Encontro marcado
Acordava lentamente. Seus olhos custavam a abrir. A cama parecia abraçar-lhe convidando-lhe a permanecer por mais uns instantes. Chegou a sentir o cheiro do café fresco no ar, o mesmo que perfumou sua infância quando em festa a mãe lhe acordava dizendo que o café estava à mesa. E sorrindo, foi abrindo os olhos lentamente, na esperança de ainda vê-la ou ouvi-la cantarolando pela casa.
Há muito saíra de casa, vindo morar na capital fazendo carreira na empresa onde alcançara, através de muito esforço, o cargo de diretor de planejamento. Assim como seu trabalho carregava em si o hábito de uma vida totalmente planejada e organizada. Portanto, não se permitia permanecer na cama além do horário habitual, no qual por trinta anos vinha despertando. Aliás, sua vida parecia-lhe agora uma planilha, totalmente organizada, disciplinada e planejada.
Entretanto naquela manhã, algo estava diferente. Dentro dele alguma coisa havia mudado. Decidira ficar mais uns minutos, deixando o corpo despertar lentamente... E assim foi abrindo os olhos até que, como uma rajada de vento gelando-lhe a alma, lá estava ela, em pé ao lado da cama, olhando-o fixamente, observando-o em seu despertar. Fechou novamente os olhos e os tornou a abrir pensando estar tendo uma alucinação. Mas não, lá estava ela como antes. Olhando-o calmamente...
Sem pensar duas vezes, levantou-se num sobressalto. Há muito esse encontro fora marcado e, no entanto, esquecera completamente naquela manhã que se fazia tão mágica. Realmente, algo havia mudado dentro de si. Nunca esquecera assim um compromisso, nunca chegara atrasado a lugar algum, só não sabia ao certo o que estava mudando... Correu para o chuveiro e, enquanto tomava banho, lembrou sua infância ao lado dos pais e irmãos na grande fazenda. Sempre era o primeiro a aprontar-se para ir à escola. Tinha sempre que esperar pelos irmãos e isso o aborrecia extremamente. Nesse momento, veio-lhe a mente Thereza. Sentava-se dois bancos à sua frente na pequena escola onde estudava. Tinha os cachos dourados mais lindos de toda classe. Não fosse seu temperamento metódico e planejado, ter-lhe-ia roubado um beijo que talvez lhe ficasse marcado pelo resto da vida, afinal, não dizem que o primeiro beijo nunca se esquece?
Sorriu com esse pensamento. Há muito tempo não recordava sua infância. Não havia em sua vida tempo para isso. Seu trabalho consumia todo seu tempo, fato esse de nunca ter se casado. Agora esses pensamentos não lhe saiam da cabeça. “A vida poderia ter sido muito diferente se houvesse uma família. Mulher, filhos, dois talvez...” Sem duvidas, algo estava diferente, alguma coisa mudara em seu íntimo, algo que não conseguia ainda explicar. Mas, explicações para quê? A vida toda procurara explicar todos os seus atos, justificando seu modo de ser e agir, sempre... Talvez agora seja a hora de não buscar explicações, apenas sentir. Sim, eis aí algo que há muito tempo não fazia, sentir! A tensão nos negócios roubava-lhe não só o tempo como também os sentidos. Dedicara toda sua vida ao seu trabalho, agora vê isso claramente...
Ao fazer a barba, parou diante da imagem refletida no espelho. Via-lhe agora mais nítida que no momento em que acordara. Continuava ali ao lado, em pé no quarto, esperando por ele. Procurou por sua face tentando enxergar-lhe através do véu espesso e pensou em como pôde ter se esquecido desse compromisso, talvez o mais importante de toda sua vida... “O mais importante?” Parou novamente diante do espelho olhando para si mesmo. Lembrou-se de Vera, incrivelmente bela ao seu lado enquanto fazia a barba, brincando com a espuma de seu rosto. Sorriu com a lembrança. Como estaria Vera agora? Teria casado, tido filhos? Sua primeira namorada, Vera foi quem lhe apresentou o amor fazendo-lhe homem. Lembranças como os momentos que tiveram juntos, jamais esqueceria. Sentiu forte o desejo de reencontrá-la, mas logo percebeu que ficara gravada nas páginas do passado onde não mais poderia mexer...
Dirigiu-se ao quarto, olhou-a mais uma vez. “Será que ela está percebendo meu constrangimento? Será que está irritada com meu atraso? Será que percebeu que me esqueci?” Não perguntaria isso a ela, aliás, melhor nem tocar no assunto e tratar mesmo de se apressar. Temia dar-lhe argumentos para que iniciasse uma discussão onde certamente ele próprio seria o perdedor.
Nesses pensamentos, viu-se novamente na fazenda. Lá havia nascido e se criado. Nas terras onde dera seus primeiros passos nunca mais pisara desde o falecimento dos pais. Morte por acidente, perdera pai e mãe enquanto viajavam pelas estradas da região. Momento difícil em sua vida onde contou com o apoio de Rebeca. Vizinha de sua fazenda, filha mais nova do Coronel Alvides. Colocou-se ao seu lado durante todo velório e enterro. Permaneceu ainda por alguns anos. Amara Rebeca, não com o mesmo amor que tivera por Vera, mas a amara. Ou seria gratidão? Difícil discernir os sentimentos, principalmente quando se encontra em estado de fragilidade... Bem, ficaria com o amor, afinal, amor é sentimento mais nobre que gratidão apenas, especialmente no que se refere a relacionamento homem e mulher.
E pensando assim, olhou-a novamente. Sensual em seu vestido negro, trazia o rosto coberto por um véu espesso. Não conseguia enxergar-lhe a face, fato esse que o aborrecia profundamente. Todo passo que dava pela vida era calculado e tinha que ter total visão, assim nunca os riscos eram grandes demais. Como em uma reunião que tivera e que acabou lhe dando o cargo que ocupava. Sabendo que estaria em meio aos que poderiam decidir sua carreira, estudou meses antes o mesmo projeto que apresentaria. Dedicou todo seu tempo livre, o que já naquele tempo era pouco, aos estudos necessários para que tivesse um bom desempenho na reunião que poderia mudar-lhe a vida. E conseguiu. Lembra-se claramente do gosto da vitória, do reconhecimento por tanta dedicação e estudo. Sim, tudo valera a pena em sua vida, todos os seus esforços e estudos o levaram a mais alta realização, pessoal e profissional, pelo menos assim o pensara até o presente momento...
Nesses pensamentos, seus olhos encontraram os dela que lhe fitava através do véu. Sentiu nesse momento o quanto havia sido tolo. Afinal, o que ganhara? Nada! Sua vida tornara-se extremamente vazia. Perdeu as pessoas de seu maior apreço nas estações por onde sua vida passara. Hoje estava ali, somente ele e ela. “Como queria ter alguém aqui, além dela, com o rosto descoberto, onde pudesse ver os olhos sem sombras e através deles sentir-lhe a alma, o amor...” Sentiu uma única lágrima a correr pela face. Secou-a e continuou a aprontar-se. As roupas impecavelmente penduradas no armário mostravam o perfil do homem organizado e sistemático que sempre fora. Estava ali, o terno preto, calças, camisa. O problema sempre foram as gravatas. Como era difícil ser metódico, perfeccionista e sozinho. Sempre sofria no nó da gravata. Mas dessa vez, parecia-lhe mais fácil que das outras e como em um passe de mágica, ali estava ele, de gravata e tudo.
Olhou-se novamente no espelho e pode apreciar a imagem que o mesmo lhe devolvia. Totalmente impecável em seu terno negro. O preto sempre lhe caíra bem... Não fosse a face um tanto empalidecida demais naquela manhã... Chegava a realçar escandalosamente, contrastando com o preto do terno que lhe tomava o corpo.
Já totalmente vestido, escolheu o perfume que fosse mais adequado para tal ocasião. Ela parecia aprovar-lhe o gosto. Ao sentir o cheiro, viu-se em uma das viagens que fizera a negócios pela Itália onde conhecera Anna. Bela mulher de quadris avantajados. Sim, sempre gostou muito de quadris, e Anna parecia-lhe a obra de arte mais bela que já vira em toda sua vida. Era amor? Não como o que conhecera com Vera, mas... Já dizem os grandes filósofos românticos: “Todo amor é amor, embora um sempre diferi do outro”. E ele agora acreditava nisso, exatamente assim. Amara sim todas as mulheres que passaram por sua vida, embora nenhuma permanecesse. Sentiu-se novamente amado, como se todos seus amores, agora nesse momento, voltassem a amá-lo.
Lembrou-se novamente da mãe a sorrir-lhe da varanda da fazenda enquanto se encaminhava para a estrada, quando decidira tentar a vida na capital. Era linda sua mãe. Seus olhos irradiavam uma paz tão grande quanto a que sentia nesse momento, ali, olhando para ela.
Tudo estava pronto e terminado. Havia se preparado com todo exímio que marcara toda sua vida, tanto pessoal quanto profissional. Encaminhou-se para ela, olhou-a mais uma vez através do véu que cobria-lhe o rosto e, em um gesto ritualístico, desnudou-lhe a face levantando o véu. Linda, como nunca a imaginara. Totalmente em paz e confiante, dá-lhe o braço e seguem de braços dados pelo caminho tão novo, quanto o novo homem que nascera dentro de si transformando-lhe naquela manhã.
***
http://acrampin.blog.uol.com.br