O homem da face sombria - O MASSACRE DOS CANIBAIS DE NOVO HAMBURGO
O MASSACRE DOS CANIBAIS DE NOVO HAMBURGO.
Em um dado momento da era antiga, o canibalismo acontecia como um ritual comum. Diversas tribos costumavam sacrificar outros seres humanos para comer uma parte da carne do corpo da vítima. Entre os povos astecas, sacrificavam-se e comiam-se os prisioneiros de guerra e pessoas de outras tribos.
O canibalismo era comum em rituais satânicos, onde era normal um indivíduo ser morto para algum deus. Acreditavam que, ao comer a carne de seus mortos oferecido aos deuses, eles iriam receber toda sua força e seu poder. Além disso, em alguns rituais, acreditavam-se que se uma pessoa sacrificada estivesse possuída por algum demônio, este possuiria o canibal, o tornando poderoso.
No Brasil, índios brasileiros da tribo Tupinambá, costumavam praticar o canibalismo. Eles usavam a carne humana em rituais sagrados.
Os tupinambás, acreditavam que, ao comer a carne de seus inimigos mortos, eles herdariam a bravura, a coragem e a força do adversário. Além da carne dos rivais, era comum eles comerem a carne de alguns integrantes de sua própria tribo. Eles acreditavam que se fossem comidos após sua morte, se tornariam um símbolo de coragem e de honra.
Existem tipos distintos de canibalismo humano, o endocanibalismo, o autocanibalismo, o exocanibalismo e o canibalismo de sobrevivência. Todos seguem a ideia de comer carne de indivíduos da mesma espécie.
A questão aqui é, em que momento isso passa a se tornar um símbolo de poder e coragem e passa a ser sinônimo de atrocidades?
Contudo falar sobre o tema hoje em dia é em demasia um ato sensível às pessoas afetivas e moralistas, que impõe censuras diante de tais atos.
Apesar de indigesto o tema, vemos na história uma normalidade que não temos mais e que isso implica em julgamentos perante a sociedade. No entanto não há crime em comer carne humana.
O ato de canibalismo no Brasil, pode ser enquadrado no artigo 211, do Código Penal: “destruição, subtração ou ocultação de cadáver”. Sendo um indiciamento alternativo, porque mesmo que o sujeito pratique mais de uma conduta em relação ao mesmo cadáver, responderá por um único crime. E ingerir a carne humana significa destruir o cadáver, ou parte dele. Sua pena será de três anos, caso prove que não matou aquele que você estava comendo.
Nos tempos atuais esses atos são reservados a pessoas mentalmente doentes, desorientadas da realidade e psicopatas.
Um exemplo clássico dessa psicopatia é Andrei Romanovich Chikatilo, conhecido também como açougueiro de Rostov, o Estripador Vermelho e o Estripador de Rostov. Se tornou notório por confessar o assassinato de 53 pessoas entre 1978 e 1990.
Durante anos Andrei Chikatilo matou e canibalizou dezenas de vítimas em sua maioria crianças, que ele encontrava em estações de ônibus ou trens. Chikatilo antes de ser executado em condenação por pena de morte, contou detalhes sangrentos de seus crimes e de como fervia e arrancava testículos e mamilos de suas vítimas e definiu-se a si mesmo como “besta louca” e “aborto da natureza”.
Tudo isso contempla o caso a seguir, onde Joey e eu fomos chamados a uma área de mata, pelo inspetor Lancaster e a delegada Bárbara. Como a polícia estava lá a gata não foi deixando que nós contássemos os por menores do ocorrido posteriormente.
A cena chocou Joey e aos policiais profundamente, o cadáver estava quente, mole, em estado de decomposição, seus ossos apareciam nas pernas, peito e rosto, sua garganta havia sido cortada, e sua roupa arrancada. Marcas nos ossos faziam crer que ele estava ali a um tempo considerável, já que parecia ter sido descartado e devorado por animais. Joey e Lancaster pediram licença a mim e a Bárbara e foram respirar longe daquela atmosfera putrefata que envolvia o perímetro do corpo. Bárbara olhava para mim com cara de espanto, se aproximou e perguntou se eu não estava enjoado com aquela cena, respondi apenas que não, fora o cheiro de carne podre, a cena não me incomodava. Realmente não me causava incômodo, alguém como eu acostumado a desmembrar corpos e sumir com seus restos, com certeza não poderia sentir nada diante aquela cena tenebrosa.
Já era quase noite de uma quarta-feira de tempo chuvoso, a chuva recém havia dado uma trégua, mas quando ainda estávamos na cena do crime ela voltou a cair de forma mais branda. A área de mata ficava no Parquão de Novo Hamburgo. Um lugar de distração familiar, cheio de atividades, incluindo uma área de mata fechada com trilhas a serem exploradas pelos visitantes do local. Muitas pessoas frequentavam o lugar nos fins de semana, trazendo seus filhos e suas famílias. Foi uma adolescente que encontrou o corpo. Obviamente ele havia sido largado ali para ser enterrado, mas algo deu errado. Alguém deve ter surpreendido o assassino que abandonou o corpo de qualquer jeito, sendo facilmente achado.
A estranheza de como o estado do corpo estava é o ponto que nos deixava com a questão, de onde teria sido trazido o corpo, uma vez que não havia animais na região capazes de fazer tais estragos no cadáver, a não ser os graxains, mas as mordidas não condiziam com as marcas no cadáver. Como não havia roupas e nem documentos, a vítima não podia ser identificada no momento. Estávamos à espera da perícia, mas algo nas mordidas não batiam. O formato estava errado, as ranhuras dos ossos não eram profundas como as de um animal e sim arredondadas. Era típico de mordidas humanas. Levantei a minha desconfiança a delegada que ficou incrédula. Joey achou precipitado meu julgamento, então esperamos a perícia para nos dar uma luz. Para mim era óbvio o que ocorreu, no entanto ninguém quis acreditar em um psicopata canibal a solta nas ruas de Novo Hamburgo.
A noite cai e a perícia chega ao local. Constatou o sexo a idade e a hora aproximada da morte. A possível causa do homicídio foi a clássica decola com instrumento cortante de lâmina fina. Uma típica faca de açougue bem afiada. Apesar dos ossos ruídos a carne foi cortada na parte externa da coxa. As marcas de mordidas iriam ser analisadas para se ter certeza de que eram humanas. Eu já tinha minhas certezas e Joey estava cada vez mais convencida sobre minha tese. Tudo levava a crer em um canibal devorador de homens que, estava a solto na cidade. Precisávamos detê-lo a todo custo e isso significava, encontrá-lo o mais rápido possível.
Pretendo sumir com seu corpo se possível, mas temo pela proximidade de Joey. Ela anda muito mais apegada a mim agora. Está sempre ao meu lado e interessada no trabalho. Apesar deste caso causar-lhe repulsa, ela está animada. Ligou para gata e informou os pormenores do caso. As duas ficaram com uma animação curiosa. Confesso que até achei estranho, uma vez que as duas tinham ciúmes uma da outra.
Naquela noite mesmo, a gata saiu pela noite procurando antigos contatos, de modo a ajudar em nossa busca pelo canibal. As buscas da gata foram em vão e ela nada conseguiu nas ruas. Era nítido a desolação delas quando não acharam nenhum ponto inicial para desvendar o quebra cabeça.
No outro dia pela manhã, fazia calor, nossos corpos cansados pela noite mal dormida se arrastavam pelas ruas da cidade. Foi quando Bárbara ligou. Encontraram outro corpo nas mesmas proximidades, com a mesma forma de agir, só que agora o canibal cortou partes das pernas, braços e genitálias de forma precisa. Usou aparentemente uma faca bem afiada. Quando vimos o corpo ele estava numa mala, desmembrado e com o fêmur ruído pelas mesmas marcas de dentes. Era curioso ele cozinhar as vítimas, mas cortar as carnes mais macias para comer em outro momento era perturbador. Seguíamos no aguardo de resultados oficiais, uma vez que nenhuma pista havia sido deixada. Nenhum dos mortos tinha identificação, nenhuma família relatou o sumiço de ninguém. A dedução mais segura era de que ambos fossem mendigos, em situação de rua, pessoas sem importância para a sociedade.
A gata ficou fascinada com a cena, enquanto Joey e Lancaster tentavam conseguir alguma evidência que nos levasse ao assassino antes da perícia chegar.
O corpo foi encontrado na calçada ao lado de uma lixeira. A coleta de lixo passou para recolher os particulares das casas e notaram o peso da mala. Ao abrirem se depararam com o corpo de um homem, com cabelo castanho, meia idade idades sem roupas.
Esperávamos pela perícia. Quando chegaram a gata viu em um dos crachás dos peritos do IGP que Rosemary Vasconcelos era a líder da equipe designada ao local. Ela se aproximou perguntando se já havia algum resultado dos exames nos ossos. Rosemary disse que havia somente exames preliminares e que o laudo ia ser divulgado apenas a polícia no prazo de trinta dias. A gata ficou furiosa e engoliu seco a arrogância. Joey ouviu toda a conversa e não gostando da forma com que foi falado, reclamou a perita, pediu que medisse as palavras, pois todos estavam do mesmo lado. Rosemary avaliava nosso trabalho como uma afronta, porque chegávamos primeiro na cena do crime e nossas conclusões eram as mesmas que a do instituto geral de perícia, mas como éramos mais rápidos, os casos eram resolvidos muito antes de seus laudos chegarem a polícia. Isso irritava os peritos que não nos forneciam informações. Contudo a gata sabia que alguns resultados não oficiais haviam sido achados e ela não iria deixar passar a oportunidade de invadir um local fragilmente protegido. A gata e a Joey não receberam bem a arrogância da perita chefe e tramaram de entrar durante a noite no IGP.
Eu concordei, pois as duas estavam indo a forra com os peritos e ainda conseguiriam informações privilegiadas do caso. Dei meu sinal verde para elas, mas pedi que não deixassem evidências e que a ação das duas não caíssem nos ouvidos da polícia. A gata com ódio no olhar disse para mim que não me preocupasse e que tudo sairia perfeito com o selo de qualidade gata de agir. Naquela noite as duas saíram de roupas pretas. A gata levava uma mochila com aparatos conseguidos no mercado ilegal. Ela portava chaves michas, para arrombar as portas e um decodificador de senhas para desativar alarmes e invadir o sistema de câmeras para apagar suas ações. Ambas levaram máscaras. Pegaram um trem por volta das vinte e duas horas, descendo na última estação de Novo Hamburgo. Foram até um abrigo onde a gata tinha alguns olheiros que a ajudavam em seus crimes. Quando chegou no horário de três da madrugada, as duas entraram no instituto geral de perícia, coletaram as informações do computador e passaram para um pendrive. Deixaram tudo como estava e retornaram para casa. A ação das duas naquela noite nunca foi descoberta.
Abrimos na manhã seguinte o pendrive no notebook da Joey. As informações contidas ali confirmaram que as mordidas eram humanas, realizadas por caninos e que continham platina nas marcas. Ficou claro que nosso canibal usava uma prótese de platina em um dos caninos.
Com essa informação começamos a pesquisar clínicas odontológicas que implantaram tais próteses. A busca ficou muito vaga, mas Joey conhecia um especialista que identificava pessoas pelas arcadas dentarias e que também trabalhava em uma clínica particular de odontologia que poderia nos indicar um caminho a seguir. Joey e a gata foram até ele, enquanto eu fui encontrar a delegada Bárbara na central de polícia.
Fui informar a ela que suspeitávamos de uma prótese dentária feita em platina e que estávamos investigando clínicas que realizariam implantes de tais próteses nos arredores de onde os corpos foram encontrados. Não dei muitos detalhes para não abrir margem a um interrogatório, mesmo porque Bárbara era esperta e desconfiaria de como encontramos a informação acerca do dente platinado.
Ela apenas me pediu que a mantivesse informada e que era para agir com a agilidade de sempre, isso incluía meios não convencionais e ela sabia, pois tinha ao meu lado a gata, que na verdade é uma ex-ladra mafiosa que enriqueceu seu pai roubando joias e objetos de valor e que nunca foi presa. Também tinha ao meu lado a Joey, de comportamento instável que podia migrar para o ódio em instantes e depois agir com doçura pouco tempo depois de destruir alguém. Sim e tinha eu, um sociopata funcional extremamente ativo que agia nas sombras eliminando as almas malvadas da cidade e purificando a terra onde mora. Nossa equipe era boa por ter estas particularidades em cada um. O fato de ganhar dinheiro era uma consequência do trabalho, mas o que nos atrai eram os desafios impostos em cada caso e a forma como nós os solucionávamos.
Me despedi da delegada e encontrei Lancaster batendo cabeça em um caso de desaparecimento de uma jovem de dezessete anos. Me interessei e me propus ajudá-lo gratuitamente, ele me contou os pormenores e mostrou algumas fotos. Indiquei o suspeito mais óbvio, que era o ex-namorado. Lancaster constatou em uma breve análise que o rapaz era de maior e possuía diversas passagens. Ligou para o endereço cadastrado no sistema e confirmou que ele havia viajado no mesmo período em que a jovem sumiu. Eu disse a Lancaster que ela estava morta e que ele a havia matado. Aconselhei a ele que pedisse que o encontrasse. O suspeito certamente largaria o corpo em um local afastado fora da cidade e tentaria sumir. Lancaster seguiu meu conselho e eu fui embora de cabeça limpa.
Joey e a gata chegaram no consultório do odontologista especialista em reconhecer vítimas pela arcada dentária. Ele era muito atencioso com a Joey o que levantou uma certa crise possessiva na gata. Ela era muito territorial e quando gostava de alguém era como se esta pessoa pertencesse a ela. Era esse o sentimento da gata pela Joey. À medida que elas foram se conhecendo, o ciúme da gata virou um sentimento de posse. A gata a defendia e não deixava ninguém se aproximar dela com segundas intenções. Nisso a gata era boa. Quando ela viu intenções maldosas do dentista para com a Joey, ela começou a sua típica arrogância debochada, até o momento crucial da conversa em que ela olhou para o doutor e disse:
- Vai nos ajudar ou ficar flertando com minha parceira?
- Desculpe, mas não estou flertando com a Joey, só estou sendo gentil. – Respondeu intimidado o médico odontológico.
- Se não pode nos ajudar diz logo que a gente vai embora. E ela já está comprometida.
- Eu sinto muito Joey, eu não sabia.
Joey percebendo que a informação não chegaria se ela continuasse aceitando os flertes do dentista, tratou de dar um fim nisso.
- Já fui sua cliente doutor Juan, seu comportamento muito me estranha, pois quando marcamos hoje de nos encontrar, meu interesse era puro profissionalismo, espero que entenda.
- Perdão minha cara Joey, peço desculpas a vocês pela grosseria, achei que fazendo isso, vocês iriam embora, não entendam mal, mas quero ajudá-las, contudo meu lado ético me impede de apontar outro colega de profissão.
- É um caso importante e parece que você conhece quem faz essas próteses de platina.
- De fato, veja bem Joey, aqui na cidade há uma quantidade limitada de odontologistas aptos a realizar esse procedimento, creio que vocês procuram o doutor Antônio Alves. Ele atende no centro na rua Joaquim Nabuco. Eu vou avisar que vocês duas irão lá hoje à tarde.
- Muito obrigado doutor Juan.
- De nada estou as ordens, mas por favor não me complique. Tenho meu trabalho de identificação de corpos por arcadas dentarias e não posso perder minha licença por ajudar vocês.
- Tudo bem, não diremos que nos indicou, só que nos forneceu o endereço para uma consulta.
As duas saíram dali e como já era meio-dia, foram almoçar. Eu, estava em casa, esperava notícias delas que não chegaram. Fui então atrás de pistas nas ruas. Sozinho as chances de encontrar alguém para matar eram maiores.
A tarde Joey e a gata foram visitar o odontologista Antônio Alves, que as recebeu gentilmente. Tão logo elas explicaram o caso que investigávamos, ele cooperou com as duas. Elas foram bem nas perguntas e conseguiram um único paciente nos últimos anos. Atualmente ninguém pede por platina e sim cerâmica, por tanto foi fácil encontrar nos registros um nome para o suspeito dos crimes de canibalismo.
As duas me ligaram e com o nome em mãos pedi a delegada Bárbara e ao inspetor Lancaster o endereço do nosso suspeito.
José Januário vivia com sua esposa Catarina Claussner em um sobrado próximo a igreja do relógio em Novo Hamburgo.
Januário era um sujeito mestiço claro, olhos enormes castanhos, barba rala, alto com boa força física e sempre trajando calças jeans e camisas. Bem instruído, geralmente era visto como homem sério de pouca conversa. Muito religioso frequentava dominicalmente as missas na igreja do relógio.
Catarina Claussner era loira, falava com sotaque alemão, tinha olhos verdes, estatura baixa, corpo definido e trajava na maioria das vezes roupas curtas que enfatizavam sua silhueta e belas pernas. Estava sempre presente com seu marido na igreja e os dois não tinham filhos. Aparentavam ter trinta anos ou menos e Catarina ajudava Januário na mercearia próximo ao sobrado onde vivem. A mercearia aparentemente era de propriedade dos dois, pois apenas eles atendiam no comércio.
Durante aquela semana passamos a nos revezar no monitoramento do casal, nossa intenção era de que os dois cometessem algum erro que os incriminassem, mas naquela semana nada aconteceu.
Pensamos que havíamos suspeitado das pessoas erradas quando Joey teve uma ideia. Sua intenção era comprar carnes no açougue da mercearia dos dois e mandar para análise. Se eles estivessem comendo, poderiam estar comercializando também carne humana. A gata logo concordou e eu aceitei a ideia. Como as duas estavam empolgadas, elas foram até o local comprar as supostas carnes humanas de Januário e Catarina Claussner.
Eram três horas da tarde, quando as duas entraram na mercearia dos nossos principais suspeitos. Enquanto elas compravam diferentes peças de carnes que aos olhos delas poderiam ser suspeitas, eu ligava para Lancaster informando o que estávamos fazendo. Ele pediu que nós o aguardássemos. Ele havia pegado uma autorização para levar a carne até perícia de modo a verificar a existência de DNA humano e se correspondiam a alguma das vítimas.
Joey e a gata se depararam com Januário no açougue que ficava ao fundo da mercearia. Pediram a ele se tinha alguma carne especial, pois queriam impressionar em uma janta de negócios. Januário respondeu sorrindo que ele tinha uma carne muito nobre que poderia interessar a elas. Eram cortes já prontos de uma coloração mais rosada que a carne normal. As duas aceitaram, mas ele a pedido de Catarina ofereceu suas linguiças caseiras para um café especial, alegando que o gosto e aromas delas eram únicos e que quem experimentava, adorava a experiência da degustação fina e que seus clientes sempre voltavam para comprar mais.
Suspeitando do bom atendimento elas levaram as carnes indicadas e mais algumas outras peças mais conhecidas. Saíram depois de uma boa conversa com os suspeitos e algo chamou a atenção da boa observadora Joey. O sorriso de Januário ao se despedir delas. Ele tinha uma prótese dentária de platina no canino superior direito. O mesmo canino com indício de platina atestado no laudo feito pelo IGP e roubado por elas.
Elas praticamente confirmaram os culpados, mas precisávamos da prova física. Eu estava no aguardo de Lancaster quando as duas chegaram radiantes. A gata estranhamente bem-vestida com uma camisa esportiva e short jeans claro e a Joey elegante com sua calça social, salto de meia plataforma e uma camisa branca bem passada. As duas estavam se dando bem e isso me agradou bastante, pois me dava liberdade de sair sozinho e caçar pessoas mal-intencionadas pelas ruas da cidade.
Lancaster demorou a chegar no ponto de encontro. Ele trouxe junto a delegada Bárbara e outra inspetora, uma tal de Manaus. Veio do Norte a pouco tempo e estava sendo instruída por Lancaster. Seu nome é Leila, mas ninguém a chama assim, só por seu apelido que era a cidade de onde veio.
Bárbara nos apresentou Manaus e disse que era confiável, sabia manter sigilo e estava a par de como agíamos. Explicamos tudo a eles, as meninas entraram com uma microcâmera escondida na caneta que Joey portava no bolso de sua camisa. Entregamos a carne e enviaríamos as filmagens dos suspeitos a eles naquela tarde.
Todos concordaram que o atendimento havia sido muito estranho e as evidências mostravam que a carne era de origem suspeita. Os cortes prontos e a insistência de levar as tais linguiças feitas por eles causaram uma certa aversão de sentimentos. Manaus estava calada e com a cara séria e fechada como se estivesse indo para a batalha, disse que se as carnes tiverem sinais de DNA humano isso vai ser um escândalo porque muita gente vai ter comido dessas carnes. Todos serão canibais inconscientemente. Lancaster sentiu repulsa dos dois e os queria presos. Bárbara agia com calma e pés no chão, sempre concentrada e atenta aos fatos, preferiu aguardar um sinal positivo do instituto geral de perícia, para assim efetuar a prisão com provas irrefutáveis.
Fomos para casa na certeza de dever cumprido, só que as garotas queriam agilidade. Estavam aflitas pela resolução do caso. Nos dias que se passaram elas importunaram a delegada Bárbara até que ela pedisse prioridade nas análises. Nem Manaus escapou da pressa dada por Joey e pela gata.
Eu estava em casa recebendo uma cliente quando Bárbara me ligou pessoalmente para falar que confirmaram a existência de material humano nas carnes e linguiças e que o DNA encontrado bate com uma das vítimas. Isso queria dizer uma coisa que havia mais vítimas e com isso mais corpos espalhados pela cidade.
Gostaria de participar do momento da prisão dos dois, disse a Bárbara. Ela respondeu que sim e que eu levasse as duas chatas das minhas associadas junto. Já que elas eram as mais interessadas nos crimes e elucidaram praticamente sozinhas o caso.
De fato, fomos coadjuvantes nesse caso em que as duas se destacaram de forma magnífica. O mandado de prisão estava pronto e logo pela manhã do outro dia todos saímos em diligência da central de polícia de Novo Hamburgo até a mercearia de Januário e Catarina. As portas recém haviam sido levantadas e uma equipe de cinco agentes e os inspetores Lancaster e Manaus além de Bárbara e nossa equipe de consultores, entramos no estabelecimento. Não houve reação por parte dos dois. Eles se mantiveram em silêncio até a chegada na central de polícia.
No açougue apreenderam todas as carnes que foram mandadas para serem periciadas, foram feitas buscas no local para achar restos de corpos humanos, mas nada mais foi encontrado.
O caso chamou atenção e o jornal que circula na cidade ficou sabendo e iria noticiar os fatos. Bárbara designou Lancaster e pediu para Joey e a gata participarem da entrevista, enquanto eu e ela os faziam confessar seus crimes. Havia mandato apenas para o comércio de carnes e não para a casa do casal de canibais.
Após as entrevistas fomos ao interrogatório dos acusados. Quem iria interrogar ambos seria Bárbara e Lancaster, nós ficamos em outra sala observando a conduta de ambos. Primeiramente levaram Catarina, supostamente ela seria mais frágil psicologicamente e poderia fornecer detalhes do crime, porém ela não falou nada e negou ter conhecimento do comércio de carne humana em sua mercearia, jogando a culpa de tudo em José Januário.
Depois de duas horas de conversa levaram Catarina presa até a cela da delegacia. Januário assustado ao ver a companheira sendo conduzida algemada até a cela se tornou mais agitado.
Saímos da sala onde nós três estávamos e nos sentamos em um banco no corredor da delegacia. Alguns agentes e policiais vieram nos cumprimentar. Januário que estava algemado no mesmo corredor, sentado em uma cadeira, reconheceu a gata e Joey no corredor, passou a desferir xingamentos e isso me incomodou muito. A gata mais arredia do que a Joey se sentiu intimidada e se levantou indo na direção de Januário. Eu segurei a gata, alguns agentes viram a situação e a acalmaram. Bárbara saiu da sala de interrogatório e foi ver o que estava acontecendo. A gata em um giro com seu braço se soltou e foi em direção ao canibal. Bárbara se atirou na frente da gata interceptando um ataque dela ao suspeito que seria fatal, pois a gata estava usando em uma de suas mãos as luvas com navalhas nas pontas dos dedos. Lancaster retirou a gata que não estava gritando, apenas avançando contra o canibal.
Aquilo me enfureceu, gostaria que ele fosse solto por fiança, para que eu botasse minhas mãos no pescoço dele e quebrasse até virar migalha. Gostaria de ver seus olhos saltando das órbitas e sua língua ficando roxa entre os dentes. Meu desejo era cortá-lo ainda vivo e arrancar seus dentes a marteladas. Meu ódio alimentava meu viajante das trevas, que sabia que aquela minha ânsia não poderia se tornar em ação naquele momento.
A gata se acalmou e voltamos a sala onde estávamos anteriormente. Januário foi conduzido até o interrogatório por Bárbara e Lancaster. Manaus ficou conosco na sala fazendo companhia e acompanhando o que diria nosso canibal.
Apesar dos indícios pouca coisa havia de material para incriminar ambos os canibais. Até que Bárbara mandou chamar Joey. Joey foi treinada quando ainda era agente pelo famigerado inspetor Ramos. Seus meios de persuasão ficaram marcados na época por ela sempre conseguir por meios não ortodoxos confissões e indiciamentos, quando os suspeitos não cooperavam.
Joey entrou na sala sem dizer nada, pediu para ficar sozinha com Januário e não o interrogou, apenas falava com tom de intimidação, voz serena e firme, não deixou Januário falar. Ela descrevia como ele matava e descartava as vítimas perguntava sobre como era o gosto das carnes. Eu e a gata ficamos impressionados com a qualidade de persuasão de Joey. Não imaginava que ela, tão meiga e alegre, se transformava daquele jeito. Bárbara e Lancaster se juntaram a mim e a Manaus. Bárbara me perguntou se eu colocaria a mão no fogo pela inocência da Joey no caso de sua expulsão da polícia após ver ela no seu habitat natural. Disse apenas que confiava na palavra dela.
Joey o encurralou de tal forma que Januário enfim confessou tudo. Disse ele:
- Quero falar com a delegada negra. Você não me deixa a vontade.
Bárbara ouvindo aquilo entrou na sala, agradeceu a Joey que se retirou até onde nós estávamos. Bárbara começou as perguntas e pediu que ele contasse tudo desde o início com todos os detalhes. Januário fez sinal de positivo com a cabeça e começou a falar.
- Tudo começou quando eu era adolescente ainda. Saí da escola depois de ver meu pai espancando minha mãe. Eu já possuía um fascínio por facas. Meu pai estava bêbado e drogado. Ele a espancava violentamente, foi quando peguei uma faca de churrasco na cozinha e fui em direção dele. Eu cortei o seu pescoço e me senti satisfeito de tal forma que eu queria mais. Eu fugi, mas fui pego no mesmo dia. Quando fiz dezoito anos saí da prisão e voltei para minha família. Com meu padrasto então, aprendi o ofício de açougueiro e foi aí que aprendi o ofício de fazer linguiças e cortes especiais de carnes. Eu também frequentava igrejas e foi em uma das missas que encontrei Catarina. Ela era linda e recatada, foi fácil me apaixonar por ela. Namoramos alguns meses e logo nos casamos. Optamos por não termos filhos. O dinheiro estava curto e o trabalho era pouco para quem não tem experiência. Resolvemos que iriamos roubar para viver e que o destino se encarregasse do resto. Foi o que fizemos, nossa primeira vítima foi um dono de padaria, nós o sequestramos e depois o roubamos e para não sermos reconhecidos o levamos para casa e o matamos. Catarina não parava de chorar e eu disse a ela que eu resolveria tudo. Então utilizei de um cutelo e um serrote para desmembrar ele. Guardei-o no freezer vertical que nós tínhamos. Sabia que se descartasse seus restos por aí, iriam nos achar e nos prender. Ficamos meses sem roubar com o corpo no freezer. Foi então que quando chegou a fome e já não querendo mais arriscar roubar e sermos presos, decidimos comer a carne do dono da padaria e nos livrar de seus ossos nos fundos de nossa casa.
Bárbara se encheu de repulsa e quis saber mais, queria saber o nome do dono da padaria e como eles montaram a mercearia. José Januário respondeu:
- Sentimos muito por ele, mas ele nos alimentou de tal maneira que sua carne não foi desperdiçada, quanto aos seus ossos, nós os queimamos e depois os esmagamos com uma pá. Não ficou nada de seu corpo para ser velado. O nome dele era Miguel Conceição. Sobre a mercearia e o açougue, foi ideia de Catarina. No início nós o roubaríamos, pois a carne já havia acabado, mas depois decidimos nos apropriar do negócio que já existia. Neste caso a mercearia do senhor Carlos Lopes Teixeira e seu ajudante. Na primeira vez eu fui pedindo emprego e ele me negou. Na segunda vez eu e Catarina fomos quando eles estavam fechando o negócio. Nós os matamos na saída do açougue com golpes de machado na cabeça por volta de oito horas da noite. Pegamos as chaves e entramos com os corpos no açougue. Resolvemos que faríamos o mesmo processo para nos livrarmos dos corpos. Então com a ideia de que o estabelecimento seria nosso daquele dia em diante, eu os descarnei e seus ossos foram jogados num poço antigo aos fundos do próprio comércio. O sabor da carne humana é tão bom que comemos o rapaz mais novo e depois com o restante da carne de Carlos nós fizemos linguiças com ele. Nós o moemos no moedor de carne do açougue e enchemos as tripas de porcos com sua carne. Vendemos tudo para os clientes, que voltavam querendo mais. Foi por conta dessa demanda que resolvemos pegar mais carne humana para o açougue. Matamos mais quatro. Dois para nós e dois para o comércio no açougue. Queríamos experimentar cozinhar os corpos. A técnica não deu certo então eu e Catarina descartamos eles. A carne cozida, não era boa para as linguiças, embora tenhamos usados pelo menos uma parte de um deles para completar as tripas vazias. Sabe, para evitar o desperdício.
Bárbara respirou fundo e pediu que ele confirmasse quantos outros corpos haveria. Januário disse que eram essas as vítimas. Então foram os dois cozidos encontrados recentemente, Carlos, o seu ajudante e Miguel.
Ao todo foram cinco assassinatos. Bárbara deu voz de prisão aos dois e os encaminhou a cadeia, onde aguardariam o processo em regime fechado. A história ganhou repercussão nacional que, noticiaram o ocorrido como um dos maiores crimes da terra. Os canibais de Novo Hamburgo foram presos, mas antes disso transformaram um bairro inteiro em canibais inconscientes.
Chegamos à conclusão de que há um chacal adormecido em cada ser humano. As vezes ele o domina e não há como parar o processo de atrocidade envolvido no terror causado pela bestialidade do ser humano.
Meu viajante das trevas estava adormecido, mas não satisfeito. Eu também não queria Catarina e Januário presos, eu os queria mortos.
Bárbara e os demais também sentiam o mesmo em seus íntimos e até mesmo Joey que era a pessoa mais calma que eu já conheci, demonstrava uma fúria por dentro. A gata e Joey, estavam satisfeitas e viveram uma experiência única, já eu estava pensando em um outro fim, contudo as coisas vão se acalmando no final e toda a raiva e angústia passarão. O mal não prevalece e eu fico bem comigo mesmo em saber que o fim deles também está perto. Na cadeia irão sofrer torturas por seus atos, no fim a liberdade da alma virá antes da dos seus corpos.
O canibalismo está presente em todo mundo num contexto geral, seja comendo carne humana ou despertando o amor dentro dos corações e depois os devorando, consumindo sem nenhum remorso os sentimentos do próximo. O homem é seu maior inimigo, somos animais que ameaçam nosso próprio ser. Temos o sangue da barbárie em nossas mãos e se não fosse o julgamento coletivo, nossa natureza animal ficaria à solta, revelando quem seríamos nós, sendo numa mesa com carnes de um açougue humano, ou em missas, rodeados de assassinos, com pensamentos atormentados que regridem a características animais tão logo saem a caça pelas ruas. Entramos em conflitos diretos com nossa espécie, como forma de autopreservação e essa nossa qualidade tão macabra só cessa com a morte.
E o antigo arvoredo, de onde se olhava as velhas árvores perdidas num horizonte amargo, onde os bois um dia ruminaram e o luar iluminava a velha estrada de chão empoeirada que guiava as pessoas até o leito de um rio, não existirá mais. Pudera eu corrigir erros do passado e dar mais atenção a quem merecia e que hoje não está mais ao nosso lado. Hoje descansa longe de mim o sol, a chuva, a noite, a lua o céu e seus trovões. Em memória do último dia que tivemos eu dedico os sons dos passarinhos, as sombras do arvoredo adormecido pelo tempo que não voltará, assim como as vidas desse capítulo.