A CASA VAZIA

(Texto extraído do livro do autor Samuel de Leonardo: Tute – Brincadeiras de papel)

Era uma casa simples. Simples e humilde como todas as residências do lugar, construída numa pequena rua de terra batida e sem saída, em um loteamento recém-formado na região do Butantã, zona oeste de São Paulo. Se não fora um perfeito “lar-doce-lar”, também não era de todo ruim, ao menos para o menino Tute que, – na sua visão, – dispunha de um extenso quintal para reinar em suas brincadeiras. Se valia dos materiais à disposição – gravetos, carretéis vazios, latas de leite em pó e de óleo, caixas de fósforos – para criar e confeccionar brinquedos engenhosos. Os melhores dias dos meus primeiros anos de vida se passaram ali e, para mim, o quintal representava um imenso universo. Se o terreno proporcionava espaço em abundância, as pequenas dependências da habitação demandavam muito criatividade para acomodar o casal e os três filhos ainda pequenos.

A moradia de quatro cômodos fora assentada aos fundos, na parte mais alta do terreno íngreme, enquanto que, na frente, existia outra construção, menor, também em alvenaria, com as paredes externas ainda sem rebocos, na qual residiam os avós paternos, Luiz e Hermínia, e Salvador, José e Joel, os tios de Tute. Ali, as duas famílias conviveram harmoniosamente por anos a fio. Para acessar a casa dos fundos – a principal do imóvel –, tinha que, obrigatoriamente, passar pela primeira, e, a partir do portão de entrada, subir uma escadaria de concreto com vários degraus. O lote era por demais generoso pois, além de comportar as duas construções, mesmo que modestas, acomodava também um galinheiro, um viveiro com codornas, e outro com pequenos porquinhos da índia.

Com tudo isso e embora com a maior parte do terreno ocupado, ainda sobrou espaço para o cultivo de quatro arbustos de Sabugueiro, que foram plantados quando eu e meus irmãos, ainda pequenos, contraímos sarampo (com as flores dessa espécie eram preparados chás que aliviavam os sintomas da doença), um pé de romã e outras plantas de pequeno porte. Por entre plantas e viveiros, as crianças disputavam espaço com um cachorro e dois gatos – e, mesmo assim, o quintal me parecia um universo.

Foram dias, semanas, meses, anos ali vividos com algumas dificuldades e alegrias tantas que ficaram impregnadas em parte da minha história. Foram verões, primaveras, outonos e invernos rigorosos ou suaves que compuseram significativa parte do cenário de um menino que cresceu e não se esqueceu daquele mundo quase à parte, – fragmento de um universo que permanece vivo na memória, – que continuamente instiga suas lembranças.

Dos meus mais de sessenta anos, 28 foram vividos na casa simples e humilde de onde assisti a população diminuir paulatinamente. O primeiro a se mudar foi meu irmão primogênito que contraíra matrimônio. Logo depois, a primeira perda definitiva: quis o destino que meu nono partisse e, na sequência, vovó. Em seguida, eu também constituí outra família e me afastei do local. Passados alguns anos, meus tios mudaram para outra região. No lugar outrora densamente povoado, ficaram apenas meus pais e meu irmão caçula, que anos depois também se mudaram deixando para trás décadas de ocupação da humilde habitação – a região continua nas mesmas precárias condições de anos passados.

Recordo nitidamente que, no dia dessa mudança – uma fria manhã de julho do ano de 2015 – fui me despedir da casa. Um adeus que ainda está na memória, pois daquele espaço cheio de vida restaram apenas imagens de um passado perdido entre as paredes, vagando na imensidão da memória a ecoar silenciosamente em cada aposento agora frio e sem cor. Com a partida definitiva do meu pai alguns anos depois da mudança, o vazio se acentuou. Nunca mais fui à casa e sequer tenho vontade, – ou seria coragem? – de lá voltar.

Bem sei que as lembranças são mais fortes que o desejo de revê-la, que os momentos felizes e infelizes se perderam no espaço e, que outrora uma casa cheia, hoje é apenas um local frio, inerte, vazio, quiçá melancólico.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 07/04/2022
Reeditado em 07/04/2022
Código do texto: T7490386
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