Circunstâncias
Eu tinha passado boa parte da noite deitado numa rede, com os olhos perdidos entre o teto e o pedaço de céu que eu podia ver pela varanda. Nesse tempo, Rafa ficou na cama, dormindo, agarrada ao celular. Adormeceu assistindo uma série água com açúcar que sempre a botava para dormir. Eu sabia que ela estava exausta da sua rotina... talvez tanto quanto eu. Nos víamos nas poucas horas livres que tínhamos em comum. Nesses momentos o cansaço da realidade era algo que constantemente compartilhávamos.
Adormeci também, em algum momento da minha contemplação do tédio, e acordei com Rafa ajeitando a rede pra se deitar ao meu lado.
- Tô com frio. Posso ficar aqui com você?
Ela vestia apenas uma camisa minha que já estava meio surrada e que lhe cobria quase até os joelhos. Rafa adorava essa camisa, e tinha roubado da minha gaveta na primeira vez que foi dormir na minha casa.
Olhei pra o lado de fora. Estava garoando.
- Não quer ir lá pro quarto? – Perguntei.
Rafa não respondeu e se aninhou do meu lado na rede. Encostou a cabeça no meu peito e murmurou.
- Aqui tá bom.
Ficamos abraçados em silêncio, com a rede balançando levemente. Era uma boa sensação. Uma que eu não sentia há muito tempo. E talvez eu tenha sido transparente demais nesse momento sobre isso.
- O que foi? – Rafa perguntou.
- Nada.
- E esse sorriso?
Senti um frio na barriga, sem saber exatamente o que responder.
- Faaaala – Ela insistiu.
- É bom finalmente estar bem...
- Como assim?
- Finalmente estar bem, com alguém.
- É algo raro não é?
- Acho que sim... pelo menos hoje em dia.
- Você parece um cara que foi muito machucado no passado. Parece que carrega um peso, ou uma cicatriz que não fecha.
- Algumas cicatrizes...
- Isso não faz bem.
- Com certeza. Mas é algo que o tempo vai resolvendo.
- Eu quase não sei nada da sua vida antes de te conhecer.
- Não tem nada muito interessante.
- Sério? Impossível.
- É. Eu tive só alguns relacionamentos. Namorei três vezes apenas.
- E como foi?
- Ah. Não acho que eu tenha tido muita sorte nesse campo.
- Porque?
- Acho que faltou sinceridade... Pelo menos nos dois últimos... Ou o relacionamento era uma mentira, ou tinha alguma mentira muito grande envolvida.
- E o primeiro?
- Ah. Eu era muito novo. Sei lá... Acho que éramos muito imaturos... ou muito diferentes.
- Diferentes como?
- Classes sociais, temperamento, visão de mundo...
- Classes sociais? Sério?
- Ah. Nada extremo. Ela era de classe média alta... família financeiramente bem resolvida. Já a minha sempre teve apertada com dinheiro.
- Mas isso foi realmente um problema?
- Então. Estava pensando nisso esses dias. Uma vez ela me contou uma história, que pra ela foi um evento terrível. Quase uma experiência traumática.
- Qual?
- Ah. O dia que o carro dela quebrou e ela teve que pegar um ônibus num dia de chuva pra ir pra a faculdade. Ônibus lotado, chuva torrencial, lama... essas coisas. O que pra mim, e pra muita gente era só mais um dia de inverno no Recife... pra ela foi um trauma.
Rafa não conseguiu segurar uma risadinha.
- Porra... foda... tô entendendo.
- É muito simples falar que não fazia diferença. Mas na real, fazia. Muitas das aspirações dela estavam fora do meu alcance. Parte do circulo social dela não me cabia. Mas enfim... é da vida.
Depois de falar, dei um impulso na rede, com o pé na parede e fiquei com os olhos cravados no teto. Rafa ficou um tempo pensativa antes de quebrar o silêncio.
- E o que você procura hoje em dia?
- Então... acho que Consideração. Lealdade. Sinceridade... Além do óbvio.
- E o que é o óbvio?
- Querer estar junto, apesar das circunstâncias.
- Como assim?
- A vida, meu bem.. responsabilidades, filho, trabalho, falta de tempo... exaustão... só a realidade de um proletário na sociedade capitalista.
Rafa se esticou um pouco e me beijou.
- Eu sei bem o que é isso.
- Eu sei que sabe... É bem por isso que estou aqui... e por...
Hesitei antes de completar o raciocínio e segui olhando para o teto.
- Continua... – Rafa sussurrou, se esticando para olhar nos meus olhos.
- Porque desde que você entrou na minha vida eu quis ficar contigo...
Rafa ficou me encarando, passou a mão nos cabelos e encheu os pulmões de ar.
Talvez fosse muito para ela digerir naquele momento. Talvez eu tivesse me precipitado, como de costume. Por fim ela soltou o ar, se sentou na rede e tirou a camisa. Não tinha nada por baixo. Fiquei encarando o corpo dela, tentando decifrar a mensagem. Ela se deitou sobre mim e começou a me beijar.
Minhas mãos correram pelo seu corpo e enfim eu percebi.
Que enfim, estávamos juntos,
apesar das circunstâncias.