Nada de novo
Passei a noite inteira no escuro, na janela do meu apartamento, observando a correnteza levando sujeira pelas ruas cheias de água. Aquela era a pior cheia que Recife já tinha visto. Pior até que a de 1966, 9 anos antes.
Já tinha parado de chover, mas a água não baixara. Ainda demoraria algum tempo antes das coisas voltarem ao normal.
Fechei a janela quando uma ventania ameaçou esvoaçar os meus papéis espalhados pela mesa. Não fui rápido o suficiente e apenas uma vela ficou acesa. Peguei um isqueiro a acendi as restantes.
Eu morava num apartamento de um quarto no centro da cidade, que era o meu escritório e minha casa. Às vezes eu me entristecia por aquela situação. Trinta e cinco anos, e morando sozinho depois de um casamento desfeito. Dividindo espaço com tralhas e lembranças que não conseguia me livrar.
Meu casamento acabara quatro meses antes. Eu ainda não tinha me acostumado e talvez nunca fosse me acostumar com o fato, mas já havia passado da fase do choro e desespero...
Não antes de ter me embriagado até o estupor durante semanas à fio.
Passado o pior, assumi um luto fechado e silencioso. Me exilei de amigos e família e evitava sempre que alguém tentava levantar o assunto. Mas naquele momento de solidão e silêncio, numa cidade tomada pela água, não pude fugir da sensação de derrota completa. Eu nunca mais seria o mesmo. No fundo eu sabia que aquela era uma ferida talvez nunca fosse fechar.
Dos cinco anos que fui casado, talvez eu tenha sido feliz por um. Fomos do absurdo de um amor acelerado, ao calvário de uma relação conturbada entre brigas e ausências, que se perpetuou como uma eternidade. A morte só veio no quinto dia, quando descobri a dor de uma infidelidade.
Digam o que quiserem, mas ninguém está preparado para uma traição, pelo menos quando se traz no peito um sentimento verdadeiro. Eu amava minha esposa. Amava além da conta. Além do que as palavras podem traduzir. Mas hoje eu sinto que aquele amor foi como um jogo em que eu apostei tudo e perdi. Perdi e chafurdei sozinho na lama da derrota.
No fim, ela me olhou e fez graça como se não fosse nada demais. Como se minha dor fosse um exagero sentimental e anacrônico. Talvez um dia esse tipo de sentimentalidade se torne coisa do passado. Talvez voltemos todos à frieza do animal em busca apenas de reprodução. Mas para mim aquele dia ainda não havia chegado para mim.
Uma semana antes do meu casamento, uma cigana me disse que eu não iria encontrar um amor de verdade nessa vida, nem na próxima. Eu não tinha acreditado no que ela disse, apesar da seriedade de sua expressão.
Agora, não consigo parar de pensar que talvez ela estivesse certa sobre o assunto.
Afinal, Vera havia me deixado...
Custei a conseguir pronunciar o nome dela.
Enfim. Uma ironia que foi a minha tragédia. O nome dela era Vera. Mas o sobrenome era mentira.
2
Acordei com um facho de luz do sol diretamente nos meus olhos. Havia um buraco na cortina. Um buraco que tinha estado lá a muito tempo, mas eu nunca tinha feito nada a respeito por pura preguiça. Mas naquele momento eu me arrependi de nunca ter tido disposição para trocá-la por uma nova.
Me levantei e abri a janela. A água já começava a baixar nas ruas, expondo sujeira e lama nas calçadas e portas dos prédios e casas.
Fui até o banheiro e tomei um banho longo. Eu estava cansado. Exausto. Infeliz. Olhei para as paredes pensando em um jeito de dar um fim à essa história toda. Algo simples como desaparecer e nunca mais ser visto. Algo indolor.
Fechei a torneira e comecei a me enxugar.
Vesti uma roupa e andei até a sala.
Abri uma gaveta na minha escrivaninha e tirei um revólver preto de dentro. Era a única coisa de Vera que eu ainda não tinha me desfeito. A arma tinha sido do pai dela, e que ela guardava com todo o cuidado. Quando ela foi embora, fiquei na dúvida se havia deixado de presente para mim ou simplesmente tinha esquecido.
Inspecionei a arma com cuidado e foi só então que percebi que havia apenas uma única bala no tambor.
Um arrepio correu todo o meu corpo e eu me perguntei se aquilo tudo era uma mera coincidência.
3
Recife tinha se curando da maior parte dos impactos da enchente quando fiquei sabendo que Vera havia se casado novamente. Na igreja, dessa vez.
Nossa união tinha sido feita apenas no civil. Por que ela dizia que não se via entrando de branco numa igreja.
Talvez a realidade fosse que ela apenas não se via entrando numa igreja comigo.
Enfim. Nos primeiros momentos eu não senti o impacto da notícia como imaginei que sentiria. Foi só apenas mais um golpe depois de tantos outros. Mas depois de uma semana, entrei novamente no meu estado de luto cerrado.
Por dias, me levantei da cama apenas para comer e ir ao banheiro. De vez em quando encarava a arma na gaveta, mas nunca mais a tirei de lá. Por fim, me cansei e resolvi dar um fim àquilo tudo de uma vez por todas. Me levantei da cama e peguei o telefone. Liguei para a casa da Mãe de Vera, com a vaga esperança de que ela estivesse por lá.
Senti um arrepio quando ela atendeu o telefone e fiquei mudo quando ela perguntou.
- Quem é?
- Alô... Quem é? - Ela insistiu.
E foi só então que eu falei.
- Oi Vera.
Reconhecendo minha voz, ela respondeu.
- Oi. O que você quer?
- Preciso que você assine uns papéis.
- Que papéis?
- Nosso desquite.
- Tudo bem.
- Como fazemos?
- Eu vou aí segunda feira e assino pra acabar logo com isso.
- Certo. Tudo bem.
Ela desligou o telefone logo depois e eu fiquei encarando o calendário pendurado na parede.
Era sexta feira, e eu não tinha nada para fazer no final de semana, além de me embriagar e esperar.
Nada de novo no front,
e na retaguarda também.
4
Acordei no domingo de tarde com o telefone tocando repetidamente.
Eu estava no meio de uma das piores ressacas. Tinha bebido o sábado inteiro. Esvaziei uma garrafa inteira de uísque enquanto ouvia os discos que Vera não havia levado consigo. Pelo menos ela tinha tido a decência de deixar os meus favoritos.
Na terceira vez que o telefone tocou, eu desci da cama e atendi.
Era a mãe de Vera... reconheci pela voz.
- Quirino? – Ela murmurou.
- Oi. Boa tarde.
- Aconteceu algo... – Ela tinha a voz tremida de quem havia chorado.
- O quê?
- Vera... o carro dela...
- O que aconteceu?
- Ela sofreu um acidente.
- Como ela está? – Perguntei esperando o pior.
- Ela morreu, meu filho. Ela morreu. – Dessa vez havia uma certa calma desesperada em sua voz.
- Sinto... Eu sinto...
- Achei que você precisava saber. – Ela disse, antes de desligar.
Fiquei com o telefone mudo nas mãos, novamente com os olhos presos no calendário.
Sobre a minha mesa estavam os papéis que Vera deveria assinar.
Larguei o telefone e amassei os papéis.
Abri a gaveta do revólver e segurei a arma nas mãos, junto ao meu peito.
Enfim...
aquilo não me pareceu uma forma tão absurda de ir embora.
5
Quando finalmente abri os olhos, tive a sensação de ter água nos meus pulmões.
Quis gritar, mas não consegui. Eu estava sufocando. Uma luz branca intensa feria os meus olhos, e um ar frio parecia que iria queimar a minha pele. Meus braços e pernas formigavam, e eu sentia que estava num corpo que não era meu.
Tudo o que eu podia fazer era chorar...
Percebi pessoas ao meu redor, apesar da vista embaçada. Algumas pessoas sorriam e uma mulher chorava.
Uma das mulheres que estava ao meu redor perguntou enfim.
- Que jogo foi esse?
- Em que mundo você vive? – Respondeu um homem.
- Eu não acompanho futebol.
- Foi a estreia do Brasil na Copa do Mundo... contra a Espanha. 1x0. Gol de Sócrates.
- Ah sim. Agora faz sentido toda essa loucura das pessoas.
- Pois é. Mas taí um bom nome pra menino. Sócrates.
- Deus me livre – Respondeu a mulher que estava chorando, enquanto me pegava nos braços.
- Como ele vai se chamar? – Perguntou o homem.
- Rômulo, igual ao pai.
Todos sorriram e uma das mulheres respondeu.
- Que lindo... Muito mais bonito que Sócrates. Tenho certeza que ele vai ser muito feliz.
- E que ele dê nos sorte e o Brasil seja campeão! – Completou o homem.
Todos na sala caíram no riso.
E eu fechei os olhos esperando que aquilo tudo não passasse de mais um sonho.