O homem da face sombria - O BEIJO DA MORTE

O BEIJO DA MORTE.

O silêncio rompeu a noite, embora as trovoadas insistissem em cair. Olhei pela janela do quarto que estava salpicada de gotas de chuvas e vi um jovem casal se beijando no escuro de um centro de tradições gaúchas, embaixo de uma árvore, em meio ao temporal que caía sem parar. Os ventos levantavam o cabelo da jovem e o rapaz nem se importava, ele a acariciava com malícia, ele a queria de qualquer jeito naquela escuridão.

A mão do jovem repousava devagar nas coxas da menina, que a todo o momento tentava se esquivar de suas carícias. O rapaz por sua vez estava a cada momento mais impaciente, até que faltou luz por causa da grande tormenta. Quando a luz voltou os dois não estavam mais lá, pensei que tinham ido embora, no outro dia acharam o corpo da jovem jogado num canto do local entre toras de árvores, todo machucado e com o pescoço quebrado.

Aquele lugar onde eu morava havia se tornado corriqueiro matar e a toda hora o cheiro da morte pairava no ar. Era a segunda morte na mesma semana, porém a morte da jovem que havia sido estrangulada, chocou as pessoas do bairro. Seu namorado foi preso, julgado e meses depois, com ajuda de seu pai, que podia pagar um bom advogado, foi posto em liberdade, ou como chamam agora, prisão domiciliar.

E é essa impunidade que me mantém solto nas ruas, cometendo minha justiça e ocupando o meu eu tão obscuro.

Sinto que meu corpo cansa e que as coisas não melhoram, apenas pioram conforme o tempo passa, sinto medo de perder o controle. Há muito tempo eu não tenho mais noção da brutalidade, do que é não sentir ódio, rancor, não sei dizer também se sinto pena ou remorso. Eu estava virando um corpo seco sem sentimentos e eu não estava satisfeito. Meu sangue corria solto nas veias em dezesseis de agosto de um ano qualquer, um dia após o assassino da jovem menina ter sido solto. Como boa prática, me despedia de Carol e ia caminhando para o trabalho.

Existem coisas em nossa vida que não podemos mudar, o jeito como andamos, olhamos, a maneira de se portar e parar a expressão corporal é única em cada ser. Naquele dia como se fosse combinado, ninguém abriu suas janelas cedo da manhã e não se ouvia sons de carro pelas ruas do bairro.

Pude ver raiando o dia, entre os blocos de concreto e aço das edificações que contemplavam a cidade. À medida que fui me aproximando do centro, sentia o calor do sol daquela manhã me fritando. Meu corpo e meu rosto transpiraram e quando cheguei ao centro de baixo das linhas da última estação do metrô, eu vi o rapaz que matou a menina sentado num banco, despreocupado e alheio ao fato de que era um assassino.

Ele tomava cachaça e parecia estar drogado, transtornado com alguma coisa, sussurrava em tom baixo, algumas palavras, aquela cena alimentou meu outro eu e mil maneiras de ata-lo surgiram em minha mente perturbada. Quero matá-lo, mas não era a hora nem lugar para isso. Passei bem próximo a ele, dando uma volta maior para chegar aonde trabalho. Na passada por ele, eu o olhei dentro dos olhos, ele estava alucinando e não falava coisa com coisa. Ele me encarou, me chamou de porco sujo, disse que me mataria se eu não parasse de olhar para ele, depois que passei por ele, dei uma olhada para trás e ele começou a gritar que seus olhos haviam se perdido, o que fizeram com seus olhos, ele pedia a sua mamãe para devolver os seus olhos. Estava claro que a loucura e a culpa tomaram conta dele, sentia a loucura nele, vi o demônio que o assombrava, pude ver sua culpa e todo o seu medo. Vi que me restava castigá-lo e para isso ele deveria morrer lentamente, pois sua vida se tornou um mar de pecados, ele era um assassino cruel, drogado, estuprador que ameaçava a todos que passavam por ele.

Segui meu caminho querendo voltar, saí mais cedo e cruzei pelo mesmo caminho, mas ele não estava mais lá. Passei por lugares mais afastados, nos quais aquele tipo de bicho vivia, mas sem sucesso, então fui para casa, quando me aproximei de casa ele estava lá, parecia me esperar, passei olhando-o novamente dentro dos seus olhos e ele sorriu, fez um gesto com a cabeça como se tivesse me conhecido, virei à esquina e entrei em casa. Daquele dia em diante passei a segui-lo nas ruas próximas queria saber onde ele se escondia ou morava precisava ata-lo e me purificar com os pecados dele.

Próximo ao vigésimo dia do mês de agosto, cruzei com ele novamente, vi que ele caminhava em direção a uma casa em ruína, muito provável que havia sido abandonada há tempos, não tinha telhados e as janelas estavam pregadas por fora com madeiras. Vi que ele entrou por um buraco na cerca e que abriu a porta com facilidade, parecia que estava ali há algum tempo, pois sabia bem por onde entrar. Decidi observar aquela casa, todas as manhãs naquela hora eu cruzava pelo local, me certificando com qual frequência ele utilizava a casa e se estava sozinho.

Me certifiquei de que ele não me visse, para isso disfarçava num ponto de ônibus mais na esquina da casa abandonada.

Eu o vi arrastando pelos cabelos uma senhora que ele roubou a bolsa para lá e a espancar, vi também uma jovem que passava por ali ser encurralada e ele tentar abusar dela, graças a um rapaz que passou bem na hora ele desistiu, naquele dia dois homens passaram olhando para ele e falaram alguma coisa entre si, entraram na casa e o espancaram.

Decidi agir, naquela noite eu iria ata-lo, mas antes precisava folgar e dizer a Carol de que deveria trabalhar de madrugada, sempre usava esta desculpa para cometer minhas justiças pelas noites. Cheguei em casa neste dia e disse a Carol que, naquela noite eu iria trabalhar devido à falta de um funcionário, ela não gostou, mas entendeu, falei que se ele fosse ao trabalho eu retornaria. Indicando que voltaria mais cedo para casa. Minha intenção era apenas matar aquele desgraçado e voltar calmamente para casa.

Era chegada a hora de sair. Saí por volta das dez e cinco da noite, peguei minha mochila, guardei a faca escondida embaixo da gaveta do armário e a coloquei dentro dela. Eu a fechei, coloquei nas costas, me despedi de Carol e saí. Desci a rua que cruzava na avenida primeiro de março, quase ao lado da casa abandonada onde aquele verme dormia.

Por àquelas horas ele já deveria estar bêbado e drogado. Olhei para dentro do terreno baldio da construção em ruínas e entrei. Deparei-me com o sujeito deitado ao lado de uma seringa usada. Havia cachimbos de craque por todo o lado e estava explicado o motivo de tanto transtorno, ele deve ter fritado seu cérebro de tanta droga, o que mais me admirava é que tinha dinheiro em seu bolso suficiente para comprar o dobro de drogas que ele usou. Ele deveria usar este lugar depois do trabalho, para se drogar e depois do efeito passar, ele deve ir embora para perambular pelo bairro atrás de alguma vítima.

Provavelmente sua família nem saiba o que ele anda fazendo, mas vai acabar sabendo do pior jeito, o meu jeito. Aproveitei que estava dormindo e tirei a faca da mochila, dei um chute nele e ele nem se moveu, fiquei desinteressado, matar alguém que não reagia não era minha preferência, mas o fato de matar era preferência do meu outro eu que dizia, para exterminar aquele maldito e isso moveu minha mão até o pescoço dele, decidi terminar rápido, e então o cortei vagarosamente. No meio da penumbra fiquei olhando por diversos minutos ele sangrando, enquanto abria a mochila e guardava minha faca. Desacordado com um pequeno corte em sua artéria da jugular ele deu um último e fundo suspiro. Fiquei menos de cinco minutos, havia escutado um barulho, fui sair às pressas, mas minha fuga foi interceptada por um indivíduo baixo, mais do que eu, ele me olhou no fundo dos olhos e sorriu. O sujeito meio nervoso e sem entender nada, gritou comigo enquanto se movia de um lado para o outro. Ele veio em minha direção tentando me golpear com seus punhos, corri para perto do corpo morto e parei de repente. O indivíduo também parou, na hesitação do que eu faria. Quando parei, já havia tirado novamente minha faca da mochila, porém o sujeito intrometido, estava perto demais e com o dedo em riste, ruim para ele, no escuro ele não viu a faca e nem o golpe embaixo de seu braço esquerdo perto da axila, penetrando na hora o seu coração fazendo-o cair, cortei sua garganta também para que não restasse dúvidas de sua morte.

Fui mais cuidadoso na hora de sair, não queria mais nenhum importuno. Vi a rua e saí quando não havia ninguém passando de carro. Cheguei à calçada e fui em direção de casa.

Chegando em minha residência fui abraçar Carol que dormia. Disse a ela que não precisaria trabalhar. Fiquei curioso e queria ver se já haviam descoberto os corpos. Não toquei nos corpos e não havia sinal nenhum de pistas, estava escuro demais para verem alguma coisa. Na manhã seguinte quando fui pegar o ônibus para o trabalho quis ver a cena do crime.

O ônibus passou e estava uma movimentação de polícia e diversas viaturas dos bombeiros, Samu, polícia civil e perícia.

Passamos e tão logo desci do ônibus, fui direto para o trabalho.

Cheguei na mesma hora de sempre e procurei um jornal, como o crime foi descoberto ainda há tempo de ser publicado, já havia uma equipe de reportagem do jornal na cena do crime quando descobriram os corpos. A notícia da parte policial do jornal retratando o crime era curta, dizia que havia ocorrido um duplo homicídio, ainda sem explicação no bairro Liberdade, próximo ao CTG estância da liberdade, onde dois homens foram mortos a facadas. O crime possivelmente teria sido acerto de contas entre quadrilhas rivais. A polícia não tinha pista nenhuma do que ocorreu.

Fiz meu trabalho normalmente e quando estava indo para casa encontrar Carol no caminho, fomos até um armazém do bairro e depois fomos embora, ela me tratou mal naquela noite, discutimos por horas e dormimos tarde.

No outro dia saí sem me despedir. À medida que terminava meu dia no trabalho, minha tensão aumentava, queria a atenção de Carol, quando cheguei ela veio me dar um beijo e eu virei o rosto e dei nela um beijo em sua face. Depois disso se afastou e eu virei de costas e saí a passos largos para o quarto, a deixando sozinha na sala. Julgo antes de tudo e morro quando Deus quiser. Sou forte, digno, estúpido, estudioso e às vezes até carinhoso, mas não sou mau. Tenho crises e estas crises estão aumentando. Já faz muito tempo que me controlo, não sei mais como me acalmar. A situação está ficando fora de controle. Estou a ponto de punir a todos com armas mais letais que poupem meu tempo.

No auge da loucura pensei em tirar minha própria vida, talvez fosse isso que a voz queria dizer. Talvez esta seja a última vida, a mais importante de todas. A mais valiosa para mim. Será que eu o faria, peguei meu punhal na cozinha. Carol estava na sala dormindo no sofá. Restou assim na sala, eu, uma faca, a Bíblia, Deus e um linear pensamento do inferno.

O que havia feito da vida até aquele momento, quantas oportunidades perdidas. Fiz uma faculdade em ciências contábeis, que nunca trabalhei no ramo. Gastei muito dinheiro em bobagens e com pessoas que não souberam aproveitar o benefício da minha generosidade.

Muitos pensamentos, vários devaneios e uma única certeza, sou um fracassado na vida. Meu sucesso está na morte, é nela que encontro minha alegria, a força para vencer as tarefas e desafios do dia a dia. Olhei uma última vez Carol, ela ainda me encantava, seu corpo ainda mexia comigo, mas ela passou a me olhar com ar debochado e arrogantemente raivoso, ao passo que eu apenas queria me livrar dos problemas que me cercam. Eu já não sabia se queria a sua morte e ela parecia se mostrar firme, dura, friamente calma, sem saber o monstro que eu sou.

Senti-me apertando a garganta dela, sussurrando em seu ouvido com um tom de raiva, que eu mesmo não sei explicar como os sons das palavras sairiam de minha boca. Me vi passando meu punhal no rosto dela, fazendo um corte profundo em sua bochecha esquerda até seus lábios.

Podia ver ela arregalando seus olhos sem conseguir engolir a saliva. Ela não gemeria como os outros. Ela tremeria de dor enquanto a faca entraria lentamente, até atingir seu coração. Eu queria enfiar devagar para ela sentir a dor e a morte chegando. Queria ver o medo nos olhos dela, ao mesmo tempo a veria pedir perdão, num último suspiro antes de morrer, antes da facada em seu coração, eu poderia ouvi-la sussurrando.

- Te amo minha vida.

Eu tentaria parar, mas não conseguiria, há uma força maior que mandaria ata-la, na incerteza da mentira ser verdade ou da verdade ser uma esperançosa mentira.

Ela cairia no chão.

Então meus pensamentos alucinantes deixam meu corpo e eu volto meu olhar para ela. Percebo meu erro a tempo. Guardo a faca onde eu a peguei. Me aproximo de Carol e a acordo com um beijo. Ela abre os olhos, dou um último beijo. Ainda sinto sua boca quente e carnuda, queria ficar ali para sempre e sentir o calor dela. Em meus pensamentos loucos matei a mulher que eu amava. Acariciei mais uma vez seu rosto. Juntei as pernas e cruzei os braços dela. Ela parecia arrependida de tudo que estávamos passando, nosso mau momento e nossas brigas. Seu rosto tinha um ar de dor, porém também tinha um leve sorriso de agradecimento. Decidi pegar em sua mão e trazê-la para o quarto. Com ela deitada na cama eu gostava mais de mim. Hesitei por um momento, mas sabia que fiz a escolha certa. Senti que me arrependeria com o beijo da morte. Senti a obscuridade crescente dentro de mim, meu viajante das trevas como num trem sem freio para o inferno, me levava com ele para as garras da maldição da eternidade. Estou feliz de não ter matado a Carol, mas até quando eu serei sufocado, até quando os punhais violentos irão descansar em silêncio profundo. Carol parecia preocupada com algo e não dizia. Seu olhar era familiar para mim. Parece que estou num espelho refletindo a mim mesmo. Estou temendo estar errado da ingenuidade dela, mas agora meu coração ainda não está quebrado o suficiente para ter que me despedir. Sinto brotar em nós algo mútuo que não compreendo. Acho que é paixão, amor, cumplicidade ou algo mais nesse convívio delirante.

Ali nasceu minha obscuridade e seu nome que foi sempre ninguém, cresce entre o começo do inferno e o fim do céu, destinando a nós um destino incerto. Assim como as dezesseis vidas que eu deixei jazidas pelos cantos da cidade.

Quantos sonhos precisa um homem sonhar

Até poder acordar e ver que nunca sonhou.

Quantos caminhos precisa um homem andar

Até ele parar e ver que ele nunca andou.

Quanta lágrima precisa até que ele saiba

Que para a vida a tristeza dele nunca importou.

Quantos ouvidos precisa um homem ter

Até poder ouvir seus gritos e ver que nunca escutou

Quantos olhos precisam até que ele saiba

Que o sol quente de seus dias nunca brilhou

Quantos anos um homem deve existir

Até perceber que nunca existiu e sempre se humilhou

Quantas palavras precisa um homem falar

Até se calar e ver arrependido que nunca falou

E quantas armas ainda irá disparar

Até perceber que um dia alguém também o matou.

Mas hei! Senhor tocador de violão

Por favor, toque uma linda canção.

Pois na úmida noite fria do esquecimento

Pela rua desafinada da vida eu viverei.

Ubiratã Hanauer
Enviado por Ubiratã Hanauer em 13/03/2022
Reeditado em 12/04/2024
Código do texto: T7471749
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