A FOLHA DE SALA
“Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde os cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
Olhas o rio
Como se fora o leito
Da tua infância”
Eugénio de Andrade, Um rio te espera in Coração do Dia
Ele sai apressado de Direito, atravessa o parque de estacionamento, segue em frente, sobe as escadas e entra na atmosfera azul da outra faculdade, rumo à cave, mais ou menos junto ao bar onde sabe que vão decorrer as audições.Chega já com um ligeiro atraso.
Não pensa muito naquele impulso de se ter inscrito para ser admitido no Grupo de Poesia da Faculdade de Letras sob a orientação de um jovem poeta já citado no Manual de Literatura de António José Saraiva e Óscar Lopes.
Encontra-se um grupo de jovens à porta, à espera, só mulheres.Nervosas, expectantes, umas a mascar pastilha elástica, outras vaidosas a abanar o cabelo comprido e lavado com os livros debaixo do braço, a exibirem-se.
Uma beldade de cabelos e olhos claros vem à porta e faz a chamada dos presentes.Ele fica arrelampado e reconhece-a.A declamadora de serviço do programa da televisão ao fim da tarde, “Os homens, os livros e as coisas”.
A prima Maria de Lourdes tinha sentenciado “A rapariga até é engraçadinha mas diz a poesia sem expressão nenhuma”.
- Para variar, hoje, vamos começar pelos cavalheiros – e olha para ele – importa-se de vir comigo? -pergunta a bela Helena.
Ele segue-a e entram na sala onde ao fundo se vislumbram sentados o Gastão e outro homem de barbas, anafado e afável e com voz de falsete, o eminente professor ou assistente Osório Mateus.O júri.
E o Gastão interpela-o com o seu ar despachado:
- Tens algum texto que gostavas de dizer?
E ele tem dezoito anos, experiência zero em recitação e pensa num segundo “A mesma de sempre, a que utilizei com a Odete de Saint-Maurice e com a Madalena Patacho e que deu resultado na rádio”
- Sim.Posso começar?
A Helena Domingos instala-se com um bloco e um lápis, muito profissional e atenta.
E ele começa inseguro mas depois firmado com a eterna “Reminiscência”que a Élia Serra Pereira de Almeida lhes tinha lido numa aula longincua de Língua e História Pátria no Liceu de Camões.Lá consegue chegar ao fim, depois de uma subida e descida, com efeito emocional.
- De quem é? – pergunta o senhor de barbas e voz com uma oitava acima.
- Fernanda de Castro.
E o Gastão torce o nariz e acrescenta:
-Ah sim.A poetisa do café com leite.
A Helena sorri com a piada e num instante recompõe-se.O Gastão prossegue:
- A lista dos seleccionados é afixada dentro de dias no placard junto ao bar.Ainda temos audições amanhã e depois.
Hugo não mais pensou nisso e só descobriu que fora escolhido quando viu o seu nome dois dias depois após uma discussão com a namorada,a Isolina, caloira em História e predadora sexual em florescimento de todas as criaturas bem apessoadas que vestissem calças.
Sem cunhas, do nada, conseguira.E os ensaios começariam em breve.
Eram o princípio dos anos setenta e a revolução de Abril ainda não se divisava nem de longe nem de perto.Talvez houvesse um descontentamento a pairar no ar.Afinal a guerra continuava no ultramar, havia mortes, ecos do terrorismo, da explosão de minas, censura prévia e gorilas dentro e à porta da Universidade.
O grupo era constituído por três meninas de Letras, dois actores em início de carreira, a Helena Domingos que era assistente na faculdade e cônjuge do distinto docente Manuel Gusmão e ele, um estudante do 2º ano de Direito, todos dirigidos pelo Gastão.
Ah Gastão Cruz com a sua maneira desenvolta e eficiente de propôr os textos, os analisar com o rigor como ele vira fazer, nas aulas de Literatura Portuguesa com o Mário Dionísio no Curso complementar.
A Poesia devia ser dita sem afectação, despojada e limpída para que ao destinatário fosse facultada a possibilidade de fazer a sua interpretação pessoal.”O Mostrengo” pelo Villaret então ia direto para o cesto dos papeis.
- Não acentues essa palavra!
- Mas ela não é o fulcro do verso?
- Hugo, não!Diz normal.Dá uma palmada na enfâse.Sem efeitos.
-Como se dissesse sem expressão “pão com manteiga…pão com manteiga”?Nossa!
O Gastão era acessível, prático, não impunha distâncias e era o grupo que espontaneamente lhe concedia uma autoridade incontestável.Vinha com Hugo apanhar o autocarro ao Campo Grande, protegia-o com prontidão das piadas corroídas dos mais velhos, discutia com ele filmes e espetáculos nas noites em que os ensaios se faziam no apartamento de um dos actores em Carnide.
A táctica era deitar abaixo os falsos mitos.
- A encenação está péssima com aquelas gaiolas despropositadas nas cenas das evocações – desfazia no versão de “O Sonho” de August Strindberg pela Companhia do Teatro Estúdio de Lisboa dirigida por Luzia Maria Martins e Helena Félix.
- Ah eu gostei.Achei bonito.Os figurinos vistosos - retorquia Hugo.
- Pirosos.O Nicholson a fazer de poeta com um casaco branco parecia um criado de café.
Hugo ficava de queixo caído, sem saber o que ripostar e mudava de assunto.
- Mas não achas que não valia a pena produzir-se a peça se o filme foi tão bom e próximo da estrutura teatral?Impossível conseguir melhor do que a Elizabeth Taylor, Richard Burton, George Segal e Sandy Dennis.Aliás, elas as duas ganharam o Óscar.
- Na verdade,no original do Albee as personagens eram quatro homens mas os editores não deixaram.Por isso a cena final com o filho imaginário.
Não queria acreditar.Caía-lhe o Carmo e a Trindade.Ele já não tinha a certeza de nada.Toda a sua aprendizagem cultural em risco de desconstrução.
- Tu sabes imenso, Gastão.Porque é que não dás uma entrevista sobre o tema?
-Eu não pactuo com os meios de comunicação social controlados pelo estado fascista.
Gastão era o mestre e eles os discípulos.Finalmente lá estrearam o Recital no Liceu de Tomar por iniciativa de um professor progressista e repetiram no Colégio Moderno a convite de Maria Barroso que, no final, se virou para Hugo e comentou:
- Você tem uma voz muito parecida com a do meu sobrinho – ao que Hugo assentiu com um sorriso contrafeito não fazendo a mais pequena ideia de quem fosse o tal sobrinho, embora Gastão concordasse com ela, acenando que sim.
Mais tarde, Hugo, já advogado, pensaria:
“Fiz parte de um movimento de resistência cultural sem dar por isso”
E na apresentação final e mais importante em pleno anfiteatro I da Faculdade de Letras à pinha, a RTP fez uma reportagem e na edição final, depois de instantâneos de todos os participantes elegeria a reprodução integral da recitação do poema “Um rio te espera”de Eugénio de Andrade pelo mais jovem elemento do grupo, Hugo, um estudante de Direito.
- Ah pois é, ontem, grande aparição na televisão.Hugo! - chufaram alguns colegas inocentemente invejosos.
Ao longo dos anos que se seguiram Hugo teve encontros fortuitos com Gastão na cidade como se acabassem de estar nos ensaios do grupo de poesia.Fez questão também de encontros combinados talvez numa tentativa vã de voltar a descobrir a autenticidade, a sua própria inocência perdida e as convicções do mestre que parecia nunca envelhecer e ter tomado um elixir da juventude pela goela abaixo.
- Estás na mesma, Gastão.Não envelheces.
- E tu ainda mais míope, com certeza.
Viu-o de relance finalmente na televisão num programa da Paula Moura Pinheiro, reconheceu-o no jeito de ler os poemas de Ana Maria Teodósio, uma jovem e linda professora de Francês que Hugo conheceu já serôdio numa episódica e caprichosa passagem por um curso de Literaturas Modernas numa dessas universidades que cresceram como cogumelos nos tempos da pós revolução e foi ver algumas das suas encenações na continuidade que Gastão quis dar ao trabalho do seu grande amigo, precocemente desaparecido e diretor do teatro da Graça, o talentoso actor e encenador Carlos Fernando.colega de Hugo nas produções infantis de Madalena Patacho na Emissora Nacional.O mundo é pequeno, minúsculo.
- Então? O que é que achaste?
-Posso falar a verdade?
- Claro.
- Acho que o espetáculo está tão rigoroso,tão sério e despojado que lhe falta um pouco de piroseira e está pasteloso e chato.Vais deixar de me falar?
- Não.Sempre tiveste mau gosto.Com o teatro e com aquela namorada.Como é que a chamavam lá na faculdade?
- A Dentes de Corvina.Pois!
Criou uma personagem nele inspirado mais propriamente a identidade virtual com o nome de Gastão Cruz de Rodrigo Sotto-Menor, um empresário falido na sua peça “Good-Bye- climax em ambiente virtual”estreada em Lisboa no Auditório Carlos Paredes.A última dos Disfarces – grupo de teatro.
Alguém dissera a Hugo agora ele autor, encenador e actor:
- A peça é um caos organizado.
E de súbito Hugo deixou de ouvir falar dele, de Gastão Cruz.Perdido na multidão e na voragem dos dias.E depois um dos agora velhos actores do Grupo de Poesia informou-o que ele estava muito doente num Lar.
E num domingo á noite,de repente, viu a notícia da sua morte.Tinha-se passado meio século.
Levou dois dias e duas noites, louco à procura de um vestígio, em busca do impossível, do improvável, de um sinal do encontro deles.Quando já cansado e triste pensava em desistir foi como se o espírito de Gastão abanasse a cabeça com compreensivo desdém e lhe sorrisse lá de cima, deparou com uns papeis meio escondidos numa pasta.
- Ca está.O Recital.A folha de sala.28 de Abril de 197... Enfim!
Nota – todas as personagens deste conto são reais.Os nomes de Hugo e Isolina são fictícios.