Eu Vejo Vocês
O céu estava nublado naquele dia chuvoso, frio, assombroso. Não era um dia agradável. Não era um dia que daria inspirações ao jovem Gustavo para que se sentasse na escrivaninha do quarto, em frente à janela por cuja vidraça escorreriam robustas gotas da chuva, abrisse o caderno e começasse a escrever mais um de seus contos, poemas e romances. Não era um dia no qual ele poderia se colocar debaixo das cobertas, ligado a TV e se deliciado com mais um episódio da série predileta. Era um dia de dor e desolação. De desesperança e incerteza. Era o dia no qual participava do sepultamento de sua mãe, a mulher eleita para o posto de presidente da república com o maior índice de votos da história, a mulher que deixava um legado admirável e almas entristecidas.
Não era mais um menino de dez anos. Gustavo já tinha dezessete e precisava se portar como o jovem homem que esperavam que ele fosse. Mal enterrara a mãe e, ao voltar para a casa presidencial, pegando o celular para responder mensagens de amigos próximos, teve que ler as manchetes de jornalistas curiosos: seguiria os passos da mulher mais admirada do país? O povo que elegeu sua mãe poderia confiar nele para que, em um futuro próximo, desse sequência aos seus anseios? Mas ninguém perguntava como ele estava. Como se sentia. Como era, sendo um dos jovens mais notados nacionalmente, perder alguém que ele tanto amava. Ninguém parecia se importar com os seus sentimentos. Com a sua dor. Ninguém parecia se lembrar do fato de que ao nascer, quando não entendia nada e mal conseguia ficar em pé, seu pai perdera a vida em um acidente aéreo. Ninguém parecia se conscientizar da ideia de que agora ele estava órfão.
Só que ele sabia as respostas para todas essas perguntas. Não sabia se seguiria os passos da mãe, se a nação poderia confiar em uma suposta inclinação que ele teria para o universo político, se desejava continuar os projetos daquela que se fora. Mas ele sabia as respostas para os seus sentimentos. Para aquilo que se passava em sua mente e oprimia o seu coração. Ele tinha as respostas para as quais ninguém ligava. Doía. Ardia. Se o país sofria porque perdera a sua esperança vendo a mulher que colocava as coisas no eixo partir tão precocemente, ele sofria porque perdera a mulher que lhe transmitia segurança e todas as noites, mesmo distante, fazia questão de desejar uma boa noite e dizer que o amava. Mas e agora? Quem estaria ali por ele? Quem lhe desejaria uma boa noite e lhe diria que o amava? Ainda que alguém se candidatasse para o cargo, ainda que seus familiares se preocupassem em ocupar o lugar de sua mãe na sua vida, seria inútil, eles não eram ela, poderiam ter o seu sangue, poderiam ter algumas de suas características, mas ainda assim não conseguiriam alcançar a plenitude que era aquela mulher. E isso o atormentava.
Durante a madrugada, impossibilitado de dormir por conta das lágrimas incessáveis que rolavam pelo seu rosto, Gustavo entrou em contato com a raiva. A culpa era desse país medíocre. Dessa pátria que só faz vítimas. Se as coisas não estivessem tão ruins talvez sua mãe não se interessasse por concertá-las e assim não negligenciaria a própria saúde se mantendo ocupada com os assuntos nacionais, deixando que algo dentro dela a consumisse silenciosamente como um parasita traiçoeiro que devora seu hóspede com toda a discrição possível até que não reste mais nada. Mas de que lhe adiantava culpar o universo? Eleger culpados não trariam sua mãe de volta.
A passos silenciosos e cautelosos, implorando a si mesmo para que ninguém o flagrasse, Gustavo andou pelos corredores da casa presidencial. Sabia exatamente por quais cantos tinha que passar se não quisesse ser pego. Já fizera a mesma artimanha em outros tempos, quando queria um pouco de privacidade sem os olhares atentos de guardas impossíveis de distrair.
Finalmente, naquela madrugada congelante, conseguiu escapar da fortaleza. E correu pelas ruas desertas.
Não sabia aonde ir. Não sabia o que fazer. Não sabia a quem poderia recorrer. Enquanto avançava pelas ruas era confrontado por inúmeros pensamentos. Percebera que não tinha ninguém. Percebera que não tinha amigos reais. Percebera que não sabia o endereço de nenhuma daquelas pessoas que disputavam para se sentar ao seu lado, não porque apreciavam sua companhia, mas porque queriam os melhores ângulos para, tão logo chegassem em casa, ganhassem notoriedade na internet por estarem tão perto do filho da mais importante mulher do país. A vida que sua mãe escolhera também influenciou na vida que ele possuía. Uma vida de incertezas.
Só que não poderia culpá-la. Ele sempre soube o que aquilo representou para a mãe. O que significava cuidar daquela gente. Em seu primeiro mandato, Margareth havia retirado milhões de pessoas da extrema pobreza com toda a sua inteligência e disposição por lutar pelos menos favorecidos. A meta era que, ao final daquele segundo mandato, quando ela ganhou o maior número de votos que alguém já conquistara, ninguém mais estivesse perambulando pelas ruas porque o Estado não providenciava o que era necessário. Margareth não estava ali pelo cargo nem pelo prestígio que ele poderia garantir, estava ali por aquelas pessoas que por tantos anos acabaram invisíveis perante a ganância e a corrupção de seus antecessores. Por isso Gustavo não a culparia. Sua mãe havia se doado por aquelas pessoas. Um gesto admirável de uma mulher honrada.
Em dado momento, sentindo o suor escorrer pela testa apesar do extremo frio que fazia, o jovem adolescente precisou parar. Curvou o corpo enquanto tocava os joelhos. Recuperava o fôlego que de repente se tornara escasso. Foi quando ouviu o que parecia ser alguém chorando. Olhou ao redor, mas nada encontrou. Só que o som choroso continuava cada vez mais marcante. Ali, por entre o matagal molhado pela chuva que cessara há pouco, Gustavo avistou algo, aproximou-se a passos lentos, colocou a mão sobre o que parecia ser um amontoado de cobertas e descobriu alguém em prantos.
— Quem é você? — perguntou receoso.
As mãos que tapavam o rosto afastaram-se vagarosas e revelaram a face de um menino. O som do choro cessou, embora as lágrimas ainda rolassem. E o olhar temeroso parecia tentar reconhecer quem era aquele moço de cabelos bagunçados que o encarava com curiosidade.
— Por que está aqui? — Gustavo insistiu. — Quantos anos tem?
Calado, o menino indicou com os dedos, tinha oito anos.
— E os seus pais?
— Não tenho pai... — soou a voz trêmula.
— Sua mãe?
O menino gesticulou em negativo com a cabeça abaixando os olhos, como se não quisesse que sua dor fosse notada.
Observando ao redor, querendo ter certeza de que era seguro, Gustavo percebeu que estavam sozinhos. Suspirando cansado, quase se arrependendo de ter saído por aí sem rumo algum, sentou-se por sobre a relva úmida ao lado do garoto que conhecia.
— Você não respondeu o que houve com a sua mãe.
— Ela se foi... Não tenho mais mãe...
— Quando aconteceu?
— Hoje.
— Por quê?
— Ela me obrigou a me cobrir — indicou os cobertores molhados —. E quando acordei, ela não abriu mais os olhos... — ergueu os olhos abatidos tornando a encarar o jovem que o ouvia — O frio levou ela embora.
— Onde é a sua casa?
— Aqui. Aqui é a minha casa.
— Na rua?
— Você não fica na rua?
Gustavo engoliu em seco. O que responder para uma criança como aquela? Que enquanto a sua mãe morria como mais uma das tantas vítimas feitas pelo frio intenso ele estava no seu quarto confortável com o aquecedor ligado?. A dor daquela criança era também a sua dor. Só que ao contrário dela, ele tinha como suportá-la com conforto.
— Minha mãe também se foi — sentiu a garganta se apertar ao dizer em voz alta o que ainda não tinha declarado. — Estava doente. E se foi.
— Como a minha?
— Como a sua... — abaixou os olhos como o menino fizera há alguns instantes. — Também não poderei mais vê-la.
— Mães nunca deveriam ir embora — discretamente, o garoto se aconchegou a Gustavo até que um pudesse sentir o calor do outro.
— É. Não deveriam.
— Minha mãe era muito bondosa. Ela ajudava os cachorros da rua a conseguirem comida. Quando tinha chuva, ela colocava eles para junto da gente. A gente dividia os cobertores e ninguém passava frio. Só que dessa vez ela fez diferente. Deu para mim todos eles. E se foi... Será que é por minha causa?
— É claro que não — instintivamente, o adolescente envolveu a criança indefesa em seus braços trazendo-a para mais perto de si. — É por causa da ganância e da corrupção de homens egoístas — repetiu as palavras que ouvira de Margareth quando, ainda criança, ao ver pessoas pedindo comida, perguntou o porquê daquilo já que eles tinham tudo em sua casa.
— O que é corrupção? — os arredondados olhos infantis tornaram a se dirigir ao jovem rapaz.
— É quando você pega algo que não pertence a você e isso causa sofrimento em outras pessoas.
— Pegaram algo da minha mãe?
— É quase isso. Mas um dia você irá entender melhor.
— E a sua mãe? Ela também ajudava os cachorros da rua?
— Se ela ajudava os cachorros da rua? — Gustavo riu depois de tanto chorar. — Também. Ela também ajudava os cachorros da rua. Mas estava mais preocupada em ajudar as pessoas. — Às vezes a gente dividia a mesma cama — o adolescente revelou nostálgico. — Às vezes eu tinha pesadelo e então corria até ela e era protegido.
— Eu também tenho pesadelos. Minha mãe diz que quando eu crescer eles não serão mais tão assustadores. É verdade?
— Sua mãe estava certa. Quando você crescer os pesadelos vão se transformar em simples sonhos. Você vai se assustar com coisas piores — percebeu o espanto do menino que o observava. — Ou melhor... — tentou se corrigir — Você vai ver que é mais forte do que esses pesadelos e entender que por isso não precisa temê-los.
— Como você?
— Não sei se sou forte.
— Sua mãe se foi igual a minha. Eu sou fraco e por isso fiquei chorando. Mas você não está chorando. Então é forte.
— Chorar ou não chorar não quer dizer que você seja fraco ou forte. Só que cada um tem seu próprio jeito de demonstrar a dor que sente.
— Então você entende a minha dor...
— É... — apertou ainda mais o menino contra si em seu desejo de fazê-lo superar aquela realidade revoltante. — Como você se chama?
— Você vai ter que adivinhar!
— Não sei se sou bom nisso.
— Vamos lá. É fácil!
— Pode me dar uma dica?
— Começa com A.
— Nossa! Sabe quantos nomes começam com A?
— Está bem... Está bem... Começa com A e minha mãe vivia me contando histórias de um rei com esse nome.
Gustavo hesitou por alguns instantes. Sua mãe também lhe contava histórias de um rei cujo nome começava com A, mas era um rei real, que ele não pôde conhecer, mas que ela tivera a sorte de amar e ser amada por ele.
— Arthur — o adolescente revelou através de um sorriso contido. — Meu pai se chamava assim.
— Seu pai era o rei das histórias?
— Talvez não o das histórias da sua mãe. Mas de outras.
— Então você pode se considerar um príncipe!
Talvez pudesse. Gustavo compreendeu naquele instante que seus pais se foram do mundo físico, mas as suas crenças, os seus ideais e a vontade que eles tinham por tornar o mundo um lugar melhor para crianças como Arthur eram valores que poderiam estar correndo por suas veias e viver por eles poderia ser uma forma de manter vivos seres humanos que foram verdadeiras inspirações.
— Você está sozinho? Quem cuidou da sua mãe?
— Os nossos amigos. Eles também ficam na rua. Mas quando eles levaram minha mãe embora me disseram para procurar algum lugar seguro até que me encontrassem.
— Eu sei de um lugar seguro.
— Onde fica?
— Pode vir comigo? Eu posso levá-lo até ele.
— Como em uma aventura com duendes e fadas?
— É. Pode ser como em uma aventura com duendes e fadas...
E pelas ruas desertas foram andando um garoto e um adolescente que compartilhavam da mesma dor embora que em realidades diferentes.
Voltando para a casa presidencial, desta vez sem se preocupar em ser visto, Gustavo causou espanto nos guardas que ali vigiavam. Ouviu um breve sermão do líder da segurança antes de poder entrar em casa acompanhado do garoto que pensava estar entrando num verdadeiro castelo.
— Então você é mesmo um príncipe! — Arthur expressou admirado ao colocar os pés na sala ampla que exibia diversos quadros cobiçados e objetos luxuosos.
— Viu só. Por isso você deve me obedecer!
— Sabe o quanto fiquei preocupada? — uma senhora de cabelos presos desceu as escadas com ar de decepção.
— Essa é a bruxa das trevas? — o garoto se escondeu atrás de seu mais novo amigo.
— Calma — gargalhando, Gustavo se voltou a ele. — Essa é a fada real. Lembra do que falei sobre ela? Áspera por fora, mas doce por dentro. Você só precisa ser gentil.
— E ainda chega fazendo piadinhas — a mãe de Margareth disfarçou o sorriso. — Como você está?
— Agora melhor... Mas prefiro falar amanhã. Agora preciso fazer esse súdito tomar banho e ir para a cama.
— Banho é gostoso?
— Você vai ver...
Entrando em contato com a realidade da qual sua mãe tanto reclamava, compreendendo de verdade a real situação de tantas pessoas, depois de colocar Arthur para dormir, Gustavo ficou pensando mas manchetes que lera antes. Talvez seus sentimentos fossem reclusos a ele. E na verdade eram. Mas o que aquelas pessoas estavam realmente se perguntando era se teriam outro alguém que olhasse para elas e as visse como Margareth fez. E para essa pergunta ele tinha resposta.
Com as malas prontas, de saída da casa presidencial depois de uma semana da partida de sua mãe e tendo o poder sendo transferido para o vice-presidente, Gustavo finalmente aparecia em público no mesmo lugar onde tantas vezes sua mãe discursara afim de apresentar planos do governo e acalmar as ansiedades da população e da oposição. Todos o receberam em pé, num clima de pesar, desejosos por ouvirem o filho da amada mulher.
— Obrigado por terem esperado tanto — ele começou. — Quando tudo aconteceu e eu olhei nos jornais, vi que vocês se perguntavam sobre o que seria do futuro. Fiquei incomodado. Ninguém se questionava acerca do que eu estava sentindo. E, então, naquela madrugada, eu corri por aí. E conheci um garoto que também havia perdido a mãe naquele mesmo dia, de uma forma ainda pior. E tal como eu, ninguém estava preocupado com o seu bem-estar, com os seus sentimentos. Diferente de mim, ele realmente só tinha aquela mulher. Moravam nas ruas. A vida poderia ter acabado para ele. Mas a morte da minha mãe me fez encontrá-lo. Trazê-lo para a minha família e com a ajuda dos meus parentes irei cuidar dessa criança. Só que não quero cuidar apenas dessa criança. Vocês estão preocupados com o futuro? Eu sou o futuro! E posso dizer que já comecei o meu trabalho. Meus pais eram incríveis, minha mãe trouxe esperança, e é por essa esperança abalada que vocês estão sofrendo. Só que ela me ensinou a ser como ela. Ela me ensinou a olhar para os invisíveis e declarar-lhes: “eu vejo vocês”. Então se acalmem. Não sei como as coisas estarão quando eu finalmente puder seguir os passos da minha mãe. Mas até lá saibam que estarei vendo cada um de vocês ansioso por, se assim permitirem, cuidar de suas famílias e de suas crianças. Até lá!
A partida de Margareth permitia que Gustavo se encontrasse com a sua própria missão. E era por ela que ele lutaria mantendo viva a mulher que jamais seria esquecida.
(Encerro por aqui essa temporada de contos. Você pode ler todos baixando o livro Palavras & Sentimentos que já está disponível aqui no meu perfil do Recanto. Um abraço e até breve!)