A GAROTA DA PLANTAÇÃO

Quando eu trabalhava como cooperante em Moçambique, visitei uma antiga plantação de sisal, abandonada durante a guerra de liberação. Nos armazéns eviscerados, ficava a maquinaria para macerar as folhas e torcer a fibra. Esqueletos enormes, imóveis, cobertos de poeira, parecia o naufrágio de um motor de navio enorme. Nos tempos coloniais, havia na região grandes plantações de sisal. Com as fibras se faziam cordas de navios e tecidos crus. A guerra e a independência fizeram fugir os colonos e as plantações ficaram abandonadas. Os empregados e os criados foram dispersos no curso da longa lua de guerrilha.

Então, tudo tinha caído em desuso. Em volta, um mato selvagem, ainda cheio de minas.

Por um longo momento, o tempo ficou suspenso e imaginei ver uma garota de outro tempo, vestida com crinolina, um chapéu de abas largas, brincar, correr até seus pais, no brilho do pôr-do-sol. O pai olhava satisfeito para ela, sentado na varanda, com seu chapéu de disquete, o charuto sempre presente e um copo de uísque e água.

Foi uma visão fugaz. A imagem desapareceu, com tiros rápidos de rastreamento da casa em chamas e visões de uma fuga aventurosa em um caminhão velho, abastecido com álcool de cana.

A imagem daquela garota, vislumbrada por um momento, como uma vaga lembrança, começou a assombrar meus sonhos. Eu nunca a tinha conhecido, nem sequer estava certo que tivesse existido, mas senti a aura, o cheiro dela, naquela tarde quente, na plantação abandonada. Via novamente, com repetida insistência, a criança em saias. Por muito tempo a sonhei, como fosse parte da minha história.

A angústia de um mundo perdido segurava minhas entranhas, com todas as histórias da opressão, da escravidão, injustiça, que giravam em torno da presença de colonos brancos na terra dos Cafres... O mundo dos brancos na África, a exploração das plantações, tudo isso que eu recusava, pois acreditava na tentativa de construir um mundo melhor.

As plantações coloniais me apareciam como um passado distante e desaparecido, mas não podia digerir a imagem daquela garota, com um aro no cabelo, jogando no grande pátio da fazenda. Quando mais fraco se fazia o foco racional, em momentos de cansaço ou doença, reaparecia aquela imagem, como uma herança da minha consciência.

Os anos passaram. Dez, vinte, trinta, quarenta. O mundo está vivendo novos equilíbrios e desequilíbrios, mas a África continua a ser o fardo esquecido do mundo, com os mais baixos níveis de pobreza, ignorância e insegurança.

Em tempos de incerteza, volta à minha mente a imagem macia daquela garota, sonhada na antiga plantação. Volto pensando para aquela criatura inocente, da tampa grande, na visão de uma tarde tropical. Sua imagem ficou entrelaçada e sobreposta com a de muitas crianças africanas morrendo de fome, ou cobertas de chagas, ou condenadas a morrer por doenças endémicas.

A criança, se ficar vivendo, teria mais ou menos a minha idade. Eu nunca conheci nem parei com ela, mas ela foi o verdadeiro testemunho de meus sucessos e meus fracassos, como se tivesse sido a única companhia constante da minha vida. Eu pensei de identificar o seu rosto, o sorriso triste, em milhares de mulheres passando ao meu lado. A presença dela foi mais viva e concreta, mais reconfortante e animadora que todas as mulheres com quem eu vivi, tentando parcerias efémeras.

Talvez, neste momento, a filha da plantação esteja assistindo ao pôr-do-sol em outro lugar, virando os olhos cansados para a foz do Douro, para outro oceano. Quem sabe quantas vezes, em todos estes anos, ela sentiu, como eu, pendurada em sua cabeça a angústia de tantas vidas destruídas, os destinos quebrados de toda uma geração. Quem sabe – eu estou pensando – se ela também tem um sonho recorrente, e quem sabe se esse sonho é a imagem de um jovem estrangeiro de calça de ganga, que patrulha as máquinas da antiga fazenda em ruínas...

O sol espreita por entre as nuvens desgastadas e tira brilhos dourados do oceano. Hoje à tarde, nas reflexões brilhantes do pôr-do-sol sobre as águas, parece navegar a frota de mil anos, com todos os tripulantes que ficam dispersos nos oceanos do mundo, sob a bandeira portuguesa com o escudo branco e as cinco chagas de Cristo. Não há mais o som de trombetas guerreiras, nem o chilrear de cigarras, ou perfumes fortes sob o sol tropical. Do restaurante se levantam os arranjos pungentes de viola de um fado nostálgico, o cheiro doce de jasmim nesta noite de verão. Estamos distantes no espaço e no tempo, milhares de quilómetros de distância de Quissanga e Bilibiza, quarenta anos mais tarde, para encontrar mais uma vez a vida na fazenda.

A África ainda fica esperando, vasto continente sem paz, oprimido pelos mistérios, abalado por apetites demais. Os restos enferrujados do plantio foram perdidos, varridos como inútil poeira no vento de anos de guerra civil que têm banhado de sangue a região. A voz da fadista ensaia peças, gorjeia uma cascata de sinceros apelos e se desintegra em soluços sobre os acordes das guitarras.

Quanto a mim, eu espreito em torno enquanto caminho pela Afurada, com meu sossego habitual. Pensativo, estou refletindo sobre os meus problemas. Sinto-me perdido, eternamente incapaz de sentar-me no mundo e "ir para a frente". Eu tinha sempre atribuído pouca importância às conquistas que poderiam garantir estabilidade. Pelo contrário: fiquei sempre preso pela vontade de buscar, pela eterna obsessão do Semendel, o pássaro mítico que pode entrar no fogo sem se queimar suas plumas multicoloridas.

Estou andando por uma varanda estreita. O muro que a delimita se debruça para o rio. Sinto-me fora deste mundo, se não fosse o forte cheiro de refogados que emana das casas ao redor e mesmo do restaurante. Gosto desse aroma que me proporciona uma sensação de intimidade, sem forçar-me a um contacto direto com as pessoas que se escondem por trás das cortinas, e inundam a estrada com as vozes de suas conversas, com brigas e palavras de amor.

Perto do restaurante, em um banco solitário frente para o mar, está sentada uma senhora, vestida com um terno de cor clara, com alguns detalhes que revelam a história de "retornada", nascida de uma família colonial e chegada à Europa em tenra idade. Leva um chapéu antiquado, talvez herdado de sua mãe ou tia. Estreita os olhos por trás de um par de óculos escuros, olhando para o pôr-do-sol. Pensa ao passado com nostalgia, perdida nos ventos quente e húmido das monções.

O caminho parece terminar no vácuo e, em vez, termina com um cotovelo apertado, invadido por rajadas de guitarra e notas cheias de saudade que, como o aroma do refogado, chegam dos recessos de outro mundo, separado, paralelo e invisível. Não posso ver nem os músicos nem a cantora, na sala no primeiro andar, mas posso mexer-me na onda da música, sem eles me verem.

No meio de um verso apaixonado do fado, fico com a silhueta da mulher sentada no banco, com a luz de fundo em um halo de fogo. Reconheço-a, como se a tivesse espiado por toda a vida, por trás da tela de consciência. É a garota dos meus sonhos, com o chapéu de abas largas. Está olhando para o mar distante, como um velho lobo-do-mar, como as mulheres que – nos tempos passados – olhavam esperando o regresso dos seus homens do oceano azul. De repente, sinto-me jogado na parábola dos sonhos, expectativas, ilusões, dos potenciais inexplorados. Não me parece um evento real, na pequena varanda com vista para o rio, como fosse a cena de um teatro. Sinto-me afora do meu lugar: não tenho um chapéu de plumas de tirar com um gesto, nunca seria capaz de lançar-me de joelhos diante da mulher, como para arrancar aplausos de um público que não existe.

Desencantado com a vida, pronto para qualquer surpresa, mas – depois de tudo – com medo de ser capaz de fazer um movimento em falso, eu me sinto à vontade para recuar e fugir antes que ela possa notar-me. Em vez disso, avanço devagar, com a prudência do veterano. Meus pensamentos, lembranças, sonhos, sentimentos, tudo é agitado em uma onda única. Desajeitado, envergonhado, me apoio sobre a balaustrada, a poucos passos da senhora. Ela se dá conta da minha presencia, parece esperar uma primeira palavra dos meus lábios. A ansiedade é quase palpável no ar, como o cheiro de alho refogado, como as notas afastadas de uma Degola, dispersas na memória do tempo. Com a voz trémula e incerta do primeiro encontro, ela esboça um sorriso tímido, um aceno da cabeça, e encontro a coragem para perguntar:

– A senhora se lembra de Bilibiza? –

Alberto Arecchi
Enviado por Alberto Arecchi em 27/03/2022
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