Âncora
A luz do sol incidia por meio das cortinas amareladas do fim da tarde, pintando de amarelo o casco esbranquiçado do barquinho. Uma cobertura quente sobre uma madeira tão fria.
Um pequeno e simples barquinho. Pálida tinta. Arquitetura sem uma mísera gota de complexidade. Poste de vela marrom, porém sem o hasteamento da dita cuja. Quebrável madeira. Sem reforço. Sem proteção adicional. Sem robustez. Um barquinho sujeito a quaisquer maldades que possam assombrá-lo neste oceano que o sustenta feito chão. Isolado em seu lugar particular. Imóvel. Inerte.
Não sabia para onde ir. O medo do desconhecido mantinha a sua vela escondida. Nutria uma aversão pelo desconhecido. A incerteza era o berço de uma ninhada de temores, paranóias e ansiedades. Havia optado pela paralisia. Paralisia de movimentos, rotações, direções e deslocamento. Contentava-se em sua zona de conforto. Seu porto seguro. Seu espaço particular. Nada podia quebrá-lo, afundá-lo, muito menos riscar a tinta de seu casco.
Quando os céus estavam prestes a apagarem a sua lâmpada natural e se cobrirem com os negros cobertores da noite, o barquinho ouviu um molhado cachoalhar de barbatanas. Barbatanas recém retiradas da água. Ouvia aquele som se repetir uma centena de vezes, todas simultâneas. O barquinho, intrigado por aquele conjunto desarmonioso de sons, olhou para a sua fonte…
Um cardume de peixes. Vários peixes sedentos por água, se afogando no oceano de nitrogênio e oxigênio. O sufocar deles era encarado como um sinal de vitória para o seu sequestrador: O barco pesqueiro.
Era maior que o barquinho em todas as dimensões. Casco reforçado, mais alto e um comprimento mais poderoso que o seu semelhante. Os arranhões, a pintura desbotada, suas cicatrizes… Todas eram marcas do tempo. Indicativos da experiência daquele barco. Comprovações de sua robustez. Presentes adquiridos com a idade.
À medida que observava o barco pesqueiro puxar a rede que continha o alimento que sustentava o seu navegar, mais o barquinho alimentava a sua certeza acerca da individualidade dele. Do seu caminho. Do seu senso de direção. Da sua jornada.
Havia gravado em sua mente a grande quantidade de sabedoria esbanjada por aquele barco. E era uma sabedoria que ele queria seguir e na qual ele queria se apoiar.
Achou a sua bússola.
O barquinho pegou a sua simples e humilde âncora e a jogou sobre o casco do barco pesqueiro. Ela a atingiu com sucesso. No começo, o barco estranhou a presença daquele barquinho no seu encalço, porém logo tratou de recebê-lo com os braços abertos. Abrigou-o em sua jornada e o presenteou com uma parcela do cardume que havia coletado do mar.
O barquinho estava feliz e confortável. Feliz por ser sustentado por outro barco que o alimentava e o abrigava em seu navegar. Confortável por ter encontrado um norte que poderia seguir. Um caminho de referência. Um percurso seguro para ele.
Encontrou um final feliz junto do anoitecer. E dentro dele, iniciou o seu adormecer.
***
Seu sono foi violentamente interrompido por um rugido gigante dos céus. Um rugido que abraçava cada gota de água do oceano e assombrava sua frágil estrutura. Cada rugido era precedido por claros rasgares do céu. Rasgares brilhantes com começo, meio e fim. Era como se os deuses estivessem zangados. Gritos de fúria. Tentativas incessantes para violarem o véu que separava o reino terreno dos deuses.
O barquinho sentia medo… medo este que foi temperado por um cheiro forte. Um cheiro de queimado. Fumaça. Chamas.
Ele olhou para frente e presenciou o horror. O barco pesqueiro dormia com um cobertor de fogo. Aquecia-se para o seu sono eterno e definitivo. O barquinho, no auge de seu desespero, usou o pouco que poderia usar de sua razão, e concluiu que aquele cobertor foi um presente. Um presente dos deuses. Uma chama resultante do gotejar de um dos rasgares do véu preto que coloria a noite.
Para consolidar o seu sono, o barco pesqueiro afundou lentamente no oceano. Precisava de uma cama para guardar suas estruturas. Estruturas estas usadas pelo cobertor para alimentar o seu dançante vermelho.
O barquinho tentou salvar o seu guia por meio de um forte puxar de sua âncora, porém não havia salvação. Não existe salvação para aqueles destinados ao sono eterno. Era triste ver como o seu referencial para uma vida confortável se desfazia em cinzas por conta do inflamado abraço de seu cobertor. No fim, teve que retirar sua âncora. Não queria seguir a nova jornada do barco pesqueiro. Valorizava a sua existência a ponto de não deitar-se no fundo do oceano.
No fim das contas, sua âncora voltou com a rede de pesca, a maior lembrança que tinha daquele barco pesqueiro.
***
O raiar da manhã começava com um lamentar. Um lamento pela direção perdida. Pelo alimento perdido. Pela volta à inércia.
Em seu lugar, habitaria o seu túmulo. Seu destino final. Sua última aparição.
Acreditava fielmente que não havia mais esperança para ele. Sem uma direção concreta para seguir. O medo que freava seus movimentos.
O barquinho estava pronto para ser castigado pelo sol. Ser um vítima de sua própria ausência de propósito. Era um casco sem espírito. Todo o ânimo esvaía de sua madeira.
***
Sentia algo passar pela madeira. Algo que alisava a tinta. Abraçava seu casco. Suave como creme.
Vento.
Um forte fluxo de ar contornava os seus contornos. Não era um obstáculo forte o suficiente para conter aquele fluxo. Na realidade, era insignificante demais para permanecer parado perante aquele movimento.
Seu instinto clamava por um içar de velas. O medo do desconhecido mantia suas velas baixas. No entanto, este medo era inútil. De qualquer forma, seria levado pelo vento. A questão era: Seria levado ou se levaria?
E assim, o barquinho içou as velas, e deixou com que o vento o conduzisse. Combustível para o seu movimento. Era a sua própria bússola. Era o único responsável pelo seu norte. O ar se deitava sobre o amarelado tecido das velas, e empurrava o seu dono para onde ela quisesse.
Não tinha mais medo. Para onde iria, não precisava de medo.
E no começo de sua nova jornada, soltou a rede ao mar. Não poderia haver navegação sem comida.