Outono chegando e com ele as lembranças que Alev trazia guardadas em sua caixa de madeira, recôndita no guarda-roupas. Alev era o filho mais velho de Samia que chegou ao Brasil em 1964 em seu ventre. Um menino de ouro. Incapaz de causar qualquer dano. Formou-se médico. No interior de Tocantins, viveu os melhores dias, como residente num hospital público, mas era a cirurgia plástica que o tornaria mais conhecido, inclusive, nas cidades do Hemisfério Sul. Foram 22 anos de dedicação exclusiva ao ofício, deixando de lado, inclusive, a família que constituiu, com dois filhos. Tudo ia muito bem até o outono de 2012. Como era de costume, aos sábados, Alev recebia em seu consultório, os pacientes vindos do interior. Na sala estavam o Seu João Cintra, Adélia, Pedro, Suzana e D. Marise. Esta, desde a juventude, apresentava na face um tumor benigno de grande porte, com o qual se acostumou, já que tendo poucas posses, não poderia retirá-lo. Mas sua autoestima nunca foi elevada. Era apontada na rua e sempre afirmava, categoricamente, que gostaria de ficar ainda mais linda para o seu marido. Os filhos, juntaram suas economias e a presentearam, no Dia das Mães. O médico marcou a data e cobrou, humano tal qual era,  2/3 do valor. No dia da cirurgia, Sr João entrou na antessala e presenteou o cirurgião com uma fotografia da família, afirmando ser a última em que Marise sairia desfocada. Seu olhar parecia perdido, como se não o fixasse. Todos reunidos na sala de espera. Até que no momento exato em que a anestesia era aplicada, ouviu-se o som das  máquinas e Alev gritar, desesperadamente: -Volta, Marise. Volta. Por favor, volta. Deus?

A sala de cirurgia ficou silenciosa. Um a um saia e, Alev, destruído, sugeriu ao anestesista que desse a notícia aos familiares. -Infelizmente, D. Marise possuia alergia não diagnosticada à propofol, vindo à óbito. A história da família o havia invadido e Alev jamais seria o mesmo. Faltou-lhe coragem para encarar os olhos frios de Sr. João. Mas o que não esperava, é que num certo dia, em plantão hospitalar, o encontraria, em tratamento de hemodiálise. Ficou observando-o,  mas parecia que o homem não o encarava. Encheu-se de coragem e foi com ele falar. Mas antes, ao se sentar ao lado, sendo-lhe aplicada a medicação, deu conta de sua conversa com a enfermeira e não conteve o choro: Sr. João era cego de nascença. As lembranças da fala de D. Marise carimbaram sua mente: - Quero ficar bonita para o meu marido. Alev saiu de fininho, sem condições, sendo amparado pela enfermeira. E todo ano, próximo do dia das mães, chora feito um menino por causa daquela última foto que Sr. João nunca viu, nem mesmo a face de Marise.

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 26/04/2022
Reeditado em 26/04/2022
Código do texto: T7503504
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