No âmago da doçura

Um espantalho tão mal feito que nem de longe possuía aparência humana. Você já esteve em um canavial antes? Perguntou Mário à prima. Só vi mesmo pela televisão, respondeu a moça que, quando estivera na fazenda dos avós era ainda bebê. Somente aos quatorze anos pela primeira vez pode conhecer e explorar o local na companhia do primo. Companhia agradável, exceto pela expressão entre séria e maliciosa que o rapaz apresentava vez ou outra.

Vamos embora, Mário. Não há nada pra ver aqui.

Como não? O rapaz sorria. Um espaço bonito desses! e seguia adiante da moça sem olhar para trás. O lugar era amplo e quase bem cuidado, e o rapaz o conhecia bem, andando com desenvoltura pela plantação enquanto o dia, alaranjado, começava a cair em despedida.

É sério, Mário. Prometi que ajudaria a fazer o jantar. Vamos embora.

Você já ouviu que nos canaviais sempre há um corpo deixado misteriosamente?

Pare de bobagem que eu não acredito nessas coisas. Ainda mais por aqui. Brincadeira sem graça!

Chegaram assim até um espaço descampado, uma espécie de clareira. Mário, ignorando os apelos da prima, sentou-se no chão.

E os sapatos também ficam, como prova de que alguém passou, mas não chegou onde queria. Os canaviais são maiores do que os planos do homem.

Já chega, Mário. Estou voltando, pode continuar se divertindo.

A moça retirou-se e seguiu sozinha, vez ou outra olhando pra trás, para ver se o primo a acompanhava. Há alguns metros dali, encontrou perdido um pé de sapato de homem, preto, como a noite recém-nascida nas fazendas. Nesse momento apressou o passo. Ainda no canavial, ao olhar pra trás pela última vez, viu ao longe um corpo esguio, estendido entre o nada e folhas altas.

Seguiu apressada até a casa, vendo de longe o espantalho tremular e a lua surgir sisuda, grande, de um brilho contido, mas encantador. Assustada, recebeu e bebeu a água dada pela tia. Pura, pois o açúcar tinha acabado. Alguns vizinhos chegaram para saber do ocorrido. Mário não voltou para o jantar.. As histórias, essas nunca se ausentaram, apenas seguem transitando de uma família a outra.