PROSOPAGNOSIA
PROSOPAGNOSIA
Há quem afirma e garante: “Não há ninguém perfeito neste mundo”. Pelo que se vê, parece que essa afirmativa já está definitivamente comprovada; “Não há mesmo ninguém perfeito neste mundo”. Isto comprova que todos nós temos algum defeito; um desajuste, um distúrbio, uma deficiência ou qualquer outra imperfeição.
Não vou falar dos outros, vou falar de mim mesmo: Eu tenho tudo isso. Tenho sim. Tenho distúrbio, desajuste, deficiência, além de bobo como eu sempre fui. Tenho, porém, algo de bom pelo qual sou admirado e muito elogiado por todos que me conhecem bem; é a memória. Mas, até parece que é apenas isso que eu tenho de bom; a minha memória fabulosa. Fora isso, pouca coisa ou quase nada se salva em mim. Meus itens negativos não têm conta; são muitos. Vou falar apenas de um: A dificuldade que eu tenho em reconhecer rostos de amigos e conhecidos e, até mesmo, de familiares.
É! Eu tenho esse problema sim! Essa dificuldade em reconhecer as pessoas, apesar de minha boa memória. Às vezes, eu misturo fisionomias e troco as pessoas; falo com uma pessoa pensando estar falando com outra. Se eu for descrever todos os momentos constrangedores por que já passei, em virtude deste distúrbio e ao longo de tantos anos vividos, vai levar muito tempo, vou gastar muita tinta e papel e não vou conseguir contar tudo. Portanto, contarei apenas dois fatos:
Primeiro: Aconteceu no restaurante Tomodati Self-Service.
Certa ocasião, eu e meu amigo, o Professor Fernandes, decidimos almoçar fora, e fomos ao Tomodati Self-Service, um restaurante japonês muito concorrido que há em nosso bairro. Havia muita gente no Tomodati quando lá chegamos, e poucas mesas vazias. O Fernandes tratou logo de assegurar uma mesa para nós, enquanto isso eu me dirigi à toalete. E fui cantando no meu jeito bobo de ser. Mas eu ia cantando baixinho, bem baixinho, só para mim, aquela modinha que diz assim: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é...” Nesse instante abre-se a porta da toalete e de lá sai um menino bonito e sorridente que me olha com um sorriso tão lindo que me fez mudar a letra da canção. E eu continuei: “é ele o menino que vem e que passa...”. O menino vendo que eu cantava para ele, ampliou aquele sorriso bonito e alegre que eu não tive como não acariciar aquela cabecinha loira de uns nove ou dez anos. Assim que meus dedos roçaram os cabelos loiros do menino bonito, lá do outro canto do salão, alguém me acenou; era uma moça bonita e simpática que pronunciou meu nome demonstrando conhecimento e até intimidade. Era ela, a mãe do menino, pessoa conhecida, mas eu não reconheci. Ela estava acompanhada por duas outras moças, eu não reconheci nenhuma delas. No entanto, mesmo não reconhecendo, fingi que havia reconhecido (Isso eu sei fazer muito bem) e respondi ao aceno procurando demonstrar conhecimento e cordialidade. Creio que consegui.
De volta do banheiro, eu fui direto à mesa que o Fernandes havia escolhido, mas antes que eu me sentasse, ele se levantou e se dirigiu à mãe do menino e suas amigas a fim de cumprimenta-las. Eram professoras conhecidas e amigas do Fernandes. Esperei que ele voltasse e perguntei baixinho com todo o cuidado para não ser ouvido por mais ninguém:
“Quem são elas?”.
O Fernandes respondeu com ar de espanto e indignação e num tom de reprimenda:
“Você não conhece a Solange Rosseto?
Ah! A Solange eu conhecia muito bem, desde que ela era criança; conheci seu pai, sua mãe, suas irmãs, seus avós, seus tios e tias, primos e primas, toda a família. A Solange até já foi minha parceira no jogo do pife. Porém, o tempo passou, ela cresceu, ficou moça, se casou. Ficamos um bom tempo sem se ver e por isso não a reconheci. Era ela, a mãe do menino bonito do sorriso alegre. O Fernandes achou graça por eu não ter reconhecido minha velha amiga e se levantou novamente e foi até ela apenas para dizer a ela que eu não sabia quem era ela. E ela reagiu dizendo também com um ar de muito espanto:
“Ah, meu amigo! O que é isso?!”.
Morri de vergonha. E de raiva.
Segundo: Aconteceu no auditório da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo.
Eu tenho um amigo. Aliás, um casal de amigos - Chico Luz e sua esposa Myriam. Presenças constantes nos grandes saraus poéticos e em outros eventos onde flui a música, a poesia e a alegria. Ele, muito desenvolto, além de sua formação acadêmica, é poeta, escritor, declamador, contador de história, inventador de história e até cômico, às vezes. Domina, com autoridade e desembaraço, o palco e o microfone. Ela, ao contrário, é discretíssima. Também escreve, também faz poesia, também participa muito bem das apresentações, mas sempre com muita simplicidade e discrição.
Em virtude do confinamento por conta da covid 19, ficamos muito tempo sem os nossos encontros poéticos. A gente se via apenas pelas redes sociais. Eu sabia que o nome de família da Myriam era um nome estranho que eu considerava difícil de memorizar e até mesmo de pronunciar - Unterman. Não decorei o nome. Nas redes sociais eu encontrei a poetisa Mirian Warttusch que eu ainda não conhecia. Misturei os nomes e imaginei que fosse a Myriam Unterman. Observei bem a foto e não vi diferença a não ser o cabelo e o penteado. Não dei importância a essa pequena diferença e fiquei acreditando que a Mirian Warttusch fosse a Myriam Unterman. A diferença que eu via era que a Myriam estava se expondo mais, estava se manifestando, se revelando em sua condição de poeta, deixando um pouco de lado a sua extrema simplicidade. Como eu
não sou muito de mandar mensagem aos amigos, a não ser em caso de necessidade ou qualquer outro motivo que justifique,
andei trocando algumas mensagens com o Chico Luz, mas não havia mandado nenhuma mensagem à Myriam, até o dia em
que surgiu um convite no Facebook; haveria um evento na AFPESP sobre a direção de Mirian Warttusch. Isto foi em março, e seria em homenagem às mulheres, com referência especial a algumas mulheres notáveis da Literatura Brasileira. E citava o nome de Clarice Lispector, Rute Rocha, Carolina Maria de Jesus, Cecilia Meireles, Ligia Fagundes Telles e Cora Coralina. Eu me interessei pelo convite; se o programa em si já me interessava, o prazer em prestigiar o trabalho da minha amiga Myriam e o provável encontro com o Chico Luz e com outros amigos poetas e cantores que a tempo eu não via, me entusiasmaram ainda mais. Passei uma mensagem a Mirian Warttusch imaginando que fosse a Myriam Unterman:
“Mirian! É só para as mulheres ou os homens também podem ir? Eu também quero ir”.
Veio a resposta, por sinal, muito simpática: “Pode vir que a tua presença será um grande prazer”. Fui.
Eu fui na certeza de encontrar o Chico Luz e na esperança de rever os amigos poetas e cantores, sobretudo os que frequentam a Casa do Poeta Lampião de Gás e o Movimento Poético Nacional. Fui também na confiança de que havendo uma oportunidade, eu também participaria da homenagem às mulheres, com o poema de Gioia Jr. “A Mulher Na Frente do Fogão”.
Estranhei quando lá cheguei. Já havia muita gente lotando o auditório da AFPESP e eu não vi nenhum conhecido. Só vi gente estranha. Consegui uma cadeira e me sentei no cantinho próximo à entrada e fiquei na expectativa de ver chegar a Myriam e o Chico Luz. Antes de iniciar a apresentação, alguém passou distribuindo fichas numeradas; seriam sorteados três exemplares de um livro de poesia; uma coletânea poética com vários poetas conhecidos. Guardei o meu número sem muita esperança, pois havia muita gente presente e eram apenas três exemplares a serem sorteados.
Finalmente chegou a Mirian. E veio só. Não veio pelo palco; entrou pela porta de acesso ao auditório e passou bem próximo de mim; eu era o primeiro da fila. O porte físico era o mesmo, a cor, a altura, o charme... A grande diferença estava no penteado. Mas eu, mais uma vez, não dei importância, porque eu sei que as mulheres quando querem se aparecer, mudam vestido, penteado, maquiagem e conseguem enganar a todos. Principalmente a mim. Dois pontos, porém, me preocupavam e me fizeram desconfiar que poderia estar havendo algum engano: Um, foi a ausência do Chico Luz; o Chico é o exemplo do marido presente e, com toda a certeza, estaria lá dando apoio a sua esposa. Eu imaginava qual o motivo que teria impedido o Chico Luz de estar presente. O outro, foi que a Mirian passou bem perto de mim, olhou para mim, mas não demonstrou conhecimento. Ela sorriu para mim, mas foi aquele sorriso de simpatia que todo bom artista sabe jogar para o seu público.
Começa a apresentação. A Mirian falava suave e pausadamente discorrendo sobre as mulheres notáveis. Cantava, no sistema playback, canções de sua autoria que tinham como tema as escritoras brasileiras; canções bonitas falando de Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Cora Coralina, Rute Rocha, Ligia Fagundes Teles. Eu pensava: Cada pessoa tem seu mistério ou é ela o próprio mistério; eu não imaginava que a Myriam Unterman fosse cantora e compositora. Na mesma hora vinha a dúvida: Será que é mesmo a Myriam Unterman?
Minha dúvida se dissipou de vez quando a Mirian falando sobre sua família disse que tinha três filhos, todos homens. Eu sabia que a Myriam e o Chico Luz tinham três filhos; uma moça - Martha, e dois rapazes - Henrique e Camilo.
Agora, com a certeza do engano, entendi porque os amigos cantores e poetas não estavam presentes. Eles pertencem a outros grupos, a outras coletividades. E eu passei a me sentir só, muito só. Me senti sozinho na multidão; aqui ninguém me conhece - eu pensava - ninguém sabe quem eu sou, nem o que eu vim fazer aqui. Sou um estranho no ninho. Mas, apesar de tudo, eu estava contente com tudo. Valeu a pena ter ido. O trabalho da Miriam Warttusch foi bom, bonito e muito agradável. Fiquei feliz em conhecer mais essa grande artista.
Assim que terminou a apresentação, eu me levantei para sair o mais rápido possível, quando alguém avisou: Esperem o sorteio dos livros. Sentei novamente e, mesmo sem muita esperança, esperei. Primeiro sorteio: número 23. Levanta uma senhora e vai ao microfone receber o livro. A Mirian deu espaço à ganhadora do livro que pode falar ao microfone. E eu fiquei com uma pontinha de inveja. Segundo sorteio: número 86. Levanta uma senhora pequenina e já idosa, com um sorriso de alegria e vai receber o seu livro. A Mirian tratou também a essa senhora com o mesmo carinho, dando-lhe espaço junto ao microfone. E eu senti novamente uma pontinha de inveja. Terceiro sorteio: número 14. Era o meu. E lá vou eu para o microfone. Virei um pavão e fui me abrindo todo pelo caminho. Recebi com muito prazer das mãos da Mirian Warttusch, a coletânea poética e aproveitando a sua bondade, falei algumas coisas, me apresentei e revelei o meu desejo de apresentar um poema em homenagem às mulheres. Não apenas a Mirian, mas as pessoas presentes, parte do auditório, se manifestaram positivamente e eu pude realizar meu desejo, declamando o poema de Rafael Gioia Jr.
Nota: Não era a Myriam Unterman, mas espero ainda poder um dia assistir a uma apresentação individual da Myriam Unterman. Ela ainda vai realizar essa apresentação. Ela é capaz. E eu hei de estar presente.
ADALÉSIO VIEIRA
1º de abril de 2022
Nossas diferenças e semelhança são visíveis. Por exemplo sua memória contrasta com a minha amnésia. Tenho memória fotográfica contrária a seu esquecimento fisionomico. Somos semelhantes no que diz respeito ao narcisismo. Sua bobeira não difere da minha condição de boco. Idolatramos o mesmo feitchi. Sua vocação de professor não combina com a minha de aluno. Ser palhaço é condição para politizar nossa militância. Sem juízo comportamental, apenas observação sociológica o celibato tendecia à pedofilia porquanto o matrimônio tedencia a traição.
A Myriam é a razão de ser dos meus 77 anos de vida. Nossos filhos são dádivas das nossas bênçãos. E por falar em Myriam ela também sofre de Prosopagnosia como você, me levando a passar vergonha quando ela não cumprimenta as pessoas que nós cruzamos na vida social.
Por fim, professamos o memo Credo Religioso. Somos iguais nas diferenças.
Chico Luz
E.T. Fica autorizada a publicação no que diz respeito ao nosso nome e tudo mais que preciso for para a publicação.
IMPRIMATUR