O Que Sempre Existiu
Alguns de nós não são tão bons com esse negócio de demonstrar sentimentos, sejam essas demonstrações através de palavras ou de atos. Pode ser por medo, pode ser por orgulho ou por pura e simples ignorância. O fato é que nem todas as pessoas se sentem tranquilas quando precisam falar sobre o que sentem, sobre as emoções que cultivam, aliás, desde pequenos, em tantas ocasiões, somos ensinados a esconder nosso medo, nossa raiva, a controlar nossa alegria e a medir o nosso amor. Não temos liberdade para sentir. Só podemos sentir aquilo que pensam ser o correto e na medida que determinaram.
Mas quem foi que decidiu essas coisas? Quem foi que se deu ao direito de dizer quais emoções são certas e quais são erradas? Quem foi que, sem ser contestado, traçou a medida certa do amor e a conta exata do ódio? Nossas emoções não são mais do que expressões da nossa natureza. Servem até mesmo a um propósito de sobrevivência! Imagina se não existisse a paixão. Teríamos dominado o planeta? E se não houvesse o medo? Teríamos sobrevivido às feras e às fúrias da natureza?
Só que, por não entendermos a função primordial de nossas emoções, tentamos escondê-las, domá-las, controlá-las, ou até fingir que não existem. É a tal da pessoa plena, que nunca sai do eixo, que nunca se exalta, que nunca extrapola em seus afetos. Essa pessoa existe de verdade? Ou será que aguarda para que no silêncio da noite, no breu da madrugada, enfim possa colocar para fora tudo o que reprimiu enquanto o sol brilhava? Precisamos ter vergonha do que sentimos?
Eu pensava que sim.
Tanto pensava que, embora os amasse e fosse capaz de entregar a minha vida por esse amor, nunca declarei tal coisa aos meus pais. E eles, por sua vez, também nunca disseram me amar embora em seus gestos, em seu cuidado zeloso e preocupado, deixassem isso claro. Mas talvez pudéssemos ter tido um relacionamento ainda melhor, mais íntimo, mais confidente, se ao menos uma vez pudéssemos ter tido a chance de olharmos um no olho do outro e colocarmos para fora tudo aquilo que enchia os nossos corações. Os laços se fortaleceriam, os desentendimentos seriam compreendidos, a conexão se tornaria mais íntima e especial. Porém, nunca demos vazão ao que sentíamos.
E eu repeti o padrão. Quando me casei, apesar de saber que estava me casando por amor àquela mulher tão doce e gentil, cuja simples existência acalmava meu espírito em horas conturbadas, não disse isso a ela. Não falei as três palavrinhas mágicas que são capazes de arrancar sorrisos genuínos, verdadeiros, tocantes. As três palavrinhas mágicas que desmontam qualquer um. Só que ela me disse. Ela era mais livre, tinha maior acesso ao próprio interior e não se encabulava por aquilo que sentia. No entanto, mesmo diante de um gesto tão nobre, eu me calei.
Era uma tarde de verão. Lembro-me que fazia um calor escaldante. As crianças corriam agitadas chutando as águas, fazendo bolinhos de areia e jogando umas contra as outras, caçando conchas trazidas pelo mar e correndo até seus pais com todo o entusiasmo infantil, colocando-as nas orelhas e dizendo que estavam ouvindo o som do oceano. Os adultos também buscavam se refrescar em meio às águas salgadas, permitiam que as ondas os cobrissem, os lavassem, como se fossem capazes de retirar todas as impurezas e, no lugar, deixar uma qualidade nova, uma força nova, um motivo novo para prosseguir.
Montamos nossa barraca a poucos metros da margem do mar. Era o lugar perfeito para que sentíssemos o vento refrescante que dele soprava. Diante dos nossos olhos estava aquela imensidão azul que se perdia no horizonte. À nossa volta o som de pessoas se divertindo, brincando, desfrutando da vida. Em meu ombro, mantendo os dedos presos aos meus, Helena repousava. Estávamos casados há poucas semanas. Ainda extasiados pelos primeiros momentos de uma vida que é construída a dois.
— Não vejo a hora de trazer os nossos filhos — ela disse quando um garoto inquieto passou em nossa frente correndo em direção à mãe. — Já imaginou como será?
— Confesso que ainda não, mas tenho certeza de que será um dos melhores presentes que a vida poderia nos dar.
— É sério que pensa assim? — ela se afastou alguns centímetros, agora sua atenção se dirigia a mim.
— Assim como? — perguntei confuso.
— Que filhos seriam um presente? Quero dizer... Nós nunca conversamos sobre o assunto. Não sabia o que pensava.
— É claro que quero ter filhos com você — respondi surpreso. — Aliás, seria o maior dos erros se eu não quisesse. Já viu como se dá bem com crianças? Talvez eu não tenha tanta intimidade com elas, mas você será a melhor mãe do mundo! E sei que me ajudará a ser um bom pai.
— Ah! Felipe! — ela me abraçou entusiasmada. Um gesto tão simples. Um gesto tão singelo. Um gesto que eu, por minha própria conta, não conseguia demonstrar. — Eu já falei que amo você?
Sorri nervoso. Ela já havia dito em outras ocasiões, mas sempre tive um escape para mudar o assunto.
— Falou...
— Mas não me importo em repetir... — uniu os nossos lábios em um beijo discreto. — Eu amo muito você!
Minha resposta? O silêncio constrangedor. O sorriso receoso. O olhar confuso. Eu a amava. Mas por que não conseguia dizer?
E nunca consegui.
Nossos filhos chegaram. Tivemos três ao todo. E eu sei o quanto os amo, o quanto os estimo e do impossível que seria capaz de fazer em nome desse sentimento profundo. Só que eu nunca revelei a eles o quanto eram amados. Tiveram uma mãe maravilhosa, uma mãe que soube dizer o que eu não sabia, que soube demonstrar o que eu não conseguia, que soube ensiná-los a se permitir ao que sentiam e a jamais esconderem. E eles não esconderam. A cada “eu amo você, papai”, meu coração transbordava. A cada “a mamãe ama vocês” dito pela minha esposa, crescia dentro de mim o desejo por ter a mesma coragem, a mesma força, e também dizer o quanto eles eram amados. Mas eu não conseguia. Os amava de um jeito velado, estando presente, apoiando em suas decisões e não permitindo que ninguém os machucasse gratuitamente. E os protegia do meu jeito distante. Eu os aquecia do meu modo discreto. Mas a tarefa seria facilitada se eu apenas me sentasse ao lado deles em uma noite qualquer, olhasse no profundo de seus olhos e dissesse que os amava e que por isso estaria sempre ali por eles, para o que precisassem.
Também é um fato que a gente só se dá conta dos nossos erros quando temos pouco ou mesmo nenhum tempo para corrigi-los.
Em meio à loucura do mundo, continuando o meu trabalho como médico cardiologista, no auge dos meus sessenta anos, acabei surpreendido pelo vírus do qual tantos buscavam correr. Ao despertar dos primeiros sintomas, afastei-me do consultório. Fiquei recluso em minha casa na esperança de que fosse um daqueles sortudos que não desenvolvia nada grave. Mas a esperança se esvaiu quando meus pulmões começaram a se cansar do esforço árduo que precisavam fazer.
Precisei do hospital.
Acabei internado.
Meu corpo parecia ter sido moído sem piedade alguma por algum perverso repleto de crueldade. Minha respiração parecia lutar contra o meu próprio corpo na ânsia por me manter vivo. Os médicos e enfermeiros não saíam do meu encalço, monitorando meus sinais, perguntando a mim incansavelmente se sentia alguma melhora. Tudo o que eu fazia era manter as forças para evitar a intubação.
Só que esse era apenas o aspecto físico.
Existia um aspecto interior que me atormentava.
A falta de coragem por ter demonstrado que amava a quem amava. Talvez as chances tivessem ido embora. E tudo o que me restava era o arrependimento por, em inúmeras oportunidades, ter fechado a boca e sufocado o coração.
Meu filho mais velho havia aprontado na escola. Coisa de criança. O colega o provocara e ele revidou com um soco. Nada muito grave, mas que se não tivesse sido corrigido naquele dia poderia ter se transformado em algo maior. Quando o busquei na escola, vi medo em seu olhar. Não falou nenhuma palavra enquanto a diretora me contava o que havia acontecido. Eu assegurei que teríamos uma conversa importante e que aquele comportamento nunca mais se repetiria. Ela concordou, mesmo assim marcou uma ocorrência afirmando que aquele colégio prezava pela harmonia e o bem-estar entre todos os alunos. Eu disse que entendia e que Guilherme também entenderia.
No caminho de volta para casa, um silêncio absoluto.
— Sabe que não pode sair por aí batendo nas pessoas, não sabe? — por fim, perguntei.
— Sei.
— Eu entendo que esteja entrando naquela fase da vida que a gente fica doido para fazer com que nos respeitem, mas você não pode resolver que fará isso agredindo os outros, por mais que eles mereçam. Há outras formas de resolvermos os nossos problemas, consegue entender isso?
— Sim.
— O que foi que o outro garoto fez?
— Nada.
— Não pode ter sido nada. Não educo os meus filhos para que batam nos outros a troco de nada. Sabe que pode confiar em mim, não sabe? Eu ouvi o lado da sua diretora. Agora quero ouvir o seu.
Percebi que seus olhos se voltaram a mim por alguns segundos antes que ele pudesse me responder:
— Acho que agora eu quero entrar naquela escola de natação.
Meu filho estava um pouco acima do peso. Eu já havia sugerido que ele começasse a praticar alguma atividade, mas nunca conseguia convencê-lo. Naquela hora entendi o que estava acontecendo: zombavam do seu físico. Eu apenas assenti. Poderia ter dito que estava orgulhoso, que ficaria feliz por levá-lo e que não importava o que dissessem sobre as suas características, ele seria sempre o meu filho amado. Mas apenas assenti.
Helena nos aguardava ansiosa. Assim que Guilherme colocou os pés dentro de casa, ela o acolheu como toda mãe prestativa. Apenas gesticulei para que conversasse com ele, precisava voltar ao consultório. Só que enquanto retornava para o carro, lembrei-me que precisava deixar o contato da escola de natação, voltei para dentro e ouvi as palavras que, embora doídas, ainda não foram suficientes para me transformar.
— Quero que me desculpe por envergonhar vocês — Guilherme dizia —. Fazem tudo pela gente e eu retribuo sendo um agressor. O papai deve ter tanta vergonha de mim...
— Por que diz isso, meu filho? — Helena passou a mão pela face do adolescente, colheu as lágrimas que ali surgiam. — Se soubesse o quanto ele sente orgulho dos filhos que tem!
— Mas ele não diz. Ele nunca disse. Eu não sei o que ele sente, o que pensa sobre mim. E hoje posso ter dado ainda mais motivos para que me odeie...
Eu não o odiava. Nunca poderia odiar os meus filhos. Deveria ter interrompido aquela conversa, abraçado-o com intensidade, dito que o amava e que o via como alguém forte. Mas apenas retrocedi. Chamei Helena pelo nome como se tivesse voltado naquele momento e não soubesse onde ela estava. Quando minha esposa apareceu, entreguei-lhe o cartão da escola de natação, disse que nosso filho talvez fosse precisar, despedi-me e fugi, como em outras vezes, daquilo que sentia.
Meus filhos poderiam ter tido uma vida melhor. Poderiam ter tido mais confiança. Poderiam ter olhado para mim e visto além de um pai, poderiam ter encontrado em mim aquele amigo que encoraja, que fala palavras bonitas, que faz aqueles que o cercam se sentirem especiais, importantes, como se fossem as pessoas mais incríveis que existem no mundo. Mas a minha postura, a minha falta de habilidade com as palavras, minha falta de intimidade com os sentimentos, concedeu a mim apenas o título de pai. Nada além.
E além de esposo poderia ter sido um companheiro melhor. Minha esposa poderia olhar para mim e encontrar alguém que fosse além de um marido, além de um homem com o qual ela acordava todas as manhãs. Poderia ter ouvido elogios, poderia ter recebido mais agrados, poderia ter se sentido a mulher mais excepcional que poderia existir. Mas também não pude fazê-la se sentir assim. Nem mesmo conseguia dizer se ela algum dia se sentiu amada. E talvez eu nunca mais pudesse deixar claro que a minha família era o motivo da minha felicidade. Eu poderia perder tudo, mas se ainda os tivesse comigo me consideraria o mais sortudo dos homens. O triste era que, talvez, eles jamais soubessem disso.
A angústia aumentou ainda mais quando vi que os níveis de oxigenação estavam piores do que antes. Minha respiração se tornava cada vez mais difícil. A vida parecia se esvair. Não aguentei mais. Nem os médicos aguardaram que as coisas ficassem ainda piores. Meus olhos se fecharam. Poderiam nunca mais contemplar a luz do sol.
Só que eu despertei. Não sabia quanto tempo havia se passado, quantos dias tinha ficado distante do resto do mundo, só sabia que, para minha alegria, para um alívio que poderia ser momentâneo, eu ainda estava vivo, ainda tinha chances de terminar coisas inacabadas.
A recuperação foi progressiva a cada dia.
Até que recebi a mais aguardada notícia: derrotei o vírus, poderia voltar para casa.
Enquanto era aplaudido pelos enfermeiros e médicos que tão bem cuidaram de mim, a emoção me dominou e, o que eu nunca havia feito diante de outras pessoas, enfim aconteceu: chorei como um menino feliz que, depois de tanto esperar por um presente, finalmente o recebe.
Na recepção, meu filho mais velho esperava por mim. Ao vê-lo, meu coração disparou. Voltávamos nos anos. Dessa vez era ele quem estava ali por mim. Percebi sua hesitação em se aproximar. Culpa minha, nunca deixei claro que os abraços me confortavam, que as palavras de carinho me alegravam, que as companhias inesperadas em tardes solitárias me faziam sentir importante. Então tomei a iniciativa. E abracei o meu filho.
Sendo ajudado a entrar no carro, antes de fechar a porta, perguntei onde estavam os outros. Guilherme disse que não poderia falar nada, mas que eu iria gostar da surpresa.
E ele não poderia estar mais certo.
Quando finalmente atravessei a porta de minha casa, meus olhos se encheram d’água por ver bexigas espalhadas pelo ambiente, fotos emolduradas nas paredes, meus filhos e netos com aqueles chapéus de aniversário e minha esposa toda sorridente. Na mesa de guloseimas letras foram sequenciadas para que formassem uma frase tocante: “nós te amamos”.
Abraços me envolveram.
Beijos tocaram meu rosto.
Aquelas pessoas, a minha família, tinham a mim como alguém importante.
— Eu preciso da atenção de vocês antes de responder todas as perguntas — queriam saber como foram os últimos dias, se eu havia sido bem tratado, se tinha sentido medo ou se estava com saudades da minha rotina. Mas antes de tudo eu precisava dizer o que eles sempre quiseram ouvir, algo que tiveram que esperar até aquele momento. — Sempre fui um homem discreto, que tentava demonstrar um equilíbrio e uma apatia que na verdade nunca possuiu. Sempre tive emoções, sentimentos, embora tentasse escondê-los de vocês e mesmo de mim. Só que a finitude da vida me visitou e me mostrou que só se vive uma vez, só se tem uma oportunidade, uma chance, e o que fizermos, isso fizemos, mas aquilo que negligenciamos, nunca será recuperado. Eu tive uma nova chance. Posso dizer que nasci outra vez. E nesse nascimento eu tive a oportunidade de me transformar em alguém melhor. Eu senti saudades, eu senti medo e nesses dias tudo o que mais queria era que a minha família estivesse ao meu lado. Esse desejo não teria outro motivo se não o de que amo cada um de vocês como a coisa mais importante da minha existência. Vocês sempre foram amados por mim, talvez tenham tido dúvidas porque nunca falei, mas a verdade é que amo tanto ao ponto de abrir mão de tudo apenas para que fiquem bem!
As emoções têm também um poder transformador. Quando nos permitimos a elas, quando entramos em contato com aquilo que trazemos em nosso interior, então percebemos que não há problema em ser um humano, em estar vulnerável a certas experiências, em estar suscetível a características que compartilhamos enquanto espécie. O problema reside na postura evitativa, quando tentamos fugir de quem somos, do que sentimos e, assim, fugimos da vida. Somos fortes e somos frágeis. Isso porque somos humanos. E não podemos nos condenar por isso ao ponto de não sentirmos a vida.
(Conto por @Amilton.Jnior)