Adriano, o feio
A pequena vila do Paranoá, abrigando pouco mais de dez mil pessoas, é tão peculiar quanto seu nome. Seus habitantes são de longe os mais mal humorados, nem sequer respondiam a um singelo e discreto "bom dia", apenas ignoravam o dono de tal ação. Andavam apressados em suas caminhadas matinais. À tarde, horário do sol castigar os transeuntes do vilarejo, é ainda pior. O sol, por incrível que pareça, aumentava ainda mais o mau humor. Há sempre um vizinho, de outro vilarejo, desavisado sofrendo as consequências, desejando um agradável dia a algum paranoaense, recebendo seu castigo por tal audácia. À noite não é o estresse o sentimento dominante, mas o medo. Horário este o qual torna todos, por um milagre, bem humorados, cheios de bom humor; assustados pelo breu noturno, a "esperança" do encontro com um malandro, torna-os simpáticos. O dia seguinte todo o mau humor retorna.
É nesta pequena vila onde vive um homem bastante conhecido: Adriano, o feio. Sua fama é dada por sua aparência deforme, único motivo pelo qual os habitantes do Paranoá esqueciam de seus mau humores e desatavam a conversar sobre o pobre. Adriano era tão feio que algumas vozes repetiam aos ares "ser mais feio do que aquele Quasimodo". Não conseguia amores nem paixões passageiras. Vivia trancafiado em casa. Os poucos amigos que possuía preferia vê-lo fora da presença de terceiros. Ninguém quer ser visto com o Quasimodo brasileiro. Seu pai, senhor Wilson, passava mais tempo em seu doloroso emprego de caseiro do que em casa. Dizia a si mesmo:
--- Melhor sofrer cortando arvores espinhosas, sofrendo cortes profundos e deixar todo aquele sangue seco em meu corpo, do que olhar para a cara dele...
Em seguida, como todo bom pai, senhor Wilson recrimina todos pensamentos maldosos os quais humilhavam seu filho. Não há culpa em nascer tão deformado, talvez seja apenas a vontade de Deus, ou o problema estaria no pai que transferiu alguma coisa ao filho? Não havia resposta. Adriano, para o desagrado do médico, já passou por algumas consultas, nada foi revelado. Tudo indicava se tratar de uma pessoa normal, mas que ficou com leves distúrbios pelo modo como teve sua infância, trancafiado dentro de casa. O único abraço recebido, em mais de trinta anos, pela criatura foi de sua mãe, dona Ana. Ela não enxergava o diabo em seu filho, mas um anjo, uma arte bela incompreensível aos olhos ignorantes. Protegia seu querido das más vozes e companhia. Certo dia, ao ir receber dois amigos de Adriano-- os quais se julgavam os melhores-- dona Ana, silenciosamente, encaminha-se para o portão e se depara com Evandro, um desses amigos, segredando ao Léo, outro suposto amigo, o seguinte:
--- Quando ele entra em meu carro, o cheiro dele impregna, não sai por nada. Prefiro cheirar bosta de cachorro, até mesmo meter a cara nela. O pior de tudo é ter aquela aberração como passageira. Cruzes...
Ambos desatam a rir, um sorriso sarcástico repleto de crueldade. Dona Ana, com os olhos vermelhos, lacrimejantes, sentia sua pele queimar, sentia angústia e uma dor aguda no peito. Dois amigos tão respeitados por seu filho, zombando dele como se fosse um bicho. Não queria impor limites a si mesma, pensou em passar de todos, porém, coerente, movendo uma força de mãe, apenas pede para aqueles dois irem embora. Evandro e Léo, tendo a vergonhosa noção de terem sido ouvidos, nunca mais ousaram a visitar aquela casa.
Passados quatro semanas, Adriano sente falta dos amigos. Nem Pereira Chico, nem Pereira Gordo, nem Pereira Ostentador foram mais visitá-lo. Dona Ana, desconfiando de todos, encaminhou alguns recados para cada um deles, em todos ela especificou amargamente: "Não venham mais visitar meu filho, ele não precisa de hienas ao seu lado. Não sabem o crime que cometem ao tratá-lo como um animal hediondo de um circo de horrores. Meu filho é um anjo, tão puro quanto Adão antes de cair nas tentações do pecado. Vocês não notam, mas são serpentes, suas almas estão podres. Leprosos de alma! A feiúra ou a beleza é dada pela percepção de cada um. Quem garante que vocês são belos? A alma é o que nos importa, pois o corpo é emprestado. Garanto que suas almas são tão feias quanto suas honras de 'amigo'. A alma é eterna, e meu filho possui uma alma pura. Vocês são uns zumbis com cérebros corroídos, servos da burrice patológica que são injetadas em suas mentes pelas mãos do próprio satanás...". Aquela carta, tão furiosa, sentimentalista, cheia de dor, atingiu os jovens que a liam. Desde então nenhum visitou o amigo "Quasimodo". Adriano, sem alguém, além de sua mãe, para conversar, entristeceu.
Evandro, Léo, Pereira Chico, Pereira Gordo e Pereira Ostentador sentiam remorso. Talvez, o amigo mais injustiçado, o Pereira Raivoso, que nunca riu das piadas dos demais, merecesse ser escutado. Entretanto, optou por esperar.
Adriano, certo dia chuvoso de domingo, sentado perto da janela, vagando por seus pensamentos, olhava para a chuva, escutava-a tamborilar. A chuva é reflexiva. O pobre rapaz, diante de um vidro da janela embaçada, perguntava a Deus sobre sua grotesca aparência. Nunca obteve respostas. Tudo que o jovem Quasimodo brasileiro sabia era de toda a verdade, pois havia descoberto, há pouco tempo, da bendita carta enviada aos amigos. Não sentia raiva, mas sentia algo estranho, uma vontade nunca sentida antes. Adriano queria matar, alguém precisava morrer para aquele sentimento sumir. Nesse dia fatídico, com a chuva relaxante tocando a mais linda das sinfonias, o sol atrás das nuvens densas e cinzas, quase noite, Adriano sai. Preferia caçar sua vítima fora de casa, a morte de um estranho não o deixaria magoado.
O som da chuva serviu como um poderoso sonífero para dona Ana e o senhor Wilson que não viram o filho sair de fininho. Com um moletom de capuz, Adriano tentava ao máximo esconder seu rosto, por mais solitária estivesse a rua. As mãos escondidas no bolso do moletom, o rapaz, tranquilamente, começa a andar a pequenos passos, apenas observando o chão e, por alguns relances, mirava a frente. Passado alguns minutos, o rapaz se depara com uma pessoa que vinha em sua direção, tratava-se de uma garota. Ela parecia ainda não ter percebido a presença do rapaz, portava um enorme guarda-chuva preto, ostentando um suéter vermelho, passos cuidadosos por conta do sapato de bico alto.
Adriano, logo reconhece. Cabelos vermelhos, pele caucasiana, lábios carnudos, olhos castanhos; sim, sem dúvida, era Pâmela, vizinha dele. A moça, em um susto, notou uma figura estranha parada a pouco menos de cinco metros. A garota diminui os passos, lentamente tenta reconhecer ou se preparar para fugir. O filho de dona Ana começa a andar em sua direção. Ele, sem nunca ter contato com outra garota, apenas tendo os carinhos da mãe, iria adorar poder experimentar aquela carne, ainda mais de uma vizinha a qual tanto observara. Tendo agora certeza de quem vinha, a jovem, que sempre temeu toda aquela deformidade tão particular e satânica, dá meia volta e começa a correr. A intensidade da chuva aumentara, abafando seus gritos. A pequena vila do Paranoá em tempos chuvosos tornava todos prisioneiros de suas casas, sem um transeunte sequer. Pâmela, tendo em vista que seu algoz corria tão rápido quanto ela, adentra um matagal e, ainda correndo, retira o celular da bolsa e liga para o padastro, Roberto. Ele atende e se depara com uma afilhada desesperada, aflita, esperando pelo pior, mas, aos soluços e gritaria, é explicado tudo.
Na casa de Pâmela sua mãe alertava ao marido:
--- Roberto, não vá fazer mal ao pobre homem, ele não tem boa faculdade mental, é doido.
--- Ora, mulher, irei matar esse maldito! Quem gosta de selvagem é aquele tal de Rousseau, cheio da ladainha do bom selvagem. Eu sou mais eu.
Com um facão tão amolado quanto uma espada sagrada, Roberto parte em busca do Quasimodo paranoense e de sua afilhada.
Já em meio aos enormes matos, Adriano, vendo Pâmela parada, inerte, atordoada por conta do horror, se aproxima e diz:
--- Hoje sentia muita raiva. Raiva de mim, da vida, da minha família, de meus amigos, de quase tudo; porém, caminhando à chuva refleti ao meu modo. Queria matar alguém e deixar toda minha raiva fluir, escorrer como essa água da chuva que escorre para o bueiro. Mas não sou assassino, muito menos um monstro como todos me pintam. Sinto muito por ter perseguido você até aqui, entendo seu medo, eu a assusto. Só queria ser seu amigo, poder conversar contigo, não vi outra alternativa. Vamos, me dê sua mão e vamos sair deste lugar.
Um tanto relutante, Pâmela cede sua mão ao Adriano. Com medo ainda, mesmo assim, ela notou não se tratar de estar diante de um demônio, mas de um ser humano. Nesse ínterim, surge a figura furiosa de Roberto. O homem, sem misericórdia, golpeia inúmeras vezes Adriano. Pâmela gritava para que ele parasse, mas Roberto, tomado por uma raiva que nem mesmo ele entendia, furava e furava o pobre Quasimodo brasileiro, levando-o à morte.
Roberto, em seguida, levou uma forte pancada na cabeça e caiu jazido morto no chão. Pereira Raivoso, com a expressão furiosa, aos prantos, segurava uma barra de ferro em uma das mãos. Ele olha para Pâmela e sai dali sem dizer nada. Tudo que se sabe, para elucidarmos a mente, é que Raivoso, depois de algumas semanas de ter recebido aquela carta de dona Ana, foi conversar com o amigo e o viu perseguindo uma jovem, no entanto, perdeu-se naquele matagal, encontrando o amigo sendo esfaqueado por um homem.
Pâmela relatou os pormenores à polícia diante de uma mãe depressiva, culpando-se pela fuga do filho; dos amigos, pela falta de mais amizade e sentimento. Pereira Raivoso tornou-se procurado. Adriano passou a ser chamado postumamente de: Dri, a bela alma.