"Muvuca" na Fazenda

PORTUGUÊS/AFRICANÊS – UM MUNDO SEM FRONTEIRAS.

Amélia Luz

Minha língua, nascida no Lácio, é uma colcha de retalhos. Do Português continental de Camões, Eça e Pessoa trazido pelos colonizadores ao que hoje falamos, muitos acréscimos foram feitos o que podemos observar na influência indígena, africana e na influência dos imigrantes de várias origens, tempos depois.

O texto que escrevo em “português-africanês” nos surpreende pela riqueza dos vocábulos que a África nos legou pelo falar dos escravos. Com o passaporte na mão e reunindo palavras pude escrever um pequeno conto, numa pequena mostra que se segue. Vamos seguir viagem.

Título: UMA VIAGEM AO MUNDO AFRICANÊS - “MUVUCA” NA FAZENDA.

Amélia Luz.

Ouviu-se uma “zoeira” estranha, uma “bagunça” que vinha da vizinhança da fazenda. “Encabulada” a patroa chamou a “babá” que na cadeira de balanço, no canto da sala, fazendo o seu “caçula” dormir, “cochilando” sonolento ao som do “bamberê”. A patroa foi até a janela e perguntou:

- Sabe o que está acontecendo?

Ela se levantou, ajeitou o turbante e disse:

- É roda de “capoeira” na casa da “Iaiá”, “congada”, cuíca”, “zambumba”, “berimbau”, “agogô” e “afoxé”, uma animação só. Todos se divertem, bebem “birita”, “aluá”, “garapa” comem “bobó” e a “bruaca” está cheia de iguarias, “farofa”, “pamonha”, “inhame”, “canjica”, “moqueca” e “mocotó” com fartura.

A Sinhá logo se interessou em ir até o “muquifo” da velha “mucama” “Iaiá” para ver de perto o que acontecia. O patrão viajara a negócios com o “capanga” “cafuso” para compra da boiada. A fazenda estava sob suas ordens e ela temia uma “fuzarca”, um “fuzuê” na ausência do marido que longe fazia os seus “trambiques”.

Apressou o passo, colocou o xale e o chapéu saindo com a “babá” para conferir o porquê de tanta “quizumba”. Atravessou o terreiro e chegou ao local. O “lundu” estava animado. Todos dançavam, as mulheres requebravam e cantavam.

Um moço “sarará” dançava com uma “quenga” em requebros sensuais. Como uma “songamonga” a pobre patroa entrou no salão admirada.

“Iaiá” vestida de renda branca, elegante, esguia, cheia de “balangandãs” e “miçangas” veio saudar a patroa sorrindo, com alvos dentes que realçavam na pele negra, honrada com a nobre presença.

A Sinhá quis “bancar” o papel de educada correspondendo ao cumprimento com simpatia. Sentou-se com a “babá” num banco de madeira bruta. Logo apareceu um “moleque” oferecendo “quindim” e “mungunzá” que ela saboreou calada, a “banzar”.

Um homem “cumba”, alto, com “quizila” com o terrereiro “matuto” começou com uma “quizumba” feia, uma “lambança” por causa de uma “mutreta” entre eles.

“Serelepe” a menina “tagarela” disse que eles haviam bebido muito. Descontrolados discutiam em algazarra aos gritos e ofensas caíram na poeira brigando, soco a soco, um “banzé”.

Outro homem “xendengue”, “bambambã” em lutas que mal parecia um “mondongo”, amontou-se com eles no chão acabando com a “pendenga”. Lutou com destreza de “capoeirista” treinado e acabou com a briga expulsando os anarquistas do salão que saíram “perrengues”. Estavam numa “pindaíba” e “Iaiá” deu-lhes uma pequena “bufunfa” como agrado para que fossem embora. Depois da “tunda” saíram estrada à fora, cambaleando. Um “cazumbá” cansado fazia “cafuné” na cabeça da mulher que ria com o “cachimbo” torto, do lado da boca.

A Sinhá espantou as moscas com o leque, olhando firme para a “babá” como se pedisse socorro. A “babá” pensou em silêncio que aquilo mais parecia uma “urucubaca” para assustar a sofisticada patroa, não acostumada com aqueles hábitos.

- “Saravá, murmurou, “zombando” do acontecido. Com “xodó”, protegeu a patroa que “amuada” queria mesmo era voltar para a Casa Grande.

“Iaiá” pediu desculpas e se despediu dela:

- “Axé”, “axé”! “Ogum que a proteja. Depois que a patroa saiu “zanzando” pelo quintal o “zumzum” foi grande. Muita conversa e “fofoca” no salão, agitavam.

Cheia de “zanga” “Iaiá” protestou brava com a “patota” pedindo ordem no recinto por não gostar de “candonga”. Todos obedeceram por terem por ela muito respeito. Era mãe de santo e “Candomblé” é coisa séria para “Babalorixá”.

Controlado, o “furdúncio” continuou a noite inteira: lua cheia, cantoria, “ebó”, oferendas e bebedices.

A “babá” ria “banguela” do “chilique” da patroa procurando acalmá-la. A “lenga-lenga” da “babá” continuava tentando explicar, com o seu interminável “lero-lero” as festas do “congado” tão animadas com “bamberê”, “afoxé” e “batuques”. “Borocoxo” acabou dormindo cansada.

Tremendo de medo a Sinhá correu para o banheiro tomando um banho de cheiro, trocando toda a roupa. Pegou o véu e o terço foi até o oratório da fazenda rezando para o Senhor do Bonfim com muita devoção.

Enquanto isso, o “nenê” dormia tranquilo em seu berço, sonhando com o “quibungo”. A festa estranha fora para ela uma “muxinga” que nunca será esquecida. Devota, no domingo foi à missa e confessou-se com o Padre Amaro contando o local onde estivera por inocência, suplicando o seu perdão. Depois da penitência cumprida veio a devoção na hóstia santa da comunhão para a sua tranquilidade de cristã, participante fiel da fé católica por tradição.

Nesta viagem que fiz ao mundo africanês percebo quantas mãos costuraram esse texto, desde a África e dos navios negreiros até o Brasil. Muitos retalhos de seda ou zuarte expostos de sol a sol, de boca em boca, de história em história. Sobrou o nosso idioma enriquecido, cheio de tantas curiosidades, celebrando a fusão das raças na roda da vida, na riqueza dos vocábulos que aprendemos desde o balbucio às rezas das benzedeiras com os seus “patuás” com cheiro de “mocambo”, essências que herdamos “embalados” por braços negros, cheios de bondade sofridos pelos açoites da escravidão o que vem provar que muita coisa da nossa cultura vem da Mãe-África.

Uma viagem a um mundo diferente de linguagem oriunda das tribos d’África que trazemos ocultas nas almas sensíveis mesmo tendo olhos azuis e pele alva somos filhos das nossas mães de leite ou das nossas mães secas. Somos irmãos dos meninos negros que nos ensinaram as peraltices da infância ou das meninas que brincaram conosco de perna de pau ou de boneca de espiga de milho. Cantarolamos canções que saíram dos lábios doces e carnudos das nossas babás ou repetimos histórias fantásticas contadas por elas para que adormecêssemos tranquilos. Muitos encantos em contos que nem as mil e uma noites dariam para contar. Nem a patroinha Sinhá e nem Iaiá poderiam na verdade avaliar a grandeza desta viagem fantástica que fiz, cheia de grandes mistérios e de muita beleza.

Amélia Luz
Enviado por Amélia Luz em 10/04/2022
Código do texto: T7491749
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.