Larissa

Sempre me perguntei o motivo de toda aquela desconfiança. De toda a sensação de estar pisando em ovos com ela. Eu olhava nos olhos de Larissa e não conseguia resposta alguma. Apesar das brigas e das farpas, eu permanecia do lado dela, sempre querendo um pouco mais... E talvez esse fosse o problema. Eu queria mais do que ela podia me dar.

No começo ela me pareceu um final improvável para os meus anos de solidão... um tipo de Deus Ex Machina... a conclusão feliz que eu tinha esperado por tanto tempo. Uma alegoria do destino num momento tão conturbado. Algo inexplicável, depois de tanta busca e desesperança... De tanto cansaço e de tanto choro em silêncio.

Eu nunca soube como lhe dizer que sentia isso. Nem com a boca, nem com um lápis entre os meus dedos. E assim, eu ia acumulando mágoas e garrafas de cervejas espalhadas pelo quarto sempre que ela ia embora.

E da última vez que nos vimos, e que ela me deixou, eu senti como se ela tivesse me acertado no meio da cabeça... e eu não tinha nada para estancar o sangue.

Me atingiu com toda sua fúria. Com ironia e frases bem elaboradas.

Ela deve ter passado muito tempo pensando em tudo que me disse... Eu acho.

Mas eram lágrimas, e não sangue, o que escorria do meu rosto, enquanto eu procurava fazer algum sentido daquilo.

Ela me acertou e eu não tinha nada. Nenhum poema de escárnio, ou uma réplica bem encaixada. Eu só tinha perplexidade... e saudade. Tinha uma varanda, uma lua pela metade no céu, e algumas latas de cerveja me esperando na geladeira. Tinha obrigações e horários a cumprir, mas nenhuma vontade de dormir.

Ela me arrancou até o sono... E das coisas que tinha arrancado de mim, era o que mais me fazia falta.

Eu tinha tido outras mulheres, é verdade. Talvez mais do que eu devesse ter tido. Mas nenhuma como ela. Nenhuma com aquela brutalidade verbal. Com toda aquela capacidade de agressão. Com toda aquela predisposição ao conflito.

Em nossas discussões palavras voavam como facas do lado dela em minha direção. Eu me esquivava como podia.

Em seguida caía em seus braços e esquecíamos tudo. Pelo menos por um tempo.

Eu não sabia lidar com aquele tipo de mulher. Ou com aquela mulher em particular.

Eu já tinha perdido a esperança de vê-la de volta, quando ela bateu na minha porta num dia de chuva. Ela tinha lágrimas nos olhos, mas eu não me atrevi a perguntar o que havia acontecido.

Larissa entrou e largou o guarda chuva atrás da porta. Sentou-se no sofá e escondeu as mãos entre as pernas. Eu fui até a cozinha e voltei com uma caneca de café. Ela abriu um sorriso amarelo, começou a enxugar as lágrimas, pegou a caneca e tomou um gole.

- Obrigada.

- Disponha, meu amor.

- Por que você faz isso?

- O que?

- Por que você me aguenta... por que você sempre me perdoa?

- Não sei. Sinceramente não sei. Talvez pelo mesmo motivo que faz você me perdoar também.

- E qual seria esse motivo?

- Masoquismo?

Nós dois caímos na risada. E ela deixou a caneca de lado, encostada no braço do sofá.

- Talvez.

- Eu pensei em escrever uma carta pra você com tudo o que estava passando na minha cabeça. Mas já que você está bem aqui, acho que vou falar logo.

- Sou toda ouvidos.

- Eu sempre quis saber porque as coisas entre nós dois parecem tão desajustadas e tão fora de tempo. Mesmo que você reclame da minha prolixidade e da minha tagarelice, quando se trata disso, eu me vejo frequentemente sem palavras e sem saber o que dizer.

- Eu acredito. Apesar de não conseguir entender...

- Olha... Você é uma pessoa difícil. Talvez a mais difícil com que eu já tenha me envolvido. Não me entenda mal. Sinto isso apenas porque eu não sei lidar com você. Não sei lidar com as situações que criamos, ou com toda a densidade das nossas discussões. Você é cheia de camadas e parece que minha visão só toca sua superfície. Às vezes me sinto frustrado por não conseguir compreender como coisas que parecem pequenas para mim podem ter uma dimensão tão grande para você... e de certa forma o contrário parece que também se aplica. Talvez eu seja um desabilitado emocional. Cego para os sentimentos dos outros e só mais um idiota que cruzou o seu caminho. Mas eu me nego a pensar que somos errados um para o outro.

- Eu sei que eu sou difícil. Talvez eu seja até meio perturbada. Mas acredite, eu tenho meus motivos... E talvez por isso mesmo que eu sempre me pergunto porque você insiste em nós dois ainda.

- Ora...você me faz sentir coisas. Me faz olhar para dentro e questionar minha imagem no espelho. Me faz querer entrar na sua vida e pedir para que você faça parte da minha. Me pego pensando sempre no teu corpo, nas tuas curvas, no nosso encaixe... no perfume dos teus cabelos e o tom da tua voz. Isso tudo me tira o sono... mas eu gosto de não dormir, contanto que você esteja comigo de alguma forma.

Larissa sorriu. Dessa vez parecia realmente sem graça.

-Eu realmente gostaria que as coisas fossem mais fáceis entre nós. ... que tudo fosse mais simples. – Ela murmurou, como se estivesse engasgada com as próprias palavras.

- Mas o que temos é isso.

Ela ficou calada e eu andei até a janela.

A chuva não dava trégua. Enfiei a cabeça pro lado de fora e deixei a chuva me molhar. Como se pudesse lavar de mim toda aquela angústia. Por uns instantes, quase me perdi na sensação... Quando voltei a mim, Larissa estava em pé, do meu lado.

- Posso ficar aqui hoje?

- Claro.

- Obrigada.

- Aconteceu algo na sua casa?

- Sim.

- Quer me falar?

- Pode ser.

Nos sentamos no sofá e ela encostou a cabeça no meu ombro.

- Estou cansada de ser mãe.

- Não sabia que você tinha filhos.

- Não tenho.

- E então?

- Quando eu tinha 12 anos, minha mãe arrumou as malas e foi embora. Me deixou com dois irmãos mais novos e com um pai desolado.

- Ela deu algum motivo pra ter feito isso?

- Existe algum motivo que justifique abandonar três crianças?

- Realmente.

- Ah. Ela disse que precisava viver a vida dela. Que o casamento estava falido. Enfim. Esse não é o ponto. A questão é que meu Pai nunca mais foi capaz de confiar ou de se envolver de fato com qualquer outra mulher. E eu precisei me tornar mãe dos meus irmãos, e até dele, talvez. Acho que é por isso que eu tenho tanta dificuldade de me investir e de confiar em pessoas... Aprendi a confiar apenas em mim mesma.

- Imagino que tenha sido muito difícil pra você.

- Ainda é difícil... Você não faz ideia...

- Sinto muito.

- Tudo bem. Eu estou me cuidando a esse respeito. Aprendendo a ser mulher pra mim, e não para os outros.

- É importante.

- Mas não estou tentando usar isso tudo pra me eximir de culpa pelas coisas que eu faço. Eu tenho consciência que tenho sido injusta com muitas coisas.

- É... As vezes sinto que você simplesmente não consegue acreditar nas coisas que eu digo. Sinto que você acha que falo as coisas da boca pra fora. Que minhas ações sempre tem segundas intenções. Ou que ando escondendo algo...

- Sinceramente, ainda não aprendi a confiar. Nem sei se vou conseguir um dia.

- Tudo bem. Eu entendo.

- Não devia entender.

- E daí. Eu não me importo.

Ela me abraçou e sorriu.

- Vou tomar um banho, tá?

- Vai lá. Vou fazer algo pra comermos.

Larissa se levantou e desapareceu no corredor que levava ao banheiro.

Eu puxei um caderno e comecei a escrever tudo o que veio na minha cabeça.

“Então meu amor. Parece que chegamos a um ponto crítico de nossa história.

Eu olho para mim mesmo no espelho e só vejo você. Até ouço tua voz quando falo sozinho.

Como se meus pensamentos fossem os teus e escapassem da minha boca sem querer.

Tudo que faço com você fica além de qualquer explicação ou tradução. É tudo tão intenso que chega a parecer irreal. Foi aí que eu desisti de tentar ignorar sua importância na minha vida. É impossível ignorar o óbvio. Eu seria um idiota se continuasse tentando. Olho para minhas cicatrizes e para as suas. Elas não parecem nada agora. Já não tem o peso que um dia tiveram. Já não conseguem me afastar de você. Me pego frequentemente pensando em nós dois. Murmurando seu nome de madrugada, ou no meio da rua e isso é quase suficiente para afastar a saudade. Eu digo quase, por que a saudade de você é algo sempre presente na minha vida. Mesmo instantes depois de te ver. Depois de ver você subir as escadas do ônibus, sem olhar pra trás... despreocupada. Por isso eu digo que chegamos à um momento definitivo.

Eu tenho diante de mim o passado e o presente. E tenho você.

Você é maior do que tudo. É a única pessoa que importa.

Não existe dúvida. Não existe escolha a se fazer.

Eu escolho você. Escolho nós dois.

Até onde der. Até o infinito, se pudermos.

Se não... que sejamos felizes no meio tempo.”

Quando terminei, arranquei a página, dobrei e coloquei dentro da bolsa dela.

Talvez eu fosse covarde demais pra dizer aquilo tudo olhando em seus olhos. Talvez eu tivesse esquecido como me expressar daquela forma diante de outra pessoa.

Tanto fazia.

No fim eu só esperava que ela ficasse.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 02/06/2022
Código do texto: T7529166
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