O homem da face sombria - UM DIA O INFERNO CHEGA PARA TODOS

UM DIA O INFERNO CHEGA PARA TODOS.

Não sei bem quando ou como aconteceu, sei apenas que o dia chuvoso no qual a tormenta molhava meu corpo me iludia a me apressar para chegar em casa. A chuva grosseiramente fria, molhava todas as partes de meu corpo, enquanto meu pensamento estava em Tamara e em nosso próximo trabalho juntos. Alguns meses haviam se passado e eu estava indo bem nesse novo ramo. Tamara havia me apresentado a diversas autoridades policiais e meu nome começava a ser requisitado em pequenos casos de investigações envolvendo suspeitos por tráfico, porém nenhum homicídio até o momento. Era esse meu objetivo, saber como a delegada Bárbara agia, por onde começava suas linhas de investigações e se ela era corrompível. Tínhamos o contato dela, mas quase nunca éramos requisitados.

Já havia andado cerca de 5 quilômetros quando o telefone em meu bolso tocou. Era Tamara me ligando:

- Oi!

- Oi Tamara.

- Temos um caso, a que horas você chega em casa?

- Ainda não me acostumei com o fato de ter que caminhar tanto para chegar em sua casa. Acredito que em quinze minutos chegarei.

- Ótimo. Se apresse por favor, a cliente chegará em meia hora e gostaria que você estivesse seco e de banho tomado.

- Falando assim parece que somos casados.

- Não somos casados, mas formamos uma boa dupla, já resolvemos mais de cinquenta casos em pouco tempo, podemos dizer que somos como uma parceria de sucesso.

- Pode me adiantar o caso?

- Não!

- Uau! Que bela parceria.

- Se estivesse chego no horário combinado saberia.

- Já disse estou chegando

- Cinco minutos de atraso já

- Estou na rua de sua casa, pode me dar esta tolerância.

- Posso só se você for rápido.

Havia chegado todo molhado de suor, ela me olhou, sorriu e disse:

- Vai tomar um banho gelado pelo amor de Deus e coloque uma roupa descente para receber a cliente, tem 10 minutos para estar na sala comigo, a cliente já me ligou e está a caminho.

- Está bem, vou me agilizar no processo.

- Ok! Você tem roupas limpas?

- Sim, eu as trouxe na mochila, sabia que iria me mandar trocar de roupa.

. – E tomar um banho.

Tamara sempre foi fria e calculista quando o assunto era receber clientes, com a minha chegada em sua vida a alguns meses, ela se tornou numa perfeccionista, nada a abalava, estava de coração duro e fria. Minha presença a acalmava em certos momentos de estresse, mas eram raros estes momentos.

Estava eu saindo do banho quando ela abriu a porta com rapidez e me pegou em desvantagem.

- Olha, que corpo interessante temos aqui.

- Quer parar, já estou saindo.

- Está bem, se veste logo que ela está a poucos minutos de chegar em nossa casa.

- Se deixar eu me vestir.

- Oh! Claro, desculpa aí, que grosseiro.

Ela saiu sorrindo enquanto me trocava. Botei uma roupa social como Tamara gostava que me apresentasse, como o seu parceiro. Ela sempre estava de social, então me portava da mesma forma, requinte e vestimentas.

Enfim a tal cliente chegou. Bateu na porta e fui eu que tive a iniciativa de encontrá-la.

- Boa noite senhorita?

- Meu nome é Diana Alves.

- Por favor se sente.

- Muito obrigada, senhor, como vocês se chamam?

- Nosso nome não importa e sim a natureza de nosso jogo, não é?

Tamara então se envolveu.

- Meu pedido é que até o fim de nosso caso não nos comuniquemos por nossos nomes, é uma prática nossa. Prometemos sigilo total de nossa conversa, no entanto nossa identidade permanece em sigilo para todos nossos clientes até o fim dos casos.

- E como eu devo? Chamá-los?

- Depois de nossa conversa, nós a chamaremos, até lá, detetives está ótimo.

- Como quiserem.

- Então gostaria de compartilhar sua história com a gente?

- Sim.

- Gostaria de beber algo? Um chá ou um café?

- Um chá se não for incomodo.

- Claro que não.

Diana permaneceu em silêncio enquanto Tamara servia o chá.

- Pronto Diana, aqui está seu chá.

- Obrigada.

- Bem, nos conte desde o início e não esqueça dos detalhes, enquanto eu faço algumas perguntas meu sócio, vai gravar nossa conversa e fazer anotações, tudo bem para você?

- Não, sem problemas.

- Então o que aconteceu exatamente.

- Tudo começou a alguns anos atrás quando na localidade onde eu morava, ouvimos um boato de que duas meninas, uma de 12 e outra de 9 anos foram decapitadas, como se fosse um ritual de magia negra. Todos estavam horrorizados com o fato e procurávamos entender ou até mesmo achar um culpado. A polícia agia em sigilo e até encontrou pistas, mas o delegado responsável entrou em férias e o caso ficou na responsabilidade de outro delegado. Esse muito religioso disse ter conseguido uma informação divina de Deus mostrando os culpados. Alguns meses depois eles tiveram de ser soltos por falta de provas.

- Está ficando interessante, mas onde entramos no caso?

- Bom, ficamos sabendo essa semana no bairro onde eu moro, que existe uma jovem que foi internada na ala psiquiátrica em um hospital da capital. Ela tinha duas crianças na mesma faixa etária e que ela alegava estarem com o pai em outro estado. Desconfiamos de que ela fantasiou isso tudo, matou as crianças e disse estarem com o pai para acobertar seu crime.

- Continue, está ficando interessante.

- O fato novo, que surgiu foi o pai das crianças ter voltado a morar no bairro com outra mulher e adivinha? Estava só e sem as crianças.

- Agora temos um caso. E a polícia não deu importância?

- Tentei entrar em contato com a polícia, mas sem sucesso, pois eles não acreditaram em mim e mesmo se fossem verificar algo, a mulher está doida de pedra.

- Pode ficar sossegada. Daremos um jeito nesse caso.

- Então vocês aceitam?

- Sim, aceitamos

A mulher sorriu quase eufórica, despediu-se de nós e foi embora. Ficamos eu e Tamara na sala nos olhando em silêncio. Era bizarro, estranho, tinha um ar místico e misterioso. Tamara adorava esse tipo de caso, mas nunca um envolvendo duas crianças decapitadas e o fato de ser um homicídio, isso mexeu com meu monstro interior. Acendeu o fogo que havia em mim. Iria até o fim do mundo para pôr minhas mãos no culpado e dar a ele o mesmo fim que as pobres crianças tiveram.

Tamara me olhou temerosa. Ela via a satisfação em meu sorriso. Ela percebeu um ar tenebroso e uma atmosfera sombria tomou conta da sala. A sala continuava em silêncio quando este foi rompido por Tamara dizendo:

- Por onde pretende começar? Você é o especialista dos assassinatos e desaparecimentos. Eu sou boa nas fraudes.

- Começaremos indo falar com a delegada sobre o caso.

O nome completo da delegada é Bárbara Ricci, era uma morena de estatura mediana, de cabelos negros cacheados, sorriso fácil e de personalidade forte, ao mesmo tempo conseguia reunir condições físicas e anatômicas de primeira linha. Formada a algum tempo em direito foi para o ramo penal e acabou se tornando delegada de Novo Hamburgo, cidade onde mora até hoje. Tamara sempre recorria a ela quando algum caso deveria ser reaberto ou quando encontrávamos alguma pista nova de algum caso antigo e eu é claro a imitava. Isso dava um certo prazer a Tamara que se via como uma fonte inspiradora. O escritório de consultoria investigativa em sua casa estava tendo cada vez mais clientes e ela confessava a mim que esse era o efeito da agilidade com que estávamos resolvendo diversos mistérios e casos antigos.

Foi o que ocorreu com o caso das crianças decapitadas. Ligamos para Bárbara e marcamos um horário fora da delegacia. Nunca gostei daquele lugar. Os dias estavam corridos demais para mim e para Tamara ao contrário da delegada Ricci que desfrutava de atmosfera mais tranquila que a nossa, uma vez que o combate ao crime estava menor, devido à baixa criminalidade da cidade naquela época. O encontro aconteceu por volta das nove horas da manhã de uma quinta-feira, véspera de feriado de Natal. O Centro estava lotado e todos queriam que o ano de 2018 acabasse logo. Estávamos à espera da delegada Bárbara em uma cafeteria, dentro de uma galeria. Estávamos atentos aos movimentos fora da galeria na ânsia de que a delegada aparecesse. Eis que ela surge vestindo uma roupa esportiva e um longo cabelo solto. Estava com um blazer fino onde por debaixo repousava sua pistola.

- Olá doutora Bárbara – disse Tamara sorridente em rever sua amiga.

- Olá Tamara, detetive Bem, como você está? – Disse ela me olhando fundo nos meus olhos, com seu olhar acastanhado e moderadamente claro. Era um olhar radiante para aquela manhã.

- Estamos bem Bárbara. – Respondeu Tamara com um largo sorriso branco, que encantava até as piores pessoas.

- Fico feliz – disse Bárbara meio que sem entender o convite para tratar de um assunto profissional fora da delegacia.

Eu era o que nos quadrinhos e filmes de heróis se considerava um vilão bonzinho, ou um anti-herói. Alguém mal, sem coração, que combate a maldade com mais malvadeza. E o mundo estava sofrendo desse mal. Nunca me senti um justiceiro, mas as oportunidades de matar pessoas más surgem com os trabalhos em conjunto com a Tamara. A confiança dela e da delegada Bárbara fizeram de mim um homicida evoluído em técnicas e preparação para meus assassinatos. Haverá vezes em que o suspeito aparecerá morto na calçada e nenhuma pista do assassino será achada. O legal de matar bandidos que cometeram crimes é que ninguém se importa se morrem. As pessoas veem a notícia no jornal e pensam que é apenas mais um assassino morto, mais um estuprador, mais um pedófilo. Ninguém nunca nota a marca da mesma faca, o mesmo punhal de anos no peito ou no pescoço. A delegada as vezes fazia vista grossa e nos chamava sempre que não tinha prova. E nunca terá, pois quando forem minhas mortes, elas desaparecerão. Por ocasiões acreditei que ela suspeitava de mim, e não falava nada, como que aprovando o que foi feito. Um ladrão, assassino e psicopata morto sem provas era só arquivar e pontuar nas estatísticas.

Ficamos explicando a tese de nossa cliente na esperança de uma reabertura do caso.

- Mas Bárbara temos novos indícios. – Disse Tamara já em tom alterado. Tentei acalmar os ânimos e tentar outro argumento.

- Deve ter alguma forma que possamos ajudar nossa cliente e achar um culpado ou as identidades das crianças decapitadas de lomba grande. – Falei gentil olhando no fundo dos olhos da delegada. Foi então que percebi que não era sua intenção reabrir o caso. Ela quer o caso pronto.

- Você não precisa se envolver Bárbara, só nos diga por onde começar e nos libere acesso aos arquivos. Mande-os para Tamara por e-mail. – Argumentei com ela tocando no ponto chave. Tamara me olhou e entendeu o que quis disser.

- Sim Bárbara, pela nossa amizade e por toda nossa ajuda que damos quando não há mais possibilidades de elucidar seus casos mais absurdos. – Disse Tamara.

Então a delegada Ricci suspirou fundo, cruzou as mãos e olhando para nós com voz baixa disse.

- Tudo bem, pela nossa amizade eu vou ajudar vocês, ainda que não esteja convencida dessa história. Entendam que não há provas concretas que podem me fazer pedir uma revisão e reabertura do caso a algum juiz. Eu vou colocar os arquivos em um pendrive e levo para vocês. Minha dica é que procurem uma pessoa. Na verdade, é uma menina de dezenove anos, que anda nas ruas. Ela é esperta, mas mantém um contato comigo desde seus dezessete. Ela é minha informante, quando as investigações tomam um rumo disperso e preciso de um olhar das ruas para conseguir informação é a ela quem eu procuro.

- Qual o nome dela e onde a encontramos? – Perguntou Tamara. Eu contive a ansiedade, mas por dentro meu viajante das trevas se alegrava com a oportunidade de mais um assassino ser punido com a morte.

- Ela não usa telefone, vão ter que procurar ela a noite em Hamburgo Velho. Ela se veste de preto, tem cabelos cacheados e olhos verdes. Tem um corpo atlético e é muito ágil. Ela atende apenas pelo nome de gata, porque vive pelas ruas, entrando em casas de ricos, roubando objetos caros e vendendo para sobreviver, comprando comida e futilidades. Por vezes ela está no bairro Guarani ou no centro, na Praça XX, dando sermões em drogados. Eu até simpatizo com a garota, pena ela ser uma Ladra. – Naquela hora brotou um sorriso no rosto da delegada.

- Então ela pode ter informações dessa mulher louca que pode ser a assassina das crianças decapitadas? – Perguntou Tamara.

- Sim, se alguém sabe de alguma coisa das ruas é ela, mas é complicado não se irritar com a gata, porque ela é debochada demais e ela ter confiança em vocês também pode ser um problema, pois a gata não confia em ninguém. Usem da sua esperteza para cultivar a informação dela. E daí se me trouxerem algo concreto eu ajudo vocês oficialmente e tento reabrir o caso que está parado a anos.

Olhamos para ela e a agradecemos. Fizemos questão de pagar a conta e fomos à cata da gata.

Confesso que me aborreceu a situação de que para seguir nossa investigação, teríamos que investigar, rastrear e achar a gata. E assim mesmo não era garantia de que iríamos conseguir informações sobre o caso, porque corria o risco de ela não saber nada.

Eram por volta das onze da manhã, o café já me fazia ver estrelas pela azia e a fome me calava. Tamara estava tranquila, pois era acostumada a não comer. Ela dizia que comer deixava seus pensamentos lerdos e eu pagava o preço da fome. Tamara viu que eu estava tediado e quase roendo uma árvore. Me convidou para almoçar pelo centro. Aceitei na hora. Aproveitamos e passamos pela praça e vimos um bêbado deitado em um papelão e se cobrindo com trapos. Tamara pediu para a gente parar.

- Olha Bem, um mendigo. – Disse ela.

- Sim e o que está pensando em fazer?

- Vamos perguntar se ele a conhece.

- É uma boa ideia.

Chegamos lá e Tamara foi logo ao assunto.

- Hei você, como se chama?

- Não te interessa bonitona. – Respondeu o mendigo que estava nitidamente bêbado.

- Só quero saber se conhece a gata?

- Não e você não deveria conhecer também.

- É? E por quê?

- Me deixa em paz.

Tamara deu de ombros e disse que aquilo não iria levar a gente a lugar nenhum, então me ofereci em falar com o mendigo. Ela aceitou mesmo achando que o resultado seria o mesmo.

- Então meu caro, você gosta de bebidas, cachaça para ser mais específico, embora tenha uma queda pelo álcool mais caro. Foi isso que levou você a sair de casa, não é? Então, não precisa me dizer onde achamos a gata, apenas de um recado a ela. Diga que a estamos procurando e queremos ajudar ela no que está procurando também. Se fizer isso pela gente não conto a seus filhos que mora por aqui. – Disse olhando nos olhos do mendigo.

- Como sabe da bebida.

- Você tem o rosto e as pernas inchadas como de um alcoólatra dependente a anos do álcool. Você tem um olhar triste de que perdeu tudo. Você usa para se libertar dos pensamentos que te atingem. Você pensa em sua família e quer superar as dificuldades, mas sua vergonha é maior, então por fim sei onde mora porque já vi você antes, está com barba, mas sei que morava no bairro Guarani, em uma bela casa, que tem um filho pequeno e uma esposa jovem. Seu filho deve ter saudades do pai. Eu sei que mora lá porque já passei algumas vezes por ruas próximas a sua casa. Então vai me ajudar?

- Sim. Só não conte sobre mim a eles.

- Claro, agora me diga quem é a gata e onde eu a acho.

- A gata nos ajuda, ela nos dá comida, somos leais a ela. Você disse que podem ajudar ela a encontrar o que procura. Como sabe se ela procura alguma coisa.

- Ora meu caro, ela entra nas casas mais bonitas e caras para roubar e se arrisca por isso. Ela sempre leva algo que ela acaba vendendo, mas quase nada fica para ela. Ela perdeu alguém e não acha. Eu deduzo ser uma amiga de Infância que foi adotada ou que está pelas ruas. Ou até mesmo um parente. Então diga a ela que somos detetives e podemos ajudar ela, em troca de algumas informações.

- Tudo bem eu digo a ela quando ela aparecer. Sabe dizer como está meu filho.

- Não, mas me diga o número exato de sua casa e eu investigo para você, e tão logo saiba como estão, eu venho e te dou a informação. Será uma troca de favores. Você nos ajuda com a gata e nós com informações de sua família. Acredito que sintam sua falta. Procure uma clínica, consiga um dinheiro com a gata, compre roupas e ache um emprego. Qualquer trabalho serve. E volte para casa com uma cara nova. Ela te aceitará de volta.

- Suas palavras são reconfortantes. Obrigado. Darei o recado a gata.

Estranhamente Tamara me olhou e disse nossa, estou impressionada. Sabia que tinha jeito para isso, mas não imaginava um dom para a dedução deste tamanho. Ela disse isso, no entanto senti que ela ficou um tanto inferiorizada com o que viu.

- Vamos achar a gata logo e seguir o caso. – Ela falou para mim.

- Mas primeiro o almoço certo? Você nunca sente fome? – Brinquei com ela que relaxando, enlaçou seu braço no meu e disse apenas, não.

Rimos e fomos ao restaurante. Conversamos e deduzimos que para achar a gata deveríamos ficar andando pela noite nos lugares que a delegada nos indicou. A essa altura naquela noite o recado já seria dado e ela com certeza iria nos achar. No fim do almoço acabamos levando comida ao mendigo. Ele aceitou agradeceu se levantou e se colocou à comer. Num ato de agradecimento ele disse para andarmos naquela noite, pelas ruas históricas do centro de Hamburgo Velho, pois a gata iria nos achar. Perguntei se ele já havia dado o recado, ele deu uma larga gargalhada e disse.

- Ela ouviu você perfeitamente. Ela é esperta. Estava aqui o tempo todo escutando vocês. Disse que se voltassem era para dizer que se interessa em ouvir vocês. E que simpatizou com você. Que é para vocês andarem por Hamburgo Velho nas ruas antigas que esta noite ela achará vocês.

Depois dessa conversa fomos para casa. Estranhamente a gata estava lá. Nos observando e nos ouvindo, mas como? Era óbvio que era uma das pessoas nos bancos ou acima deles, pelas árvores. Ficamos atentos, observando os arredores no caminho até em casa. Passamos o resto do dia em torno desse assunto. Até porque nenhum cliente apareceu em nossa porta nesse dia.

Naquela noite por volta das vinte e duas horas optamos em pegar um táxi que nos deixou no início da rua Maurício Cardoso, onde começamos nossa caminhada noturna pelo bairro de Hamburgo Velho.

Cruzamos o centro histórico por várias vezes. Entramos em ruas escuras, passamos pela igreja, descemos e subimos ruas paralelas. Havia vida no velho bairro de Novo Hamburgo. Ruas com poucas luzes, mas chegando próximo ao hospital Regina era como se estivéssemos no centro. Bares, lancherias, muita coisa aberta naquela região. Optamos por voltar a parte mais afastada do bairro. Voltamos pela avenida Maurício Cardoso até a avenida Daltro Filho onde se encontra a casa da lira e o museu da casa Schimitt-Presser. Andamos por aquelas ruas por mais meia hora e acabamos parando na calçada em frente à casa da lira. Foi quando nós demos conta de que havia uma rua que não havíamos entrado. Por ser sem saída e seu final acabar em um matagal não optamos pelo seu acesso. A rua se chamava Almiro Lau, era uma rua sem asfalto, estreita, sem calçadas ao lado da fundação Scheffel. Nós olhamos e como havia pouca iluminação na pequena rua, ficamos receosos. A causa era nobre e o risco grande, mas precisávamos achar a gata, então decidimos entrar na rua Almiro Lau. Andamos uns 10 metros e a escuridão foi tomada por luzes dentro das casas rodeadas por um enorme matagal, que fazia parte do Parquão de Novo Hamburgo. Olhamos por todos os lados e então quando decidimos voltar, ouvimos um barulho na entrada da rua. Nas sombras da noite na parede da fundação Scheffel. Algo nos atirou uma pequena pedra.

- O que foi isso? – Me perguntou Tamara.

- Me pareceu ser uma pedra. – Respondi.

- Sim, foi o que eu imaginei, será que era ela?

- Se foi ela nos quer fora da rua sem saída.

Resolvemos então voltar para a claridade. Passando pela escuridão da viela da rua Almiro Lau em direção à avenida Daltro Filho, ouvimos uma risada acima de nós. Olhamos rapidamente e por um segundo vimos uma figura nas sombras do telhado. Era esguia e rápida. Tamara perguntou quem está aí? E só ouvimos o silêncio.

Alguns segundos depois ouvimos um grande barulho atrás da gente, na escuridão noturna daquele que podemos chamar de beco do Scheffel. Então vimos um corpo feminino, esguio, bem desenhado em nossa frente. Era ela, a gata estava ali parada diante de nós, com seus braços cruzados, usando roupas negras e navalhas presas aos dedos.

- Olá detetives. – disse ela no meio da escuridão.

- Olá gata. – Respondeu Tamara a olhando e mau enxergando a gata que insistia em se esconder nas sombras da noite.

- Estava observando vocês e me perguntando o que vocês têm de tão interessante que pode me fazer querer ajuda-los? Daí eu mesma respondi. Nada. Então por que querem tanto falar comigo?

- Gata, precisamos de sua ajuda, queremos saber se sabe algo das crianças decapitadas de Lomba Grande?

- Não, e que história macabra. Bom já ouviram a resposta e já podem dar o fora daqui. Peço que não voltem mais a me procurar ou irão voltar para casa sem roupas, ou com as gargantas rasgadas.

- Oh garota, está nos ameaçando? Vou falar para a delegada Bárbara que não está colaborando com a gente. Quero ver ela acabar com sua farra de assaltos.

- São furtos para começar. Furtar é uma arte. Não furto para mim apenas. E só para constar gatinha, a Bárbara além de mais bonita é muito mais educada que você. Aliás por que mesmo estou falando com vocês? Estou indo nessa gatinhos adeus e não apareçam mais.

Ao dizer isso ela se virou para ir embora sem que ao menos víssemos seu rosto.

- Espere gata, não vá embora ainda. – Disse eu com voz calma.

- Ora vejam só, ele fala. – Ela disse dando alguns passos adiante inclinando seu corpo esbelto em minha direção.

- Precisamos da sua ajuda. O caso é importante.

- Sabe por que eu uso roupas pretas a noite e ando nas sombras? Para ninguém me ver, para se acontecer de virem um vulto eu sumir como fumaça e principalmente, para que ninguém me faça perguntas.

- Sua voz é bonita.

- E a sua me parece familiar. Chegue mais perto para que eu possa ver seu rosto.

Me coloquei na defensiva, mas precisei ter a perspicácia de agir sem medo e me coloquei adentrando na sombra onde ela estava.

- Você? – Disse-me ela surpresa.

- Me conhece?

- Se te conheço? Passei três anos a sua procura.

Foi então que a voz doce dela me soou intimamente familiar. Ainda sem a reconhecer por causa da escuridão.

- Porque não aparece na luz, já que disse me procurar a tanto tempo. Sabe quem eu sou, gata?

Olhei para trás e vi que Tamara havia se afastado para mais próximo a luz. Com um ponto de interrogação em seu semblante.

- Sei quem você é, mas você nunca me disse seu nome. – Disse a gata andando em minha direção.

Percebendo sua aproximação dei alguns passos para trás, mais para perto da luz onde se encontrava Tamara. Foi então que a gata deu as caras na luz. Só então pude ver o semblante de seus olhos e como ela se vestia.

Ela tinha aproximadamente um metro e sessenta, não era alta, mas tinha um corpo de ginasta, bem definido. Sua cintura era fina e seu corpo só não era mais belo que seus olhos verdes. Ela estava usando um sapato coturno preto, calças bem justas de couro, uma camiseta térmica de mangas compridas, luvas de couro e uma touca ninja que cobria sua boca e nariz, deixando seus olhos bem a mostra. Seu cabelo loiro cacheado ficava em parte para fora da touca. E sua vestimenta era completamente preta.

Ela se aproximava devagar enquanto eu parava de recuar.

- Não lembra mesmo de mim né?

- Desculpa, mas com máscara é difícil lembrar de alguém.

- Na praça hoje à tarde você estava de costas, mas sua voz era familiar. Estranhei suas roupas sociais, achei que estava enganada, mas não estava, é você. O homem que a três anos atrás, no meio da madrugada, me ajudou na BR 116 quando um idiota tentou me passar para trás. Lembra agora?

- Sim, lembro desse dia.

- Será que posso te abraçar, senti muito sua falta e nunca pude te abraçar? – Tamara sorriu ao meu lado dizendo.

- Legal, vocês se conhecem. Deixa-a te abraçar Bem, está na cara o sentimento dela por você.

- Tudo bem gata, pode vir. – Abri meus braços e ela correu em minha direção, me abraçou com tanta força, que sua saudade beirava a um sentimento de carinho no qual eu não conhecia.

A muito tempo não sentia um carinho tão espontâneo, ainda mais de uma pessoa que vi apenas uma vez na vida. O fato é que, naquela noite nas margens da BR 116 eu salvei a vida dela e ela era grata por isso. Poderia usar isso a nosso favor, porque apesar do reencontro, um assassino estava à solta e precisava ser parado. Eu precisava encontrá-lo.

- Que linda cena, não quero estragar esse amor, mas precisamos mesmo de informação gata. – Disse Tamara com tom irônico na voz.

- Sim – Disse a gata enxugando os olhos lagrimados.

- Você está chorando? – Disse eu apertando suas bochechas e secando seus olhos.

- Não importa. A detetive disse bem. Foi um crime terrível, eu não tenho nenhuma informação, mas se me derem um lugar para dormir hoje à noite e um bom jantar, tenho uma pessoa que conhece aquela área. Ela vai poder ajudar a gente. – Falou a gata com preocupação.

- Bem, você mora sozinho e está solteiro, é uma oportunidade boa de se relacionar com alguém que não seja eu, não acha? – Estava claro que com essa pergunta a Tamara não queria a gata em sua casa.

- Sim eu tenho um sofá cama, nunca achei utilidade para ele até agora – Respondi.

- Então vá com ela até lá, faz uma janta deliciosa, deixa ela tomar um banho e dormir numa cama macia hoje. Fica lá com ela e me mantém informado. Toma conta dela até ela conseguir alguma coisa com o contato dela.

- Você tem certeza disso?

- Não, mas prefiro que ela furte as suas coisas do que as minhas.

- Tudo bem, eu entendi. Gata a minha casa é um pouco longe.

- Ótimo, gosto de caminhar. – Falou a gata com um sorriso largo no rosto.

- Tudo bem podemos andar até lá, mas por favor, troca de roupa. – Disse eu.

Ela me olhou deu uma gargalhada e falou.

- Só se eu roubar algo no caminho, porque só tenho essa roupa.

- Sério isso? Tudo bem, vamos logo que o caminho é longo.

Tamara sorriu, me desejou boa sorte e chamou um táxi. Já eu e a gata começamos o longo caminho de sete quilômetros até o bairro liberdade onde minha casa ficava.

Caminhamos por uma hora e meia e entramos na rua onde moro. Senti um ar de estranheza e ao mesmo tempo me perguntava. E a gata? O que vou fazer com ela. Eu a olhava e ela estava sempre rindo, estava feliz. Era estranho o comportamento dela. Apesar de eu ter ajudado ela. Aquilo fazia 3 anos.

- Benjamin. – Dirigi a palavra a ela.

- O que é isso? – Respondeu curiosa.

- Meu nome. Mas me chamam de Bem.

- Bem melhor que Benjamin.

- Não gosto do meu nome.

- Também não gosto dele. Você tem apelido?

- Não.

- Tudo bem eu arrumo um para você.

- E você como se chama?

- Cara. Você não lembra de nada mesmo daquele dia, não é?

- Lembro que andava para o trabalho de madrugada para me exercitar e estranhei um carro parado no acostamento. Você estava gritando e um homem lhe batia. Cheguei dando um soco violento no rosto dele e acertei um chute em sua nuca enquanto estava caído no chão. Lembro que ele desmaiou e fomos embora. Você pediu para ir comigo, mas o homem veio atrás de nós. Quase nos atropelou, saiu do veículo com uma faca. Lembro que você jogou uma pedra nele, ele recuou, então eu peguei uma pedra maior e acertei a cabeça dele. Ele caiu. Eu peguei a faca da mão dele e desferi golpes na perna dele. Disse para ele escolher entre brigar conosco ou ir para um hospital, uma vez que ele viu que poderia morrer pelo sangramento ele foi embora. Isso eu me lembro.

- Sim foi isso que aconteceu. E depois você lembra?

Eu já estava sem muitas memórias do fato ocorrido a três anos, mas respondi.

- Bem, mais ou menos.

- E do que você lembra? – disse ela.

- Que você me agradeceu, você me contou que estava ali vendendo seu corpo e que tinha dezesseis anos, estava desesperada. Eu te ajudei, chamei um táxi para você voltar para a boate onde morava.

- Sim, mas não fazia programa. Queria ser como as outras meninas da boate, meu pai, porém era o dono e minha função era cobrar as comandas. Naquele dia decidi ser uma mercadoria e não uma vendedora. Me dei mal. Voltei para casa. Meu pai é adotivo. Ele descobriu o que eu fiz e mandou seus seguranças me dar um corretivo. Apanhei até desmaiar. Foi então que aprendi a lutar, aprendi Parkour e já me movia com habilidade por conta da ginástica. Lembra do beijo? – Ela era admiravelmente linda e sua voz macia como a de uma adolescente em chamas.

- Não me recordo. – Falei isso para tentar apagar as chamas dela, enquanto chegávamos em casa. Abri o portão e entramos. Tudo estava no lugar. Abri a porta dos fundos e a convidei para entrar. Ela me olhou, entrou e insistiu no assunto do tal beijo.

- Naquela hora em que esperávamos o táxi eu pedi um beijo. Você perguntou minha idade e por eu ser de menor você apertou gentilmente meu rosto e me beijou no rosto. Perto da minha boca. Eu pude sentir o canto de seus lábios quentes nos meus. Eu congelei. Minhas pernas tremeram. Não sabia mais o que fazer. Não me lembrei de pedir seu número de telefone, seu nome e nem nada disso. O táxi logo chegou e eu disse meu nome.

- Sim. Amanda é o seu nome. Me lembro agora.

- Sim. Exato. E disse que te acharia num outro momento.

- Verdade você falou.

- Demorei três anos, mas achei.

- É, e aqui estamos. Pode ficar à vontade. A casa é sua hoje.

- Não sou mais de menor. Caso esteja se perguntando.

- Está bem. – Sorri, entendendo que o desejo dela era de alguém apaixonada.

- E caso ainda esteja pensando que sou uma garota má. Eu sou uma boa garota. As ruas me fizeram ser assim.

- Quer tomar um banho? Eu ponho suas roupas para lavar. Amanhã estarão secas.

- Não tenho outras roupas. Já disse isso a você.

- Eu tenho roupas aqui que te servirão.

- Então tudo bem. Onde é o chuveiro? – Ela nem terminou a frase e foi se despindo em minha frente.

- É ali – apontei para o banheiro sem tirar o olho do corpo dela.

- Você gosta? É o primeiro homem a me ver assim sabia? Sabe por que apanhei tanto naquele dia? Porque eu era a menina pura e delicada do meu pai e quase perdi essa pureza. Me guardei para a pessoa certa, a pessoa que sou perdidamente apaixonada por anos. É com ele que quero ter minha primeira relação. Hoje sei o quanto isso é importante.

Esse pensamento de pureza da minha família, me fez ser uma rebelde muito nova, mas as ruas me deixaram mais dura e forte. Por isso hoje posso dizer, sou uma menina pura esperando o amor da minha vida sentir algo por mim, porque só o amor dele me interessa.

- Sério? E porque resolveu viver nas ruas.

- Não senti mais vontade de ficar na boate e me vender não era mais correto para mim, não seria uma opção na minha vida, mas quem eu amo estava por aí, então fiz um trato com meu pai. Eu roubava os objetos de valores inestimáveis, para ele lucrar com as vendas no mercado negro europeu e ele me patrocinava com uma mesada na qual, eu poderia bancar os garotos perdidos da caixa d’água. Eu os chamo assim, na verdade são meninos e meninas que eu sustento e cuido. Eles são órfãos de um orfanato que fechou.

Como não tinham para onde ir eu os acolhi numa escola ao lado de uma caixa d’água em Hamburgo Velho. Prometi viver por aí, te procurar e ajudar como eu pudesse os menos favorecidos do que eu, furtando para meu pai e alimentando os garotos perdidos. Assim eu fui crescendo, enquanto te procurava e enriquecia meu pai, acabei me tornando a gata. É assim que me apelidaram nas ruas, entre uma ajuda aqui e outra acolá ganhei o respeito de muitos e diversos seguidores. Continuo no negócio do meu pai, mas com um pouco mais de experiência e uma mesada maior. Continuo não tendo conforto nem sou rica, porém não passo fome.

- Entendo você. E porque deixou que eu visse você assim toda nua.

- Porque passei três anos me guardando para você. E está parecendo que você gostou do que viu. E aí você vem? – Aquele sorriso me confundia. Eu estava sendo puxado para o banheiro, pela gata.

- Você tem certeza de que devemos? – Perguntei a ela.

Já dentro do banheiro ela se virou, olhou para mim, me abraçou dando um beijo sutil em minha boca falando.

- Certeza só temos da morte. Eu quero você a três anos. E agora estamos aqui. Os dois maiores de idade. Você todo bonitão e pelo seu olhar me desejando também. Então, cala a boca gatinho. Me beija, vamos para um banho delicioso juntos, vamos dormir agarrados e amanhã eu ajudo vocês com seu caso.

Não pensei em mais nada a não ser nos carinhos dela. A gata me lembrava muito o meu primeiro amor. Juliana era como ela em muitos gestos e eu desejava a Amanda naquele momento, assim como um dia desejei a Juliana. A gata dormiu em meus braços e sentia a todo instante a doçura de seus beijos. Ela me fez sentir bem novamente. E ela estava mais sorridente ainda, porque conseguiu o que queria a anos. Se libertou de sua sexualidade intocável. Aparentemente sua espera e procura, foram correspondidos. Nunca vi alguém tão feliz depois de uma noite de prazer.

A gata dormiu a noite toda, se esfregando e se encaixando em mim. Aquilo era bom. Não queria perder nenhum momento com ela. Por volta das quatro da manhã eu adormeci.

Dormimos e quando acordei por volta das nove horas da manhã, ela não estava lá. Deixou um bilhete na mesa que dizia, volto logo, não me liga, mas salva meu número. No final do bilhete, havia um número de telefone e um beijo marcado com batom.

Tamara me ligou por volta das dez horas me perguntando sobre a informação. Respondi apenas que ela saiu para falar com seu contato. Tamara disse que eu aguardasse por ela. Então tratei de ajeitar as coisas. Vi que a roupa dela havia sumido, e a cópia das chaves também. Sabia que iria voltar.

O dia se passou e o sol agonizava ao oeste naquele momento, dando lugar a noite escura. Ouvi passos no gramado. Olhei e não vi nada. Me aproximei da porta e escutei as chaves na fechadura. Era a gata voltando.

- Onde você estava? Estava preocupado. Quase liguei para você. – Disse a ela.

- Calma Bem, fui ver meu contato. Ela é uma amiga antiga da boate. Agora gerencia a parte dos negócios da família em São Leopoldo. Não iria poder atender seus telefonemas. Deixei um bilhete. – Respondeu a gata despreocupada dando de ombros.

- Mesmo assim fiquei preocupado.

- Tudo bem, vai se acostumar. – Ela me beijou e sorriu.

- Descobriu algo?

- Sim, mas precisa ter a mente aberta porque minha amiga disse coisas pesadas sobre o caso.

- Pode falar.

Ela começou a tirar o uniforme colocando uma calça jeans azul e uma blusa colada ao corpo.

- De onde veio a roupa? Perguntei.

- A Estefani que é a minha amiga informante, tinha bastante roupa lá e me deixou escolher umas peças. Expliquei da gente. Não me julga, pedir é melhor do que furtar não acha? – Ela chegou perto de mim me beijou de novo agora de forma mais lenta e demorada.

- Gosto de seus beijos. – Disse a ela

- É e eu te amo. – Ela disse sorrindo, como se aquelas palavras não tivessem significados.

- Tem certeza disso?

- Assim como tenho da morte e do sol que vai nascer e se por amanhã, assim como tenho certeza das estrelas no céu e da chama que me queima por dentro, toda a vez que eu beijo sua boca.

- Então está, te confesso que seu jeito mexe comigo de uma forma que não sei explicar. Não sei se é amor como você diz sentir, mas é algo intenso.

- Me diz uma coisa só. Você e a Tamara é só profissional?

- Sim.

- Ótimo. – Ela sorriu, mas logo mudou o semblante.

Ela pediu que eu sentasse e pegasse um papel.

- Anota o endereço do pai das crianças da mulher louca, que vocês acham que matou as filhas.

Eu anotei o endereço, era no bairro Ideal próximo a um mercado.

- Ela me disse que esse homem sumiu e não se sabe o que fez com as crianças. Falei da mãe das crianças que enlouqueceu e a Estefani disse que a mãe delas havia ficado assim depois que o pai delas fugiu de casa.

- Entendi. Bom o endereço é perto, amanhã vamos até lá. Você vem com a gente?

- Não sou do tipo de garota detetive.

- Por favor?

- Bom tem um jeito de eu ir, me enche de amor hoje à noite e eu vou.

- Isso eu posso arranjar. – Sorri para ela e fomos para a cama. Já era tarde quase duas da manhã quando vi o relógio pela última vez naquela noite. Sentia um cheiro ótimo dos cabelos dela. O cheiro ficou em meu travesseiro. Ela sorria dormindo. Era linda, mas tinha que pensar no caso.

Eu sentia no meu íntimo que o pai das crianças era culpado. Precisava de provas. Pensei em armar uma tocaia a noite, mas com a gata em minha casa, era impossível. Teria que fazer do jeito da Tamara. Envolver a polícia, pegar o dinheiro e deixar meu monstro interior insaciável mais uma vez.

Troquei mensagens com a Tamara sobre o que a gata descobriu. Desliguei o telefone. Abracei a gata que se encaixou em mim. Segurou minha mão e disse dorme bem. Respondi com um beijo. Fechei meus olhos e apaguei na cama. Estava exausto.

No outro dia quando acordei, vi que a gata não estava lá. Levantei da cama e percebi que a cópia das chaves também não. Só pensava em que diria para Tamara. Eu fui trapaceado, mas pensando friamente, ela deveria voltar, porque levou apenas as cópias das chaves. Tudo estava no seu lugar.

Olhei para o relógio da cozinha e marcava nove da manhã. Ouvi um barulho no portão. Era a gata entrando. Abri a porta e a questionei.

- Onde você foi?

- Você dormia tão bem que não quis te acordar. Saí cedo para achar pistas.

- E o que achou?

- Nada demais.

- Onde você esteve?

- Pelas ruas do bairro. Fui até o endereço ver como era a casa. Posso entrar lá a noite e descobrir algo.

- Prefiro que não.

- É? E o que pretende fazer?

- Falar com a Tamara e ver se conseguimos o nome dele.

- Temos o endereço, é só ir lá e fazer uma busca na casa.

- Não é tão simples gata.

- Para mim é.

- Invasão é crime.

- Matar também é, assim como roubar e mesmo assim as pessoas o fazem todos os dias. Não é mesmo?

-E furtar como você faz também não é um crime?

- Furtar é uma arte.

- Tudo bem, vamos ligar para a Tamara e encontrá-lo no caminho.

- Posso pedir ajuda para Bárbara. O que você acha?

- Melhor não.

- Não gosta mesmo dela né?

- Não.

Minha resposta rude, pôs sua jovem cabeça para pensar sobre os motivos para não gostar da delegada. O motivo era óbvio para mim. Ela era policial e eu um assassino em série de anos que nunca foi descoberto. Um sociopata altamente ativo. E gostaria de permanecer assim.

Naquela manhã tínhamos o endereço de um provável suspeito, mas sem provas não tínhamos nada. Tamara nos encontrou próximo a uma estação do trem. Fomos até o endereço do suspeito e constatamos que nele, não havia ninguém naquela manhã. A gata queria entrar, não deixamos. Ligamos para a Bárbara, para que talvez ela pudesse descobrir o nome dele puxando o endereço. Isso levaria horas. Então ligamos para o hospital psiquiátrico, onde a suposta mãe das crianças estava a anos internada. Lá nos registros constava o nome do seu ex-marido. Diego Alves dos Santos.

Fomos para a casa de Tamara e entramos em sua rede social. Achamos diversos nomes, mas um aparecia em destaque para nós. De acordo com a foto da Mãe louca, era ela em fotos antigas do perfil. Havia duas meninas que batiam com a estrutura dos corpos achados sem cabeça. A três anos nenhuma foto das filhas foram postadas. Mesmo tempo em que ele se mudou e no qual os corpos foram achados. As peças da denúncia da vizinha que nos contratou estava se juntando, mas havia um, porém na história toda. O que me revoltou e reuniu em mim uma enorme fúria no meu viajante das trevas. Depois das postagens de três anos atrás das suas filhas, houve outras fotos com crianças e mulheres por curtos períodos, em diversas cidades dos três estados Sul. Nos últimos meses não havia fotos de crianças e nem relacionamentos. Estávamos diante do perfil de um assassino serial, que mata crianças e esconde suas cabeças como troféus. Essas cabeças poderiam estar na casa dele. Precisaríamos da gata naquela noite, para entrar e descobrir algo na casa. Tamara concordou, mas com a condição de que se achássemos algo a delegada Bárbara deveria ser informada.

Dados os termos da invasão noturna da gata, esperamos o alvorecer. A lua nova deixava a noite mais sombria. Tamara, eu e a gata estávamos em minha casa. Aguardávamos uma da manhã para a gata sair. Deixamo-la com o telefone ligado nos fones de ouvido para que pudéssemos escutar o que estava acontecendo.

Era por volta da uma e meia da madrugada. A gata pulou o muro da casa de Diego, com seus movimentos de Parkour. Para entrar na casa, ela usou uma chave mixa na porta. Abriu devagar, com tanta sutileza, que mal pudemos ouvir o som pelo telefone. Ela era rápida e ágil. Entrou em silêncio, viu os cômodos da casa. Entrou no quarto e viu o suspeito dormindo. Olhou os tapetes e suspeitou do alçapão do forro da casa levemente aberto, mas quando ia subir para olhar, acabou escutando Diego se levantando. Ela se escondeu nas sombras da sala. Ele ligou a luz. Pedimos para que ela saísse dali. Ela se escondeu atrás do sofá. Quando ele desligou a luz e retornou para cama, a gata foi embora chaveando a porta e correndo até o muro onde saltou para a rua, retornando para minha casa.

Ela não disse nada. Saiu saltando na rua por entre muros e telhados. Chegou rápido em casa.

- Gata, como foi lá? O que você viu? – Disse Tamara.

- Não pude ver muita coisa porque ele acordou. Tenho que voltar lá e ver o alçapão do forro. Ele estava meio aberto, como se ele usasse frequentemente. – respondeu a gata.

- Você já fez bastante. Acho que isso basta. Vou ligar para a Bárbara. Vamos resolver logo esse caso.

No meio da madrugada Tamara acordou a delegada Bárbara. Relatou todas as evidências, as fotos, redes sociais. Sobre o alçapão, a delegada não concordou com o método, mas os fins justificam os meios. Ela concordou acobertar a gata caso se confirmasse nossas suspeitas. Estávamos certos de que ele guardava as cabeças como troféus de diversos assassinatos em série, envolvendo crianças de nove a doze anos de idade.

No outro dia a delegada nos ligou. Pediu que a encontrasse de manhã por volta das onze horas. Estavam com mandato em mãos e uma diligência com dois policiais e o inspetor Lancaster da polícia civil.

- Vocês virão conosco na busca e apreensão de objetos suspeitos. A gata sabe onde fica o alçapão, e vocês estão à frente de tudo. Só estão proibidos de falar com o suspeito, mas podem vasculhar a casa. – Disse a delegada Bárbara com semblante sério no rosto e a mão em sua arma presa ao coldre.

- Sim, entendemos – Respondeu Tamara.

A meia hora da tarde estávamos em frente à casa. As janelas estavam abertas. Os dois policiais abriram o portão, que era preso por um cadeado e entraram juntamente com Lancaster seguido da delegada Bárbara. Nós três seguimos mais atrás. A gata nervosa era a última, pois odiava a polícia e eu a entendia. Bateram na porta chamando pelo nome do suspeito, que não respondeu.

Bárbara deu a ordem de arrombar e foram entrando. O homem estava descalço e com uma bermuda. Também estava sem camiseta e com cabelo desarrumado.

- O que é isso? – Disse o homem em tom de ameaça.

- Estamos com um mandato de busca e apreensão contra o senhor nesta casa. Por favor peço que fique sentado. – Disse Lancaster em tom autoritário baixando a arma que estava em punho.

- Muito bem pessoal, vasculhem tudo. Garagem, guarda-roupas, cozinha, tudo. – Disse Bárbara nos olhando com olhar sério.

- Gata onde está o alçapão? – Perguntei.

- Entre a cozinha e a sala. – Ela me respondeu.

Após alguns minutos, objetos começaram a surgir. Uma imagem de Pazuzu estava na sala, em um balcão como se fosse um altar.

- O que é isso. Que imagem é essa? – Perguntou Lancaster ao suspeito.

- É minha entidade. A ele sou devoto. A ele faço tudo. – Respondeu.

- Entendo, você é um satanista, não é? Onde está o resto?

- Não há restos.

Bárbara se aproxima dele e pergunta.

- Faz sacrifício senhor Diego?

- Não. – Respondeu o homem com ódio no olhar.

A essa altura tínhamos esquecido o alçapão e focamos nos objetos. Nada demais foi encontrado. Pediram ao homem que se sentasse numa cadeira da cozinha, para que ele acompanhasse as buscas. Ele o fez, foi quando Bárbara pediu para nos chamar.

- Bem detetives. Existe evidências de ritual satânico aqui, mas nada de cabeças de crianças ou indícios de uma prática corriqueira de assassinatos. Temos pouca coisa para prendê-lo. – Disse a delegada.

A gata a olhou e disse.

- Olharam o alçapão? Está ali no corredor para a sala.

- Sim, verdade. Lancaster, vamos abrir o alçapão e ver o forro. – Retrucou a delegada.

Ao ouvir isso o suspeito enlouqueceu e passou a gritar.

- Vocês não podem bagunçar minha casa. Já olharam em tudo. O que querem mais? Vão quebrar minha casa. Estão desrespeitando minha religião. Parem. – Disse o suspeito Diego em tom alterado.

Bárbara se aproximou do homem.

- Está com medo de que? – Disse ela.

O Homem ficou de olhos arregalados enquanto abriam o alçapão para verificar o forro da casa.

- Meu Deus Bárbara. Deve ter uns oito crânios humanos pequenos aqui. – Falou Lancaster.

Bárbara nos olhou e nos lançou um sorriso. Fixando seu olhar para o homem, pediu que levantasse dando voz de prisão. O homem se recusava virar de costas para ser algemado. Ele empurrou a delegada para trás, puxando a arma do coldre da cintura dela. Apontando para todos na cozinha começou a falar alto.

- Vocês não entendem. Pazuzu é minha glória, seu espírito vive em mim, eu sou o espírito de Pazuzu. Não podem me prender pela minha crença. O sacrifício é parte da minha glorificação eterna. – Disse o suspeito e agora um criminoso confesso.

Tudo deveria acabar ali. Estávamos todos na cozinha. Eu mais atrás estava próximo a mesa, onde repousava uma faca de carne. Cheguei perto o suficiente para pegá-la sem ser notado por Diego, que continuava alterado. Os policiais estavam com as armas em punho, eu precisava de uma distração, mas não encontrava brechas para me aproximar. A facada deveria ser certeira. Num ponto onde ele morresse na hora.

- Tudo bem – Disse Bárbara, um tanta surpresa com a reação do homem, que insistia que aquilo ali era normal.

- Não podem me prender. Eu mato a todos antes. Não me tirarão daqui com vida.

A gata viu a faca em minha mão. Numa troca de olhares ela percebeu a intenção. Olhou para o suspeito e começou a distraí-lo.

- Ei? É Diego seu nome, não é? Por que está apontando a arma para ela se fui eu que entrei na sua casa, eu que vi seus perfis nas redes sociais, eu que descobri o alçapão enquanto dormia? Você foi pego pela gata meu amor. Porque a gata não tolera assassinos de crianças. Você matou suas filhas na frente de sua esposa, fazendo ela enlouquecer. Depois disso sumiu e a cada relacionamento que tinha com mães de crianças pequenas, essas crianças sumiam. Você as matava em rituais. Seu louco, assassino. Aponta para mim a arma. Atira em mim seu covarde. – Falou a gata, encostada na parede da cozinha próximo ao marco do corredor.

O homem decidiu mudar o foco para a gata, apontando o revólver na sua direção.

- Sua vadia, então foi você que eu escutei na noite passada. Você vai morrer.

Os policiais gritaram para não atirar, mas o homem não os ouviu. Dei um passo largo em direção do suspeito com a faca em minha mão direita. Era meu momento, meu viajante das trevas iria vingar as crianças, matar na frente da polícia, sem culpa, em legítima defesa de terceiro. Nada aconteceria a um detetive que salvou a vida de policiais e colegas. A arma disparou sem direção. O corpo estava caindo morto no momento do disparo. A gata nem se mexeu. A faca entrou lisa na fonte direita, desligando o cérebro de Diego na hora. Ele não sentiu nada. Já eu tive uma satisfação imensa. Tamara e Bárbara me olharam horrorizadas, mas entenderam a situação. A gata agia normal até com um sorriso malicioso.

Os policiais pularam em cima de mim. Me tirando de perto do suspeito, enquanto Bárbara reavia sua arma. Lancaster verificou o corpo já sabendo do óbito.

- Tudo bem pessoal, acabou, chamem a perícia e vamos finalizar por aqui – Disse a delegada Bárbara.

Diante da calçada uma pequena aglomeração se formava. Quando relatado a notícia, logo os jornais apareceram para cobrir o caso. Tudo ocorreu bem.

Bárbara deu um depoimento para o jornal da cidade relatando o ocorrido.

“Após uma denúncia que chegou a detetives particulares, esses acabaram vindo até nós com indícios de um serial killer que estava agindo a anos nos três estados do Sul do país. Acabamos por entrar com mandato para busca e apreensão em sua casa. Achamos oito crânios humanos de crianças segundo a perícia. Dois destes seriam de suas filhas e que pertenceriam as crianças decapitadas de Lomba Grande a três anos atrás. Exames de DNA irão dizer de quem pertence os crânios e esperamos ter solucionado o crime de três anos.

O suspeito, após reagir a prisão, foi morto em luta corporal com um dos detetives consultores do caso, que ajudaram nas investigações. Para todos que acham que crimes ficam em pune, eu digo a vocês. Um dia o inferno chega a todos. Obrigado.”

Depois de muitas horas, voltamos para nossas casas. Eu mais realizado do que nunca.

A noite na cama, repousando com a gata, pude enfim depois de um longo tempo, sentir o silêncio que ficou na minha mente. Meu monstro interior, não falava mais comigo. As vozes pararam. E naquela noite de mudança de lua nova para crescente, enfim eu pude dormir em paz.

O silencioso adeus daquele dia, me trouxe na morte de Diego, a paz que eu queria para seguir as investigações, agora com a gata ao meu lado, com Tamara focada no bônus pago pela polícia e pelo montante dos vizinhos da pobre mulher louca, que perdeu suas filhas e sua alma para o resto de sua vida.

Para Bárbara, restou voltar para casa, finalizar a ocorrência, dar baixa no caso e arquivar o assunto, junto com um copo de whisky com gelo.

Lancaster parecia confiável, não era muito esperto, era mais coração do que inteligência. Aquele ciclo de pessoas eu poderia manter perto de mim. Até um próximo caso surgir.

Eu não sinto dor, remorso, não sinto afinidade pelos mortos e nem tristeza por aqueles impuros que eu matei. Em minhas mãos estão jazidas dezesseis pessoas más, que não mereceram a vida que tinham. Despedem-se de suas almas e afundam no mar dos desesperados do vale sombrio e sujo da morte. O verme operário que rói as frias carnes podres, nada no sangue putrefato. Essa ruína que nos cabe no fim inevitável, me faz acreditar que no repouso da morte, não sentimos medos e receios, assim como não há lágrimas nesse desfecho vital, porque não existem olhos em mortos. A beleza das flores agrada quem vive e enfeita quem morre. Há beleza na morte. Eu não gosto de vê-los agonizando. Prefiro que morram de um só golpe. Agora a gata entra em minha vida, me transbordando de amor. Eu temo o amor, amar é ter medo da vida. Quem ama já está quase morto. Me sinto estranho com esse sentimento pela gata. O que ela sente por mim é real, mas é o que eu sinto. Não conheço esse sentimento. Finjo ter simpatia e assim vou seguindo ao seu lado, me suprindo de sua proteção e de seu amor.

Estou vivendo com ela o delicado da vida. Uma porcelana a ponto de quebrar e rasgar esse fio linear e sufocante desse plano vital, tecido pela mais antiga tecelã. Afino meu viajante das trevas com meu desejo de poupar a gata e me aproximo de seu coração fogoso e carinhoso. Me resta a incerteza do que virá a seguir.

Como diz um poema de Pablo Neruda, dois amantes felizes não têm fim e nem morte, são eternos como a natureza e é nesse sentimento que me atiro levando comigo meu monstro interior, a aceitar em nossos corações, a paixão que começa a nos devorar de dentro para fora.

Ubiratã Hanauer
Enviado por Ubiratã Hanauer em 14/03/2022
Reeditado em 12/04/2024
Código do texto: T7472454
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