O VISLUMBRE DE UMA CONVERSA - I

É sexta-feira, saio do trabalho pontualmente às 5 da tarde, caminho rapidamente até o carro. A jornada é curta, mas a cada passo que dou parece que fica mais longe. Em meus ombros, carrego o peso de mais uma semana de trabalho, sinto-me cansada. Assim, vivo constantemente.

Minha vida se resume a trabalho e mais trabalho. É o que se espera de um adulto, ou pelo menos é o que eu ouvi na adolescência. O fato é que cresci, e assim como meus pais, vivo exclusivamente para o trabalho. Tenho poucos amigos, com os quais compartilho tudo, ou melhor, quase tudo.

Neste dia, sinto-me pesada: coração acelerado, mente a todo o vapor. Não sou uma pessoa vazia, pelo contrário sou cheia - de sentimentos, culpas e situações mal resolvidas que na maioria das vezes me arremete ao estado de soletude. Antes que imagine, não! Não sou antissocial, apenas aprecio a minha companhia, gosto de estar comigo mesma. Às vezes, meus pensamentos são tão concretos que é como se eles ganhassem forma física e saíssem de mim para conversar. Procuro saber a verdade sempre, porém as respostas podem não ser aquilo que queremos ouvir. Acredito que a frase célebre: a verdade dói vem desse sentido, quase sempre queremos idealizar as coisas e ter a nossa própria verdade, quão tola me acho por isso.

Romântica? Não, gosto de vivenciar a realidade e firmar os pés no chão, mesmo apaixonada por romances, na vida real evito viver clichês. Não me arrisco, aliás nunca me arrisquei. Certa vez ouvi alguém dizer: “A gente não escolhe por quem se apaixona.” Penso no amor, mas ele não é uma escolha, dessa forma, escolhi não me apaixonar. Gosto de suposições, mas à medida que envelheço o meu eu, o verdadeiro eu diz: questione tudo, sempre enxergue além, além do óbvio e das suposições.

Ao chegar no carro, sento e com o mesmo olhar distante me vejo vagando em meus pensamentos, obscuros? Talvez. Aliás, a minha vida é uma constância de talvez. Dou a manobra e saio no sentido centro da cidade, moro sozinha em um apartamento grande que mais parece uma prisão, mas lá no conforto do meu quarto (meu lugar preferido) posso viajar nos pensamentos sem ser questionada, sem ser mal interpretada, além disso, odeio quando me perguntam o que estou pensando.

O trânsito está calmo, pessoas caminham rapidamente no vai e vem desenfreado, uns voltam da escola, outros do trabalho e assim a vida segue seu curso indiscutível e mesmo que você pare, ela continua.

Droga! O sinal vai fechar, tenho pressa. Tenho urgência de chegar em casa. Sou uma pessoa de princípios, dessa forma, não avanço o sinal. Em meio a tantas pessoas, vejo uma moça que está parada próximo ao sinal vestindo uma calça jeans desbotada quase em tiras, pergunto-me como alguém pode usar aquilo... sua camiseta branca estampada em letras garrafais: FODA-SE, é algo chamativo, porém o que mais me chama atenção é o seu cabelo, um rosa um tanto espetacular.

Em uma fração de segundos nossos olhos se esbarraram, e foi o estopim de uma conversa, acredito que a conversa mais sensata e eloquente que tive. Nada foi dito, e nossos olhos fitaram-se e como em um passe de mágica nossas mentes se conectaram.

Em momento algum quis fugir daquele olhar, pelo contrário. Nossos olhos tornaram-se um, pois refletia o mesmo vislumbre, apenas a carga de sentimentos era diferente. Houve troca, troca de emoções e eu pude entender coisas que até então, não faziam sentido para mim. Foi recíproco. Ah! Que expressividade aqueles glóbulos azuis revelaram: a personalidade, a verdadeira personalidade de sua dona, a qual fiquei encantada por tamanha destreza e coragem.

Quantas coisas cabem em um olhar... é difícil explicar. Ouço buzinas, um cara impaciente grita insultos, pois não percebi que o sinal estava aberto. Não me chateio, afinal ele não compreende o teor da conversa. Tenho que seguir viagem. A lobrigo pela última vez com pesar, e por um milésimo de segundo, ela leva o dedo indicador até os lábios, pedindo-me sigilo total da nossa conversa. Concordo, afinal.

Sigo meu caminho, mas não com a pressa de outrora. Aprendi a desacelerar, seguir com calma e aproveitar o que tenho. E quanto a urgência de chegar ao meu destino, sigo um rumo contrário.

Daniele Pereira
Enviado por Daniele Pereira em 17/03/2022
Reeditado em 17/03/2022
Código do texto: T7474869
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