CONTO | Morte antes do fim
Era 1876. Afrânio era um jornalista que trabalhava na Gazeta de Notícias, na Côrte. Entre os seus colegas de pena, ele gabava-se do seu russo; Afrânio e D. Pedro II talvez eram os únicos brasileiros que dominavam o idioma cirílico. Desde o início daquele ano, Afrânio ouvia rumores na redação sobre uma nova viagem que o imperador D. Pedro II planejava fazer. Quatro anos antes, os jornais relataram com entusiasmo -- e Afrânio fora um dos entusiasmados redatores -- as andanças do monarca brasileiro pelo Oriente Médio.
Era curioso, o imperador fazia questão de dizer que viajava como um particular, como um cidadão do seu país; Sua Majestade, quando do check-in em algum hotel três estrelas, assinava sempre "Pedro d'Alcântara". As cerimônias eram-lhe detestáveis, a pompa & circunstância "caceteava", como ele mesmo deixara claro em seus diários.
Os jornais estrangeiros, mesmo avisados do caráter particular da visita do nobre Bragança sul-americano, anunciavam, sem sucesso em evitar o tom burlesco: "Sua Majestade, o Imperador do Brasil, viaja como um cidadão comum; Sua Majestade está hospedado no Hotel tal, andar tal, quarto tal". Era cômico, mas para Pedro II devia ser trágico. Afrânio imaginou que, se o imperador decidisse viajar novamente naquele ano, as coisas não seriam diferentes.
Em março as suspeitas foram confirmadas: D. Pedro II, em companhia da Imperatriz Tereza Christina e de uma pequena comitiva de meia-dúzia de pessoas, sairia para mais uma viagem internacional. A Princesa Isabel ficaria como Regente do Império durante a ausência do pai. "Sua Majestade padece da doença da mala", dizia uma manchete redigida pelo próprio Afrânio na Gazeta de Notícias.
Partiu a modesta comitiva. A primeira paragem foi em Nova York. Valendo-se dos serviços de telégrafo que, graças ao Barão de Mauá, já deixavam a Côrte do Rio de Janeiro a par das últimas que se passavam nas principais cidades do mundo, Afrânio soube da estranhamente calorosa recepção que os nova-iorquinos deram ao imperador do Brasil. Afrânio esforçava-se para se manter alerta quanto às movimentações do imperador no estrangeiro.
Infelizmente, no entanto, o pobre Afrânio adoecera. A redação da Gazeta de Notícias dera-lhe uma licença para se tratar da tuberculose. Em casa, ele passa a acompanhar a peregrinação da comitiva imperial pelos jornais, pelas penas de outros. Afrânio fica encantado quando lê sobre a Exposição Universal da Philadelphia, cuja abertura ficara a cargo do monarca brasileiro.
Os meses passam-se e Afrânio não tem melhora. Preso à poltrona da sala de leitura, passa os dias entre as manchetes dos jornais e os livros. Curiosamente, o redator licenciado passou a ler Dostoiévski assim que largou sobre a mesa a Gazeta que anunciava a chegada de D. Pedro II à Russia. As manchetes de setembro de 1876 falavam sobre a recepção que a Academia de Ciências da Universidade de São Petersburgo dera ao monarca brasileiro.
Quando Afrânio cobria a primeira viagem do imperador ao exterior, em 1872, ganhou de presente de um padre seu amigo um livro em russo: Biesy, a narrativa era uma recriação de um assassinato que ocorrera na Rússia anos antes. Afrânio estudara russo com um padre ortodoxo que viera para o Brasil a fim de prospectar a fertilidade do solo para as sementes de uma fé ligeiramente diferente da professada pelos habitantes da Terra de Santa Cruz.
Os jornais falavam com orgulho das calorosas recepções que Pedro II -- a contragosto -- recebia nas terras do Czar. Proeminências das artes e das ciências acotovelavam-se nos salões para cumprimentar o monarca dos trópicos. Numa entusiasmada reportagem, Afrânio, enquanto se recuperava de mais uma dolorosa crise de tuberculose, lera sobre o encontro do imperador com o inventor da tabela periódica dos elementos químicos, o russo Dimitri Mendeleiev.
Conhecida era a fama da erudição de Pedro II. Os jornais estrangeiros relataram como, durante uma palestra na Academia de Ciências da Universidade de São Petersburgo, o imperador brasileiro não hesitara em corrigir o palestrante que cometera uma gafe relativa a um tema de geografia. Lendo Biesy, que poderia ser traduzido como Os demônios ou Os possessos, e outros dos romances de Dostoiévski emprestados do padre amigo, Afrânio passou a conjecturar semelhanças e diferenças entre a longínqua Rússia e o Império do Brasil.
Afrânio concentrou-se na temática social. Ele sabia que o povo brasileiro, especialmente os seus conterrâneos da Côrte, amava o imperador. Mas, e na Rússia? O povo daquela terra longínqua amava o seu Czar? Haveria, desde as planícies siberianas, muito para além dos Monteis Urais, às praias dos mares Negro e Cáspio devoção ao monarca? Afrânio sabia que o amor que um povo devotava ao seu rei estava em função do senso de dever e de sacrifício que o soberano devotava ao seu povo.
Há três anos, quando Pedro II regressava de sua primeira viagem ao exterior, os jornais de todo o Império informaram aos leitores despreocupados sobre as resoluções da primeira convenção republicana do país, que se realizara na cidade paulista de Itu. Na redação da Gazeta, Afrânio, que compunha a minoria monarquista, ficara alarmado; ele temia pelo fim do regime monárquico no Brasil.
Até quando pôde ele manteve-se fiel às leituras das manchetes que narravam as visitas do imperador aos museus, aos teatros, às instituições científicas. Ao correr os olhos sobre um parágrafo qualquer, Afrânio sorria consigo imaginando que o trecho poderia ter sido escrito de outra forma, à sua maneira. Em setembro de 1877, os repórteres da Gazeta de Notícias teriam uma oportunidade de ouro: cobrir o desembarque da comitiva imperial no porto. Era o regresso do imperador.
Os amigos do Afrânio, depois de acotovelarem-se com os repórteres de jornais de todo o Império no Paço, deixaram o local satisfeitos. Na manhã seguinte teriam notícias frescas para publicar sobre o término daquela saga imperial que percorrera três continentes. Antes de voltarem para a redação da Gazeta, porém, os companheiros do Afrânio deixaram flores sobre o túmulo do amigo no Cemitério da Penitência, no bairro do caju.
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