Narrativa brecada
Parou a narrativa de vez.
Jogou o trem descarrilado serra abaixo. Olhou a cena, enxugou o rosto com as costas da mão. Não, não deixaria o trem seguir seu destino.
Por que não? Literatura é mundo sem lei, não existem algemas, não há o que desrespeitar. Ou há?
O suor frio insistia em escorrer, penetrando nos olhos, já confusos de emoção.
Narra! Narra e fica fora dessa!
Sim, sim, claro. Senão o que fazer com a cena engasgada, com os destinos que clamam por um fim? Mas não há fim, há reticências. Gostava de ser reticente, não no sentido de vacilo, mas os três pontinhos que significa algo que continua ou que pode ser interpretado de várias formas.
Seria um desrespeito largar o sujeito num trem e por um fim assim, fácil para ambos. Mesmo sendo ele um personagem vacilão, fraco, que não soube preservar sua imagem, muito menos tomar decisões. Não! Mata não!
Dava para sentir a respiração ofegante e tensa.
Durante a viagem pensava nas palavras que caberia dizer. Um embrulho na barriga, um desconforto de alma. Calafrios, nervosismo. Sentia os solavancos como tapas nas costas. Sou um bosta! Culpado! Mil vezes culpado!
Sentia pena. Mudaria a narrativa? Não. Não escute o que tem a dizer nem o jogue morro abaixo. Apenas o conduza, friamente, como quem conduz um criminoso para sua cela; sem hesitação.
Tomou banho, guardou a sensibilidade no lado mais obscuro do seu ser, ajeitou-se diante da tela e decidiu, profissionalmente, o destino do covarde.