Dias atrás ele dizia, muito calmo e convicto: “TUDO tranquilo!”. Era uma equipe de médicos e enfermeiros do melhor hospital de Salvador desde 2031. A coisa toda era realmente MUITO mais “futurista” do que o próprio futuro que se imaginava existir. E agora Helena conseguia sentir todo o desespero em suas vozes… Conseguia ouvir tudo, até mesmo o cuspe pulando das bocas e batendo nas máscaras. Imaginava as máscaras gradativamente encharcando-se de cuspes quentes, fedorentos, e pior… inseguros. Pouco antes ele dizia: “Tiraremos os dois olhos que ficarão num recipiente. Em seguida faremos um pequeno procedimento na área das ENXAQUECAS e rapidamente colaremos os olhos de volta e observaremos as reações. O tratamento é indolor mas o paciente estará consciente durante o processo”.

– Mas… E a cabeça? – Ela perguntou. Sempre perguntavam sobre A CABEÇA. Dr. Nelson sabia que ela perguntaria. O tratamento já existia com 100% de eficácia há dois anos… A televisão fazia questão de mostrá-lo sempre… insistentemente. Mas eles sempre perguntavam, e ele amava que perguntassem. – A nanotecnologia e sinapses robóticas “abraçarão” seu corpo, como se já o conhecessem desde que o seu nascimento! Na verdade essa é a parte mais simples e breve da operação. Você não terá nenhuma sequela! Nem mesmo uma cicatriz! “Meu Deus… É minha cabeça… fora do corpo…! Não dá pra ficar tranquila com isso.”, pensou. Sentiu vontade de desistir. A animação exagerada do médico piorava sua ansiedade. Mas, as enxaquecas ficaram mais intensas e bem mais frequentes desde a II Revolução Industrial, com todos os – tão sonhados – carros voadores e as idolatradas “Pilulas-Food” (que ela odiava). “Dizem que acabaram com a fome no mundo inteiro, mas, minhas dores só pioraram… Como um brigadeiro era eficaz nessas horas!”. Sorriu pensando em comida. O médico sorriu de volta pensando que ela sorria para ele. Mais um paciente tranquilo e feliz… Sua cabeça e seus olhos seriam retirados do corpo por “micro-robozinhos” e uma celebridade da medicina. E ela sorria, pensando em comida. Comida que há anos não existia mais. Agora… Helena notava sua audição crescendo cada vez mais e mais…Ouvia os corações em volta batendo rápido. Movimentos ligeiros, desesperados. “O médico saiu…”, “O médico ainda não voltou”, “Fique calma” (“EU ESTOU CALMA.”)… aqueles… cuspes nas máscaras de toda a equipe. Respirações inconstantes. – O que houve com ele…Por quê ainda não voltou?

– O Doutor Nelson teve… er… complicações. Precisou ser internado. Mas temos TUDO sob controle!

– Parece que não… – Helena se sentia tão calma, como se estivesse parada num balcão de reclamações, questionando o motivo de uma conta ter vindo mais alta. – Bom, então se ele não pode me operar hoje… É só colocar meus olhos de volta… E a cabeça.

– Não estamos autorizados. A equipe não tem preparo pra fazer o procedimento sem um médico especializado. Mas o especialista de Nova SP já foi acionado.

– Nova SP?! Nova SP não é longe demais?! Ninguém em Salv…ninguém NESSE HOSPITAL pode Pôr minha cabeça no lugar?! MEUS OLHOS AO MENOS? – Helena conseguia sentir (ou imaginar) até mesmo a equipe se entreolhando em pânico e sem respostas. – O que houve com ele? ELE MORREU?

 

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[“Como posso saber que já é noite…? Será o silêncio? Deve ser o silêncio. Tentei contar as horas… Me perdi na segunda, ou terceira. Já devem ter se passado umas doze! Meus filhos foram acionados? Devem ter sido. Mas não podem entrar… e contaminar o ambiente.”]

 

[“Tentei gritar, gritei por alguns segundos… xinguei e ameacei eles… Disse que tiraria tudo deles… Eles não ligam, claro. Devem ficar do outro lado do vidro rindo de mim… ‘ele morreu?’, perguntei pela vigésima vez e não responderam, deve ter morrido. Nova SP fica em Nova Brasil. É impossível chegar em menos de um dia inteiro viajando… Fica do outro lado do planeta!”]

 

[“Agora há pouco, escutei um clique. Luzes foram apagadas, eu acho. Estou sozinha…Faz muito frio, mas sinto minha testa suando… ao mesmo tempo… sei que meu corpo está numa maca, bem ao meu lado e está nu e trêmulo. Não posso explicar… só sinto… eu sinto ele. Queria estar com ele… a enxaqueca que se dane! As pilulas… tudo que se dane, só quero meu corpo de volta, o medo está todo nele! A angustia, palpitações, o coração disparado… eu sei que está, eu posso sentir. Aqui com meu cérebro, só consigo pensar e pensar… Pensamentos que não me tirarão daqui, não me salvarão”].

 

[“Quantas horas passaram…? Nossa! Terei dormido (isso e possível?!). Penso que me distrai demais, apenas. Meu corpo não consegue dormir eu ouço os espasmos, a inquietude. Ele está gelado, clamando por um cobertor… mais do que isso, ele clama por INFORMAÇÕES que o acalmem… e isso, só pode vir desta ‘caixa mãe’ que sou eu.”]

 

[“Quantas horas passaram…? Quanto tempo, quantos dias?! Me deixaram aqui…? MESMO? A enxaqueca está voltando. Meu corpo tem fome… eu sei! Sei que está com fome e com medo. E que está desistindo… também. Está se entregando, pois ele não pensa, não sabe que estou aqui. Quantas horas passaram…? De Nova SP pra cá… Ele não chegará. Ele não vai chegar, ninguém vai… é mais fácil pra eles assim. Isso é que não mudou. Isso não muda, ainda somos idênticos… somos iguais. Quantas horas passaram…? Quanto tempo, quantos dias?!”].

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 07/04/2022
Código do texto: T7490222
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