DIMINUTOS (para leitura de minutos)
CONTÁGIO DERRADEIRO E FATAL
O tipo, esbaforido, entrou no apartamento. Passou álcool nas mãos e foi direto tomar banho com a água mais quente que suportou. Na rua, havia cruzado com uma prima que não lhe pareceu bem. A última onda de pandemia era a mais grave de todas. Sem conter o nervosismo, apanhou uma revista e pôs-se a ler. Horrorizado, percebeu sua crescente dificuldade em entender o que lia. Havia contraído o vírus! Impiedosa, a ignorância contagia com incrível rapidez.
CAPTURAR CUPINS JÁ FOI MAIS FÁCIL
Antigamente, no Rio, surgiam, à noite, nuvens de insetos voadores chamados de cupins, mas de espécie distinta da que constrói aqueles enormes cupinzeiros de barro no interior brasileiro. Atraídos pela luz, punham-se a voar em volta das lâmpadas nos tetos. Tinha-se de erguer uma bacia com água para capturá-los e evitar que ficassem nos lares, a destruir móveis de madeira. Quase não se vêem atualmente. Em compensação, sobram cupins, sanguessugas e outras pragas destrutivas que não há bacia capaz de resolver!
AVISOS ÚTEIS
Não confundir Pilates com Pilatos.
No primeiro, você sua a camisa.
No segundo, lava as mãos.
DO TELEFONE AO CELULAR: A GRANDE EVOLUÇÃO
Demorou tanto a contatar a namorada que, quando conseguiu, ela já tinha outro internauta.
VERSOS DUVIDOSOS
Alaíde mente
Ou é louca
De dizer a verdade?
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Quem traz,
Atrás,
A dor atroz,
Não vai pra frente?
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Vai ser um parto
Alcançar o porto
Mais perto?
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Café solúvel
Que não se desfaz
Na água e no leite.
Mistério insolúvel?
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Como refazer as troças
Desses meros traços,
Já destroçados
Por obra das traças?
VIDA ABJETA
Mais um dia arrastado para aquele tipo de meia idade, desesperançado, que mal pode mover-se no leito. Resta-lhe olhar, das paredes para a janela do seu quarto-prisão, da janela para as paredes. Amarga sua paralisia, a vida insípida, o insucesso no trabalho, os raros amores de que fugiu. Eis que um pássaro passa pela janela e vem pousar na cama. Sonho de criança a realizar-se afinal? A ansiada compaixão? A ave logo se vai, contudo, após vazar-lhe os olhos, incapazes de enxergar em toda uma existência.
VELÓRIO INSÓLITO
Muita gente da cidadezinha compareceu ao velório de Cipriano Martins. Afinal, era um tipo bastante conhecido localmente. Quatro defuntos postaram-se próximos à janela maior, onde circulava mais ar. Três irmãs, falecidas num único acidente, estavam perto do ataúde. Diversos outros mortos espalhavam-se por toda a sala. Alguns cadáveres permaneciam de fora. Sentado em seu caixão, Cipriano cantarolava e refletia consigo: “tantos vêm velar-me, mas permanecem imóveis, inertes, sem sinal de sentimento”.
O GOSTO DA MASSA
Haroldo está contente. Após muita dificuldade inicial, sua padaria prospera, cheia de fregueses. Um tipo soturno e mal vestido passa defronte à vitrina e dirige o olhar faminto aos pães ali expostos. Haroldo reconhece-o. O banqueiro inflexível e impiedoso que lhe negou empréstimo tantas vezes. Abandonado pelos clientes, vítima da falência. A breve e maldosa alegria do padeiro cessa com um calafrio. O êxito do seu negócio depende de outra massa: dessa gente, volúvel, que muda de gosto de uma hora para outra.
Janeiro/fevereiro 2022.
Outros textos do gênero em JAX, Microcontos, Mini-Poemas, Curtas Reflexões para uma Vida Breve, Ed. Assis, MG, 2020.