O baú de histórias

As batidas na porta anunciavam que a entrevista estava para começar, Sophia Cruz assentiu que sua secretária abrisse:

-Senhora Sophia, os jornalistas chegaram e a aguardam no salão principal.

-Diga que desço em de quarenta minutos.

Necessitava de um tempo a sós com a estranha mulher refletida no espelho, um encontro que há muito não acontecia, Sophia nem se lembra de fato se alguma vez aconteceu, encarou seus olhos no espelho, o diagnóstico entreaberto em cima da penteadeira, os tufos de cabelo grudados na escova e as palavras do médico ecoando repetidamente em sua cabeça: “Podemos tentar alguns tratamentos, mas já está em estágio avançado”. Sorriu pensando na ironia de tudo aquilo, uma entrevista tão esperada e por ela tão sonhada que aos poucos ia se transformando em um pesadelo, no mesmo dia que falaria sobre seu prêmio literário, contaria sobre seu terrível diagnóstico, lembrou dos ensinamentos da mãe, uma cristã fervorosa e pensou estar sendo castigada por alguma lei divina, porque o universo que ela havia se apossado, nunca fora realmente dela, lágrimas escorriam pela face pálida, enquanto um filme passava por sua cabeça:

O ano era 1995, Sophia com dezoito anos na época, entrando para último ano do colegial uma garota bonita e fútil ou, que pelo menos tentava parecer para fazer parte da turma de seu namorado; o ciumento e explosivo Murilo, eles praticavam bullying com quem quer que fosse, uma vítima em especial dessa turminha: Luís Gustavo Machado, um garoto que independente do clima vestia-se da mesma forma; moletom preto de touca e calça preta, um garoto extremamente inteligente que parecia viver em uma realidade paralela, sempre de cabeça baixa devorando um livro, a forma como aquele menino agia, parecendo viver em uma redoma impenetrável despertava algo em Sophia, ela não sabia se uma aversão ou atração, até que um dia, durante uma aula de história ela ganhou um passe para adentrar o universo de Luís Gustavo Machado, risos povoaram a sala de aula quando o professor anunciou que ele seria a dupla de Sophia no trabalho sobre Antônio Conselheiro.

Começaram se encontrando na biblioteca e conforme o trabalho progredia uma amizade nascia, e antes, as conversas apenas sobre a matéria, passaram a ser do cotidiano e depois mais intimas e quentes como se os dois desejassem serem descobertos um pelo outro, Sophia soube que Luís era filho único, e depois da morte do pai, a mãe entrou em uma depressão profunda passando a maior parte do tempo dormindo, Luís que cuidava de praticamente tudo, ele tinha um lado sensível não encontrado em nenhum homem que ela conhecia, e ela tão expansiva passou a encher de vida a redoma em que ele vivia, o trabalho passou a ser feito depois das aulas na casa de Luís, como a mãe dele sempre dormia os dois ficavam a sós. Depois que terminavam, ela sentava sobre um grande baú que ficava em frente a uma estante lotada de livros, ali ele apresentava diversos títulos e autores para Sophia, e mesmo após a conclusão do trabalho as visitas continuavam, o amor que ele tinha pela literatura era algo admirável, ele sempre emprestava um livro para ela, e ela lia rápido ansiosa para conversarem; Shakespeare, Jane Austen, Dostoievski, George Orwell, Ray Bradbury , Machado, Tolstói entre tantos outros que ela aprendeu a amar e na mesma intensidade que crescia o amor dela pela literatura, crescia também o amor por Luís, em uma tarde, ela se emocionou enquanto ele citava um trecho do Pequeno príncipe, e ao entender o porquê “o essencial é invisível ao olhos” o beijou, de início um beijo tímido que foi crescendo até expressar tudo que eles vinham guardando há meses, e assim fizeram amor, pela primeira vez Luís pôde experimentar o que até então ele só conhecia através dos livros, e naquele dia ele contou algo a Sophia nunca antes revelado; que ele também escrevia, diariamente, compulsivamente desde os onze anos, ela curiosa pediu para ler, e ele então abriu o baú, estava repleto de textos; livros, contos, poemas, ela admirada ao ver tanto talento. Se despediram com um beijo e foram avistados por um amigo de Murilo que passava naquela hora em frente a casa, não demorou para que o fuxico se espalhasse, Sophia, na época tão covarde, para as amigas e para Murilo negou tudo, argumentou que jamais se envolveria com alguém esquisito tipo Luís Gustavo Machado, e que o amigo de Murilo estaria inventando pois ele seria a fim dela, e ela negava-lhe as investidas.

Naquela semana Sophia sentiu falta de Luís, que passou a faltar ás aulas, não se sabe se pelo coração partido ou pelo medo das ameaças de Murilo, Sophia sofria com saudade ao olhar o lugar de Luís sempre vazio, e esse mesmo vazio instalou em seu peito, decidiu contar a verdade para Murilo, que saiu transtornado e tomado pela raiva. Naquele mesmo dia enquanto se arrumava para ir até a casa de Luís, ansiosa para vê-lo e sentindo-se aliviada e livre para viver seu amor, o telefone toca, ela já pressentiu algo errado e a tragédia fora anunciada, um crime passional provocado por Murilo, tirou a vida de Luís, pouco tempo depois a mãe de Luís se matou.

O mundo desabou para Sophia, então ela achou um jeito de ficar perto de seu amor, através dos textos, ela tinha a cópia da chave e foi até a casa de Luís antes que algum herdeiro distante aparecesse, pagou um amigo para ajudar levar o baú, naquele baú estava a alma de Luís, e ela ansiava por devora-la, lia todos os textos, encantada com o talento e a sensibilidade daquele que era seu grande amor.

Passados dois anos daquele episódio, Sophia soube na faculdade que haveria um concurso de contos, que o prêmio para o primeiro colocado seria uma boa quantia em dinheiro, como na época precisava, não obstante usou um conto de Luís Gustavo assinando seu nome e claro, ganhou em primeiro lugar, e então descobriu que aquele baú, além da alma de Luís possuía um tesouro, e assim se apossou de toda a obra e passou publicar todo o trabalho dele, vestiu-se de uma personagem e acabou se tornando uma revelação para a literatura brasileira e depois uma escritora renomada, é incrível como algumas pessoas passam por nós e mudam completamente o rumo de nossas vidas, Sophia até tentou escrever os próprios textos, fez cursos, mas sabia que não era só a técnica, e sem o talento e algo de mágico que Luís trazia com as palavras nunca chegaria onde chegou, e se entristeceu ao pensar que ninguém nuca soube quem ele foi, e sua trágica história. Pensou que talvez revelando toda a verdade naquela entrevista teria uma chance de ir em paz e dar o crédito de tudo aquilo para a pessoa certa. A culpa corroía sua alma, uma culpa abafada por mais de vinte anos que em algumas noites tentava aparecer e era sufocada, mas agora ela sabia que o momento estava chegando não tinha mais para onde fugir, e se ela encontrasse Luís depois de sua morte? Ela que sempre foi covarde com aquele que de alguma forma havia salvo a vida, respirou lentamente por alguns momentos, olhou no relógio havia passado 35 minutos estava na hora. Revelar toda a verdade, arranhar sua reputação, e se demorasse para acontecer, como seria sua vida até a morte, fazer as pazes com Deus, morrer em paz? Questões que passavam pela cabeça e fazia o coração acelerar, sorteou uma carta do tarô como conselho: A Torre

Novas batidas, se levantou em direção a porta, abriu ia descendo lentamente degrau por degrau, pediu para que sua secretária esperasse pois havia esquecido algo, voltou para o quarto em cima da penteadeira estava a máscara, a mesma que se encaixava perfeitamente pois já era usada por muito tempo, vestiu, olhou o reflexo de Luís refletido no espelho, a secretária aguardava na escada, Sophia voltou dizendo

-Agora sim estou pronta, agora podemos começar.......

Cecília Micheleto
Enviado por Cecília Micheleto em 05/05/2022
Código do texto: T7510078
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