Submundo

Tenho a sensação de que nascí do avesso, pois nunca tive vida parecida com meus colegas de escola e vizinhos de bairro. Como nascí em cidade muito pobre, com vida muito pobre, meus parâmetros para conectar-me ao mundo eram distintos, mas viví o que podia - e o que não podia - até chegar aquí, nesta cela imunda da carceiragem de Ibituba. Estou cansada de tanta sujeira, de tanta solidão neste submundo pior do que o que eu viví.

Até chegar aqui eu tinha pelo menos um quarto com colcha de cetim vermelho, um abajur com penduricalhos imitando diamantes e uma cômoda repleta de cosméticos vagabundos.

Herdei de meu único tio por parte de mãe aquele bordel de quinta categoria entre os vilarejos de Monsanto e Itiquiera. Peguei-o com as duas mãos assim que ele morreu, sob pena de eu morrer de fome. E, por incrível que pareça, me dei bem por uns bons vinte anos.

O início foi duro, pois tive que prostituir-me para angariar clientes mas, com o tempo, as meninas foram chegando e tomando os seus lugares na vida sexual dos homens daquela região. A freguesia era grande, contando também com os caminhoneiros que buscavam parada alí no meio do transporte do pouco cacau que ainda restava por aquelas bandas.

Aos poucos fui organizando o “negócio” com base na minha intuição e passando a viver com maior dignidade em termos financeiros. Até a fachada eu reformei. Pintei-a na cor carmim com letras pretas para destacar o nome: “Ganesha”. Ao lado a figura de Ganesha, a divindade toda em amarelo e vermelho com uma barriga grande, quatro braços e cabeça de elefante com uma única presa, com um rato a seus pés. Pesquisei e entendí que o rato era a figura que significava a capacidade de resolver problemas rapidamente. Não hesitei em aderir ao nome em função da analogia ao ramo de negócio.

Com o tempo, e com o tempo grande que eu tinha em função do volume de meninas que trabalhavam alí, consegui estudar um pouco na cidade mais próxima, sempre buscando esconder a minha verdadeira identidade. Não posso negar que aprendi muito para o pouco tempo em que estive por lá. Nenhuma novidade para uma mulher que geria um negócio que foi o primeiro de tantos neste mundo.

Cheguei a sonhar em ser advogada, mas já estava com idade avançada e o bordel não teria como perder o comando. E mais: quem contrataria uma dona de bordel? Resignei-me e continuei tocando o meu negócio com pulso firme.

Como não tive filhos, acabei adotando afetivamente as meninas e recebendo amor por todos os cantos. Eu realmente era muito feliz com elas e com as noites envoltas por bebidas baratas e homens nem tão cheirosos. Mas acostumei-me a eles como uma camaleoa e deles eu ganhava o suficiente para viver, manter o estabelecimento e dar uma vida digna às meninas, minhas filhas adotivas.

Afetivamente eu também me ajeitei, pois escolhí um dos fregueses para ser o “meu homem”, afastando de mim todo e qualquer programa indesejado. Eu já tinha subido de nível na minha escalada profissional. Com ele viví, como amante, até chegar aquí. Tenho a sensação de que, quando cheguei, morrí; mas estou viva, contando esta história que dá vontade de chorar.

O crime se deu para vingar o sangue que jorrava da cabeça e do corpo de Janete, a mais antiga no bordel, consequentemente a minha filha adotiva mais velha. Certa noite ouví gritos, corrí para o andar de cima e, na entrada do longo corredor pude identificar de qual cômodo brotavam aqueles estrondosos gritos. Ao chegar deparei-me com uma cena cruel. Janete caída inconsciente e, sob ela, um caminhoneiro bêbado, agarrado à uma garrafa de cachaça. A cena tocou-me no estômago e, sem raciocinar, tentando reanimar Janete, fui golpeada nas pernas com dois chutes com as botas de borracha daquele homem infernal. Não tive dúvidas, aproveitei a sua embriaguez, tomei a garrafa de cachaça das suas mãos e enfiei-a na sua boca, matando-o asfixiado aos poucos. Sim, aos poucos porque eu queria vingar a honra da minha filha na sua integridade. Não levei vinte minutos para ser presa. Em cidade pequena a desgraça sempre chega com pressa.

E agora estou eu aquí, com três pedidos de condicional negados e no aguardo do próximo juíz que chegará na cidade que, segundo Janete, por bons anos foi assíduo frequentador da Ganesha. Não posso perder a esperança de pensar que ele associará a minha necessidade de liberdade com a mesma necessidade dele naquela época.

Rosalva Rocha

12/04/2022

Rosalva
Enviado por Rosalva em 15/04/2022
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