Irmãos de Coração

Quem são os nossos amigos se não pessoas colocadas em nosso caminho para nos iluminar, guiar e auxiliar em dias de tempestade? Com eles construímos memórias, escrevemos histórias, damos à vida um sentido e à existência um significado. Ter um amigo é garantia de companhia, de lealdade, de fraternidade. É claro que aqui me refiro às amizades genuínas, àquelas que não se baseiam em interesses que não sejam os do coração. É bem verdade que o valor da amizade tem se perdido nos últimos tempos. Muitos querem ter amigos inumeráveis, querem estar rodeados por multidões de bajuladores, mas não querem ser amigos. Na realidade nem mesmo querem ter, porque amigo não é um bajulador gratuito, um acariciador de egos frágeis. Um amigo é alguém que o aceitará com todas as suas características, mas que também dirá quais passos você precisa retroceder para, assim, continuar.

Um amigo é um verdadeiro irmão. Nossos irmãos são nossos amigos de sangue, mas nossos amigos são nossos irmãos de coração. E amá-los é a coisa mais certa que podemos fazer. Dizer que os amamos é a postura mais adequada para quem sabe viver e sabe o que importa nessa experiência de vida. Demonstrar que eles são especiais, importantes e que não seríamos quem somos sem a sorte de sua companhia, é o mínimo que podemos fazer em homenagem a quem tão bem pode nos fazer.

E sofremos por eles. Sim. Nós sofremos pelos nossos amigos porque eles conquistam espaços em nossos corações. Fundem-se a nós. Misturam-se à nossa existência. Sua dor é a nossa dor. Sua alegria é a nossa alegria. Suas lágrimas, sejam de angústia ou de felicidade, também são as nossas lágrimas. Os sentimentos, quando a amizade é real e verdadeira, são compartilhados, são recíprocos, são sentidos mutuamente.

E perdê-los também é perder um pouquinho de nós.

Ainda mais quando nossos amigos são nossos companheiros de viagens longínquas. Na estrada da vida, ao longo do percurso, vamos conhecendo pessoas novas, formando laços novos, construindo relacionamentos novos. Mas aqueles que chegaram nos primeiros quilômetros não acabam se perdendo, ao contrário, vão o conhecendo mais e mais, vão se tornando parte de quem você é a cada dia, vão aprendendo a ser importantes e vão permitindo que você também o seja. Só que nessa mesma estrada da vida as despedidas se fazem necessárias. Você precisa dizer adeus. Precisa, com água nos olhos, despedir-se de quem o viu cair e o ajudou a se levantar quando ninguém mais estendia a mão. Conforme os anos se passam e você envelhece, não perde apenas a força física, a beleza da aparência jovem ou a clareza da mente. Perde também os amores que conquistou. Os afetos que gerou. As amizades que construiu. Você vai perdendo os retalhos da sua colcha.

Jorge estava bem mais magro do que costumava ser. A pele pálida perdera o bronzeado de anos passados, quando ele se orgulhava de exibir o quanto era vaidoso em tardes quentes na praia. As mãos trêmulas perderam a agilidade da qual ele se gabava quando entrava no centro cirúrgico para salvar vidas. A voz rouca perdera o timbre aveludado que o fazia se divertir pelos karaokês da cidade. Tudo aquilo que o caracterizava havia se perdido. Exceto uma coisa. O olhar esperançoso.

— Vejam só — com a voz enfraquecida, ele se agitou ao me ver —. A que devo a honra? — com dificuldade, sentou-se na cama hospitalar. Estava cercado por aparelhos que monitoravam constantemente seus sinais vitais. O oxigênio preso às suas narinas o ajudavam na tarefa de respirar que nos últimos meses se tornara algo árduo demais para um homem acostumado a se exercitar. Era acompanhado pela neta, uma jovem dedicada que, era nítido, temia perder o avô.

— Jorge! — embora soubesse que encontros como aquele poderiam ser os da despedida, procurava manter a minha própria animação, a minha própria alegria, virtudes que sempre compartilhamos ao longo da nossa viagem. Eu também estava velho, também tinha os meus próprios problemas embora fossem menos agressivos, os anos também haviam passado para mim. Mas a grande questão em momentos como aquele era que eu me defrontava com minha própria finitude. Poderia ser eu naquela cama. Poderia ser eu monitorado por diversos aparelhos. Poderia ser eu recebendo o olhar compassivo de meus netos, temerosos por assistirem à minha partida —. A cada dia mais careca!

— Acho que essa piada já perdeu o efeito — ele acariciou a própria cabeça, lisa como papel —. Lembra-se de como adoravam tocar a minha cabeleira? Fez sucesso enquanto durou.

— Eu me lembro muito bem — o bom da vida são as histórias que a gente vive. É ainda melhor quando essas histórias são compartilhadas. Porque aí, nos momentos finais, quando todas as suas vivências são revisitadas como em uma retrospectiva, você tem com quem rir.

— Acho que vou dar um tempo a vocês — a jovem moça sugeriu —. Pode cuidar dele?

— Mas é claro — respondi.

— Cuidar de mim? — Jorge protestou espantado —. Nem mesmo em meu leito de morte posso ter descanso — falou divertido. Por trás daquela fala uma verdade: fora ele quem cuidara de mim.

Eu deveria ter por volta de dez ou onze anos. Era ainda muito novo para os desafios que a vida impunha sobre mim. Era ainda muito novo para ter que ouvir as falas absurdas de meu pai, um homem viciado, que se sentia um fracassado e descontava sua frustração no abuso que fazia do álcool. Em seus momentos de insanidade, quando a bebida passava a controlar suas ações, ele se tornava agressivo, brigava com qualquer um que cruzasse o seu caminho, perdia a paciência por coisas mínimas.

Nesses episódios, a fim de me proteger, lembro-me que minha mãe me levava junto a ela até o quarto dos fundos. Receosa, trancava a porta, arrastava a cama até a entrada e entrava comigo dentro do guarda-roupa. Ainda que abafado, nós ouvíamos os gritos daquele homem descontrolado, ouvíamos as louças que eram jogadas com fúria pela casa, ouvíamos seus socos e pontapés na porta do quarto que nos protegia. Ela rezava. E eu a abraçava na esperança de que aquelas palavras repetidas em meio ao pavor pudessem salvar a mim também. Quando o barulho cessava, respirávamos aliviados, quando o sol raiasse seria um novo dia.

Mas em um desses episódios a gente não conseguiu escapar.

Estávamos assistindo a um filme e acabamos pegando no sono. Meu pai havia saído com o caminhão dizendo que conseguira algumas cargas, então achávamos que estávamos em segurança. Acordamos desesperados quando a porta da cozinha foi aberta violentamente. Antes que minha mãe pudesse me pegar, aquele homem descontrolado a agarrou. Dizia coisas horríveis. Agredia-a com uma fúria que eu não conseguia entender. Ela suplicava por misericórdia, mas ele dizia que só de não matá-la já estava sendo misericordioso.

Naquela noite os vizinhos do lado esquerdo se cansaram de apenas ouvir o absurdo sem nada fazerem. O pai de Jorge invadiu minha casa, encontrou-me encolhido no canto da cozinha, praguejando contra meu pai me acolheu em seus braços e me entregou à esposa que o aguardava aflita. Não sei o que aconteceu naquela noite, apenas sei que meu pai desapareceu e nunca mais importunou minha mãe.

A mãe de Jorge me levou para sua casa. Tentava falar comigo, mas as cenas de brutalidade não saiam da minha mente, repetiam-se e repetiam-se incansavelmente, como um CD riscado que trava em um trecho específico e repete a mesma coisa eternamente. Jorge, que deveria estar com seus doze ou treze anos, com quem eu estudava, sentou-se ao meu lado na sala bem arrumada, naquele ambiente tão pacífico que me fazia invejá-lo por ter uma família normal. Disse à mãe que ficaria tudo bem. Que ele cuidaria de mim. Orgulhosa do filho, a boa mulher concordou, deixou-nos a sós, e então eu pude chorar. Jorge, sempre tão solicito em aliviar a dor de quem estivesse ao seu lado, aproximou-se um pouco mais, ensaiou algumas vezes e me deu um abraço. Naquela hora eu tive certeza de que não estava sozinho no mundo. Eu tinha um amigo.

— Como está se sentindo hoje? — perguntei sentando-me ao seu lado.

— Na mesma que ontem — respondeu sincero —. Ela não sai daqui. Nenhum minuto se quer. Apenas quando você chega. Precisa falar com ela.

— E o que quer que eu diga? Ela é sua neta. Ama você. Sabemos bem as aventuras nas quais vocês dois se metiam desde que ela era uma ingênua bebê. Acha mesmo que é fácil vê-lo nessas condições?

— Do jeito que fala parece que estou morrendo.

— Eu não quis dizer...

— Relaxa — soltou a gargalhada contagiante —. Eu sei que é verdade. Sei que estou morrendo. Mas não queria que ela perdesse toda a juventude cuidando de um velho moribundo.

— Tenho certeza de que esses momentos estão sendo gratificantes para ela. Seja um pouco mais compreensivo, seu velho ranzinza...

— E como estão as coisas com você?

— Só de acordar todas as manhãs e perceber que ainda respiro já é um milagre, né? — a gente riu —. Quando a gente é jovem não imagina que o simples ato de acordar um dia se transformará na sua maior alegria.

— Nem me fale uma coisa dessas — revirou os olhos —. Tudo era tão melhor. Mais palpável. Eu era dono do meu destino e não sabia.

— Perdeu o controle sobre o próprio destino?

— Que futuro é esse? — abriu os braços —. Ficar na cama de um hospital retira de você todas as suas possibilidades. Eu não entendia aqueles pacientes teimosos que franziam a testa quando eu dizia que ainda não era hora de alta. Agora eu sei o que sentiam.

— E o que você sente?

— Sinto que é isso. A vida é isso. Ela termina.

— Você está calado — já éramos jovens, havíamos entrado na faculdade depois de termos estudado incansavelmente para o vestibular. Não tínhamos condições de pagar por um curso de medicina, então a gente se ajudou mergulhando nos livros e motivando um ao outro para que não perdêssemos o foco. Fato era que havíamos entrado na faculdade. As coisas estavam como a gente queria. Mas Jorge estava calado.

— Será que fizemos a coisa certa, Carlos? — andávamos pelos jardins do campus —. Já estamos com vinte anos. O que foi que vivemos?

— A gente aproveitou de certa forma, não acha? Conseguimos conciliar os estudos com momentos de diversão. Não foram exatamente os que queriam, mas aconteceram.

— E se pudesse ter acontecido mais?

— Valeria a pena? Quero dizer, a gente tinha um sonho. E agora estamos vivendo esse sonho. Não acha que isso vale a pena?

— Eu não sei... E se não dermos conta? E se eu não der conta? Acabar desistindo? Todos aqueles anos serão jogados fora.

— E por que não daria?

— Estudar em uma faculdade não é como estudar na nossa casa para o vestibular.

— Está com medo.

— Que medo? — riu irônico —. Talvez eu esteja tendo um momento de consciência pesada. Posso ter desperdiçado a minha juventude.

— Desperdiçado a sua juventude? — acabei rindo alto —. Olhe para você. Com essa cara de um garoto. Tem muito ainda para ser vivido.

— Será? Faculdade, Carlos, faculdade... Teremos tempo para quê? Andar do apartamento até o campus? E olhe lá...

— Isso é medo. Você sabe de todas as expectativas que foram colocadas em cima de nós e sabe também das suas próprias expectativas, e agora sente medo de ser insuficiente para elas. Mas você só precisa se convencer de uma coisa: será o melhor que puder ser. Se esse melhor não for o melhor para as outras pessoas, dane-se. O importante é que seja o seu próprio melhor.

Ele ficou pensativo.

Riu outra vez.

E por fim disse:

— Já decidiu a sua especialização?

— Psiquiatria.

— Eu suspeitava...

— Mas o bom da vida terminar é que a gente a vive, não acha?

— Lá vem o psiquiatra — revirou os olhos.

— Mas não é verdade? Você tinha medo do que poderia acontecer, lembra? E veja só tudo o que construiu! Tornou-se um dos melhores cirurgiões do país ao mesmo tempo em que construiu uma das mais belas famílias que conheço. E é amado. É amado pelos seus amigos, é amado pela sua família, é amado por seus pacientes! Você é amado. E pessoas amadas não têm um fim.

— Você é um desses amigos?

— Jorge...

— Apenas responda.

Era um dia especial para mim. Eu estava nervoso, extremamente angustiado, repleto de perturbações embora tivesse desejado amargamente por aquilo nas últimas semanas. Eu ia me casar. Mas estava com medo. E se a noiva não chegasse? A igreja estava lotada, eu passaria pela maior vergonha da minha vida. Ou pior! E se a noiva dissesse não? E se eu tivesse feito algo errado e então ela estava esperando por aquele momento para se vingar? Para um formando em psiquiatria eu estava agindo irracionalmente demais.

— Se você não parar de suar terá que tomar um banho antes de dizer o sim — Jorge se aproximou com o seu tom debochado.

— Por que as noivas demoram tanto?

— Não seja um babaca — ele me repreendeu —. Você só precisou vestir uma calça, uma camisa e um paletó. Não pode comparar as coisas.

— Você é um grande incentivador.

— É por isso que sou seu melhor amigo.

— Tão convencido...

— Seu amor por mim é incontestável.

— Agora acha que eu o amo — zombei.

— E não ama? Amigos também dizem “eu te amo”. Eu amo meus amigos. Você não os ama?

Não respondi. Porque, para o meu alívio, ela chegou.

— Você não respondeu aquele dia, Carlos. No seu casamento — Jorge insistia —. E eu deixei para lá. Era um outro tempo. Mas você já viu os jovens de hoje? Eles não estão nem aí na hora de demonstrar o que sentem. Não importa se são apenas amigos. Eles dizem o que sentem. Você deveria aprender com eles.

— Essa é uma pergunta muito íntima. E eu diria que desnecessária. A gente sabe quando as pessoas gostam da gente. Eu já não deixei isso claro?

— Gostar e amar são coisas distintas. Eu amo você. Sempre amei. E você?

Engoli em seco.

É claro que eu sentia amor por ele. Era meu amigo! Mas dizer aquilo, naquelas circunstâncias, poderia ser arriscado para alguém como eu, que tentava de todas as formas fingir para mim mesmo que acreditava inteiramente na ideia de que tudo ficaria bem. E, realmente, as coisas podem ficar bem. Mas quando é alguém que você ama que se encontra naquela situação, fica mais difícil se convencer disso.

— Sim, Jorge. Eu amo você — as lágrimas brotaram —. E é por isso que eu não queria dizer. É por isso que é tão difícil para mim vê-lo nessa cama. Nessas condições. Partindo aos poucos. Levando junto um pedaço de quem sou.

— Isso é tão sentimental... — mesmo emocionado, ele deu um jeito de tornar a situação engraçada —. Não se chateie, meu velho amigo — pegou em minha mão —. Eu estou chegando no ponto da estrada da vida, naquele ponto em que esperamos o ônibus passar e nos pegar. Isso não quer dizer que acabou. Quer dizer que fui na frente. Que você vai precisar andar alguns quilômetros por conta própria. Mas um dia será você quem chegará a esse ponto. E o ônibus virá buscá-lo. Só que eu prometo que, assim com fazíamos quando éramos crianças, e depois quando nos tornamos adolescentes e mesmo já adultos, eu estarei guardando o seu lugar na janela.

Aquele foi o nosso último dia juntos. Quando tive a oportunidade da última despedida, das derradeiras palavras, do abraço final. Quando tive a oportunidade de entender que nossos amigos não partem completamente. Eles continuam em nós. E, de alguma forma, em algum momento, em algum lugar, nós nos reencontraremos e nossos pedaços tornarão a se encaixar. Porque amizade é isso. É dar um pouco de si e receber um pouco do outro. E formar quem são vocês.

(Conto por @Amilton.Jnior)