No leito de morte de um quase vivo
Em reverência
ao criador da morte
e da vida
Cabisbaixo andava Seu Schneider.
E não era por estar em seu leito de morte.
Algo mais profundo e íntimo o perturbava crescentemente desde a descoberta do mal. Nas últimas semanas, com a debilidade, revolvia-se a escrutinar seus próprios pensamentos, lutando para identificar o ladrão de sua paz.
Noventa e sete longos anos. Uma vida estável à frente de uma tradicional empresa de venda de caminhões. Uma viuvez contrabalançada racionalmente com as bodas de diamante ao lado da mulher. Dois filhos e uma filha que mantinham o negócio em família. Todas as orações de irmãos e irmãs da comunidade luterana, alguns dos quais filhos e netos que nem bem conhecia de amigos já falecidos. O que, afinal, pressionava teimosamente seu peito?
A difícil infância na roça, com seis irmãos jogados na plantação de fumo. A peculiaridade de gostar de números e alguma esperteza que o levaram, pelos infinitos possíveis caminhos da vida, ao sucesso financeiro, diferentemente dos demais, ainda se enfurnando para embonecar os fardos de fumo.
Tinha sido, apesar de tudo, desapegado. Todos os irmãos o amavam não só pela mão aberta, pela generosidade sincera, mas pela humanidade e pela compreensão. Era uma criança que sabia ser séria quando necessário.
Já repetiam-se em sua mente cansada, filmes e mais filmes de momentos memoráveis em família. Os melhores? As brincadeiras e traquinagens com seus filhos pequenos... Os sorrisos que causava em todos... Sim, a labuta o tinha levado ao exterior; sim, ele tinha, além de um lar, uma residência abastada, com direito a alguns luxos; sim, a fé o tinha não só livrado de caminhos tortuosos, mas lhe conferido, ao longo dos anos, o dom da conversa sisuda, mas amável; mas, se tivesse que jogar no fundo do mar alguma coisa, tudo, menos o tempo vivido ao lado da infância dos filhos.
Demoraram-se dois meses – justo aqueles em que mais perdeu forças, em que o corpo, tomado, não mais permitia o governo dos membros – para que, como um último lampejo divino, o entendimento chegasse: havia amado de forma equivocada desde a primeira grave conversa de consultório. Escondera o diagnóstico o tanto quanto pôde; agora, acamado, nem bem permitia a aproximação dos seus.
Mas, eis que naquele dia, com semblante iluminado, mandou chamar os filhos, todos os três, mesmo se em viagem. Havia urgência na solicitação. Um misto de gratidão pela lucidez última e remorso pela falta cometida.
Dois dias se passaram, pois ninguém esperava tamanho acelerar da decadência, mas, Marta, Carlos e Roberto, enfim, ali estavam. Ao recobrar efemeramente os sentidos, o lento abrir de olhos fez lágrimas silenciosas, do tamanho de uma vida, descerem sinuosamente nas faces dos três, mas também dos cônjuges.
Ele reuniu forças, pois a parafernália hospitalar não permitia a palavra. A mão direita, trêmula, com dedos rijos, dirigiu-se ao coração e bateu no peito. Marta não percebeu o sonoro soluço mesclado a riso que lhe escapou e que sinalizou a todos a compreensão: Sim, ele entendeu! Então a mão se dirigiu aos três, que já rodeavam a fria maca, esquentando de calor amoroso aquele momento, e apontando-os, disse-lhes sem dizer: “Vocês foram a minha maior alegria. Eu os amei tanto, tanto! Mais do que tudo nessa vida. Eu só queria protege-los. Só isso. Mas estava errado. Queria tanto ter mais tempo para abraçar vocês... Mas eu estou com Deus e vou espera-los”.
E, ao mesmo tempo em que o peito se curou, o olhar se tomou de fixidez.
Partiu como queria: brincando com suas crianças.
Daniel do Vale
29.04.2022
(Dia 1º de maio
foi o dia em que
meu velho se foi)