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Todos os dias eu passava em frente aquela loja de facas e ele sempre estava cochilando na cadeira. Eu pensava na vida fácil que aquele rapaz levava, enquanto eu tinha que chegar cedo… sair tarde… Passar o dia inteiro recebendo broncas num trabalho que detestava. Eu invejava aquele rapazinho, mesmo sabendo que possivelmente eu ganhava muito mais do que ele…

Certa vez… Eu estava circulando pela cidade no horário do almoço, quando passei pela loja e ele estava lá atendendo um cliente. Depois de seis meses vendo-o dormir na cadeira da loja vazia…vi ele acordado e disposto, atendendo um cliente. Fiquei observando os dois, até o comprador sair da loja satisfeito, com uma espécie de faca de caçador parecida com aquelas dos filmes do Rambo. O vendedor de facas me olhou fixamente nos olhos. E sua boca, por alguns milésimos de segundos… se torceu numa careta de nojo ao me ver. Mostrando-me um impaciente e nada disfarçado DESPREZO por minha presença. Me senti confuso. Me senti… triste e muito envergonhado. Virei o rosto rapidamente e saí quase esquecendo para onde ia…

 

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Era mais uma segunda feira qualquer em que eu chegava duas horas atrasado… E pouco me lixava pra isso. Não me pagavam direito há meses… Eu andava em passos curtos e despreocupados pensando em misturar sashimi com churrasco na hora do almoço. “Vai ser ótimo… posso até fingir que estou passando mal e correr logo pra casa…”. No fundo, me sentia destruído… Passei pela porta da loja de facas… distraidamente, mas logo voltei dando largos passos pra trás; como naqueles desenhos animados. O vendedor dorminhoco não estava mais lá. Uma fita amarela impedia que entrassem na loja e um desenho de giz, de um corpo gorducho e morto, estava no chão com terríveis manchas vermelhas de sangue espalhadas por toda loja. “Mataram ele…?!”… “não… não é ele…” Pensei perplexo diante daquela visão hollywoodiana no chão. Um senhor negro e grisalho se aproximou rindo e cantando… Parecia um preto velho, hoje me pergunto se ele era MESMO, real.

 

 

Foi SÁBADO que menino endoidou!

Pegou o melhor facão; O mais afiado!

MATOU o melhor patrão! Isso é coisa de capeta?

Isso é coisa de capeta? Meu jovem!?

Talvez sim, talvez não…

Num golpe só ele fez a cabeça…

Rolando no chão… rolando no chão…”

 

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Respirei fundo, apertando minha pasta contra meu corpo, como se a mesma fosse um escudo que pudesse me proteger da maldade das pessoas e do canto sinistro daquele homem… Desabotoei a camisa e segui caminhando devagar até a porta do trabalho. O porteiro me cumprimentou como sempre fazia, mas não respondi… não consegui. Dei meia volta e continuei andando, sem rumo pela cidade. Encontrei uma rua estreita entre uma lanchonete e a rodoviária. Entrei na lanchonete, me sentei, segurando uma nota de dez reais na mão e pedi um guaraná. Depois disso, tudo que pude fazer foi chorar de cabeça baixa na mesa, tentando me esconder das pessoas… O vendedor tinha um cabelo rastafári e me olhava com ansiedade. Parecia querer me avisar que meu choro atrapalharia o movimento da lanchonete… Entendi o recado, me levantei e atravessei a rua… tomei o ônibus mais caro; Era um intermunicipal que tinha ar-condicionado e tocava uma boa seleção de músicas – entre divas americanas do antigo blues, às divas nacionais do samba-canção e também Bossa Nova. Fechei os olhos e adormeci, me sentindo entorpecido… Em meus sonhos, pude jurar que havia uma chuva de facas lá fora… caindo sobre as pessoas... 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 29/05/2022
Código do texto: T7526561
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