradáveis. Preferi afastar o risco de emudecimento do meu fiel companheiro de insônia. Desliguei-o. Voltei à janela e os “pombinhos” ainda estavam lá no quiosque. Agora parecia uma comemoração. Dançavam sobre a mesa e, pelo remelexo de seus corpos, ouviam som de funk, dividindo os extremos do fone de ouvido. Eles só não contavam com o desequilíbrio entre o peso da dupla e a resistência da base da mesa. Aí foram os três para o chão.
Diante do estrondo, nem dei bola para o toró que caía. Atravessei a rua e deparei com os jovens ofegantes, mudos e assustados. Seus olhos arregalados apenas voltaram ao normal quando perguntei se haviam se machucado.
--- Não. Tá tranqüilo. --- Antecipou-se o garoto.
--- Não. Tô bem... Tô bem. --- Balbuciou a menina.
O tampo da mesa quebrada escorava-se em um banco também avariado, devido o peso e o baque recebido. Avistei um objeto claro sobre outro banco e logo me veio a idéia de aliviar a tensão e baixar a adrenalina dos meninos.
--- Vocês estão de parabéns!
--- Porque, Tio? --- Surpreende-se a garota
---Por fazer a lição, direitinho.
--- Ih! Tá zoando?! --- Compreende a troça o menino, com um desconfiado sorriso.
---Não... Olha ali... É por isso, ou melhor: é por aquilo ali. Apontei para uma camisinha recém usada, deixada displicentemente noutro banco.
--- Agora entendi... O tio ta ligado.
--- To ligado e preocupado com o futuro da juventude. Vocês têm todo direito de praticar sexo, mas não de espalhar filhos por aí, sem condições de sobrevivência, muito menos devem disseminar doenças sexuais, já que os preservativos dão conta de evitar essa tragédia.
--- Pensei que o senhor ia dar um esporro na gente, por causa da mesa quebrada. Desabafou, aliviada, a menina.
--- Isso é fácil de remediar... Consertar uma mesa da pracinha é “fichinha”. Difícil é curar uma sífilis, uma blenorragia ou isolar um HIV... Vocês devem usar camisinha sempre.
--- Mas os “caras” não podem saber que fomos nós que quebramos a mesa... O garoto parecia mais amedrontado que a menina.
---Ta tranqüilo. Segredo é comigo mesmo... Tratei logo de acalmá-lo.
--- Valeu, tio. Te devo essa, Fera.
Acenei positivamente para o jovem casal e me retirei, ainda sob chuva, para o meu doce ninho. Ninho que não era mais doce, por causa do desprezo e do desinteresse do Poder público municipal em acolher as demandas daqueles que formam a “Franja da Sociedade”. Extrato social tratado como o parlamento trata a minoria. Se reconhece a existência mas quase nada se faz por esse grupo. O voto da minoria é disputadíssimo mas a voz é quase inaudível.
Fui dormir com a preocupação de guardar aquele segredo comigo. E consegui. Só estou contando pra vocês agora porque já se passaram muitos anos e os riscos se dissiparam. As personagens reais, hoje, viraram fictícias. E, como tal, “entraram pelo bico do pato e saíram pelo bico do pinto. Quem gostou que conte mais cinco”.