O homem da face sombria - A MALDIÇÃO DA ETERNIDADE

A MALDIÇÃO DA ETERNIDADE.

Vigiava, curava e benzia,

talvez seja assim que ele se sentia

quando não podia acordar de seu sono mais profundo

em que adormecido ficava em minhas entranhas frias.

Perdura sua raiva e investe se atirando no mar das sombras.

Perdido estava eu e ela.

Nas tumbas gélidas de meu coração.

A noite estava tão tênue.

A lua se enchia de graça.

Graciosa estava ela.

Dormindo em minha casa.

Carol acorde meu amor.

Sinto a sua falta.

Faz tão pouco tempo que dormiu.

Por que não abre os olhos outra vez?

Achei que estava morta.

Assim como a noite que se acaba,

abala-se em mim um sentimento.

Pura dor e rancor no peito.

Puro ódio em meu olhar.

Seca o sangue em minhas pupilas.

Dilata o ego tão egoísta,

que pensa só nele e em se saciar.

Saciado esteve junto de minha companhia,

pois somos como luz e escuridão.

Quando à noite vinha,

erguia-se no mau.

Quando vinha o dia.

Era todo dia igual.

Rezava por Deus em minha sorte.

Culpada era minha vida sobre a morte.

Atirava os lençóis daquele corpo

No lixo que se via de uma rua a outra.

Servia de esconderijo para ele.

Nas minhas entranhas me deixava um ser maléfico.

Ser de duas caras perturbava minha mente.

Vigia, persegue, mata e foge novamente.

Eu não sou assim, não sou covarde.

Covarde é você meu ego que some,

desaparece no amanhecer de cada dia.

E vivi nas minhas carnes frias

O seu pesadelo de cada noite.

Foi assim que procurei ajuda.

Tentava ajudar a mim mesmo.

Fui a especialistas sem saber ao certo,

Se procurava a explicação para o que sentia.

Sentia satisfação na morte.

Sentia meu corpo flutuar no meio do sangue.

Sentia prazer nos gemidos da dor.

E de olhos arregalados suplicando pela vida.

Vida que se ia na ponta da faca.

Às vezes aquela velha da cozinha,

de cabo branco, ralado e manchado de sangue

Às vezes a minha,

de cabo negro afiado e limpa.

Cortava gargantas, roubava almas.

Sequestrei, matei, mas nunca roubei.

Minha missão era divina.

Acreditava em Deus e na religião.

E em todas nunca ouvi falar do que falarei.

Nas ruas eu vaguei e esperei

O momento era o certo

Apenas o dia errado

Fui ver o tal curandeiro de que me falavam

E vi o veneno em seu olhar

Senti um mal-estar, um desapego

Desapeguei da vida e fui entrando

A sala era um cômodo pequeno

Apenas uma mesa e duas cadeiras

Servia de fronteira entre mim e ele

Havia um sofá grande,

Havia prateleiras cheias de ervas

Cheias de esperanças, mas

Cheias de culpa também

Eu seria mais um alguém

Mas escapei sem feridas, pois dele eu não gostei

Cheirava mal, fedia tabaco barato

Não cigarro, mas sim palheiro

Charutos de maconha acompanhavam seu prato no almoço

Tequila era sua bebida favorita

Ele era curandeiro, curava o desespero,

Com ervas, chá e brigadeiro.

Usurpava o som da voz

Embebia suas clientes e as fazia dormir

Enquanto dormiam as roubavam

As velhas ele deixava,

As novas ele usava de todo o jeito

Escolhia bem quem matava

E ele era presa em potencial

A noite teria caça

Caçador virará caça.

Então bebi para esquecer

Em casa quando cheguei um pouco tonto

Carol me esperava com a janta pronta

E pronto, minha obscuridade já dormia

E a lua de sangue nascia

Carol que descarregou seu péssimo dia em mim

Me fez precisar controlar meu ódio

Se não fosse a razão seria o fim.

Apenas a sede por matar fazia meu coração amar

Devagar agora, ela dorme.

Tomei banho e fui também se deitar

Queria dormir e sonhar

Sonhar com quem eu era e talvez

Em meio aos sonhos, voltar uma década

E nunca ter começado a matar

Sei da pena por querer purificação

Sou punido em sonhos todos os dias.

Calado fico, pois escolhi esta vida.

Em meio à morte Severina

Me ponho igual a todo mundo

Sujeito as complicações da vida

Oito horas de sono e pronto

Saio de casa às cinco e meia.

Vou trabalhar isso é que penso

Sinto o clima pesado e tenso

Sinto que o outro me odeia

Sinto não poder estar livre todo o tempo,

Falando em tempo, a hora se aproxima

Queria a palavra do curandeiro,

Queria curá-lo sobre a mesa de centro

Com a garganta aberta da orelha ao beiço

O sangue correndo em minhas mãos

Com sabor doce de veneno

Não seria este dia, seria em outro,

Queria tentar a minha cura

Já que suas vítimas eram velhas e garotas

Meninas e prostitutas, pequenas e adultas

Moças casadas e adulteras.

Mulheres puras e sem alma alguma

Foi por volta da uma da tarde que o procurei.

Ele estava de pé com seu palheiro,

Eu o olhei e ele me olhou primeiro

Quem seria o primeiro a dar o salto

O grande pulo para o mortal desfiladeiro.

Será que ele percebeu algo no meu olhar?

Oi, ele disse baixando a cabeça,

Surpreso ele me toca no rosto calado

Ajoelha-se e diz estar pronto

Sei bem o que veio buscar

Vejo no olhar a sua revolta e pecado

Sei que quer me matar, mas quer ajuda

Quer primeiro curar sua culpa

E no perdão da culpa, apagar de si o próprio passado.

Que culpa tinha se sou assim

Tudo que toco logo encontra o fim

Já passaram muitos por minhas mãos

Minha sede de justiça é divina.

Meus medos e anseios se dividiam

Na culpa entre a morte e a vida.

Eu via a vida nos olhos do curandeiro

E ele sentia a morte que me domina

Cavalheiro queira sentar ele diz

Prefiro ficar em pé eu respondo

Então ele pega suas ervas,

Nada de chás, nada de fumaça, tesouras e rezas

Apenas as indecentes e cheirosas ervas

O que seriam perguntei estas ervas

Ele diz com o medo no olhar

Estas são as vidas passadas

O espírito das almas penadas

Aquelas que foram muito tempo roubadas

Este é o cheiro das portas do céu

Mas sua alma já não lhe pertence mais

O enxofre seria seu melhor odor

Sua alma não descansará jamais.

E no calor do inferno sentirá a eterna dor.

Para que seu corpo ao menos descanse em paz

Farei o ritual que me pede

Sei o que pensa disso tudo

E sei que será nosso penúltimo encontro

Porque o último será o final de tudo

A essência vital de um de nós

Deixara este mundo

Só restará saber para qual mundo irá uma de nossas almas.

Dizem que espíritos se manifestam

Dizem que o mau está em nós

Dizem que somos maus

Dizem que somos apenas humanos

Nossa raça, outra igual não encontramos

E por saber que morre cedo.

Deixa o mau como um conselho

Para o bem que passa todo o ano

Ano que passa, passou o tempo

Era hora de ir embora

Pobre senhora que entra depois

Se perdeu em sua cadeira de roda

Rodopiou até cair no chão

Caiu nas garras do curandeiro

Que a usou de todo jeito

Até parar seu coração.

Era apenas mais uma morte em seu lençol

Lençol de pura seda branca,

Destas que cega a pupila

Destas onde o sangue se derrama

Igual a de filmes do passado

Mancha a cabeceira, mancha o colchão,

Mancha de ódio que mancha a cama.

Perdi-me naquela tarde

Voltei mais cedo rever minha Carol.

Precisava sair, mas nunca saía.

Sempre em casa com sua ferida.

Me via perdido, sem saída

Qual seria meu fim

Havia cicuta e os calmantes pesados

O que beber primeiro

Claro eu entendo

Veneno é coisa do passado

O curandeiro também era

Talvez um drink resolva tudo

Um passo para o inferno

Levaria a alma do desgraçado.

Um passo para frente e dois para traz

Assim me diziam que faço

Hora de morrer, era a hora

Melhor hora, era a hora que mato.

Guardei o pequeno frasco

Fechei bem e coloquei no bolso.

Há satisfação em meu olhar

Nada arrependido por estar

Sepultando o curandeiro dentro do poço.

O curandeiro era velho e assustado

Ele nasceu como nenhum outro

Ele tinha o veneno em suas veias

E um olhar sombrio no rosto

Sua vida era sofrida em meio ao caos

E a velha cidade que viveu não era mais tão bela

As construções antigas estavam em ruínas

E as pessoas eram de idade avançada

No meio disso tudo ele crescia

Como um menino sem chances, sem nada

Ele já havia chegado à adolescência

Quando mudou para uma cabana nas montanhas

Os rochedos ameaçadores cercavam seu lar

Mas ele não podia desistir de tudo sem lutar

A vida já havia passado há tempos para ele

E logo já era homem de boa aparência

Criado no campo sobre a natureza

Tudo ia acontecendo rápido

E sua vida passava ainda mais rápida naquela época

Em um inverno rigoroso os ventos sopravam forte

E sua pequena casa quase não resistia

Diante do desespero ele ria

Ao se deparar com as garras da morte

E pela primeira vez sente medo do futuro

Quando o verão chegou, ele se mudou.

E seu futuro explodia em sua cara maltratada

Via-se em seus olhos lagrimados de tristeza

A dor de uma vida duramente angustiada

E assim ele seguia a sua sina, sua batalha.

Trabalhando contra o tempo e as pessoas

Contra aquilo em que ele acreditava,

Em sua vida desprezível, até que não lhe restou nada.

E assim pela última vez sentiu medo

Para resgatar o destino a tempo

De perder a alma para sua própria sombra.

Na última visita seu chá estava com cicuta

Veneno raro como a erva de muita idade

Produzindo na luz de sua própria lua.

A maldição da eternidade.

Gosto mais de você agora porque está morrendo

Sei lá acho que sempre gostei

Apenas o tempo me fez perceber isso

Somente as grades não me deixariam ser feliz.

Agora lhe vejo no inferno

E o diabo sorri na cruz de minha angústia

Miséria e ódio se misturam

Com nosso sentimento e nossa fúria.

Estou escondido na prisão de meu corpo

Enquanto você apodrece no fundo do quintal.

Ainda ouço sua voz pedindo socorro

Ainda ouço o som do desespero em seu olhar final.

O veneno que cortou suas entranhas

Parou devagar seu coração.

Sua voz foi ficando baixinha

E um poço profundo foi à solução

Seu fim foi este

Enterrado em um poço

Envenenado com cicuta

A Deus pedindo socorro

Sobre a luz da lua

Dia seguinte em meio ao sol do meio-dia

Na cidade das sombras

Escuta passos lentamente a caminhar.

Eles vinham em sua direção.

Procurou uma sombra onde pudesse ficar só

Mas o sol do meio-dia

Esconde as sombras da estrada de chão

Que o levou ao nada

Entre o caminho da tristeza

E os becos da solidão.

Depois partiu para lugar nenhum

E o sol já não brilhava tão alto assim

Pela estrada de pedras da velha cidade

Ele seguiu, no meio da escuridão.

E se perdeu no vale das sombras da morte.

Agora a caminho do céu,

Não consegue enxergar a luz.

E com as minhas mãos vazias

Vaga pelo infinito sem esperanças e sem direção alguma.

Tentando voltar para a cidade das sombras

Pelo caminho da tristeza e os becos da solidão.

Voltei satisfeito ao fim do dia

Pois é no fim que tudo termina

Acaba a angústia, tristeza, alegria,

Acaba o tempo também acaba a vida

Volto para os braços de quem me quer

Os desejos da minha Caroline

Os sorrisos de quem dormia

Sem saber ao certo o que ela quer.

Nessa noite apenas quero dormir.

E acordar em seus braços

Sentir os seus lábios.

E merecer de você os seus abraços

O que faria se as lembranças fossem apagadas

O que diria se as nuvens negras

Viessem fechar os meus olhos.

O que sentiria se o mundo acabasse.

O que seria de você se não tivesse mais nada

Seríamos grãos de areia no paraíso de Deus.

Enxugados pelas ondas do mar.

Seriamos anjos de asas quebradas.

Seriamos claridade e escuridão.

E no final de tudo quando não existisse mais nada,

seríamos figuras apagadas

De um tempo de solidão.

No fim do dia, com o curandeiro.

Já morriam quatorze em minhas mãos.

Ubiratã Hanauer
Enviado por Ubiratã Hanauer em 12/03/2022
Reeditado em 12/04/2024
Código do texto: T7470877
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