Aceitar(-se)

É tão mágico quando nos encontramos com alguém cuja existência é tudo o que poderíamos desejar nessa vida. É uma das mais sublimes experiências das quais podemos desfrutar quando a outra pessoa se liga a você de uma maneira tão profunda e íntima ao ponto de apenas o olhar, apenas o silêncio e apenas a quietude serem o bastante para que um diga ao outro o que está pensando e sentindo. É transformador quando nos permitimos a essa conexão. Quando deixamos de lado o nosso egocentrismo, para adentrarmos o mundo do outro. Quando deixamos de lado a nossa insegurança para permitirmos que o outro adentre o nosso próprio mundo. E é ainda mais transformador quando não nos importamos com o modo ou a forma que as outras pessoas encontraram para amar. Basta que amem e sejam amadas.

Éramos ainda muito jovens quando nos conhecemos. Estávamos nos primeiros meses da faculdade. Eu do meu jeito introvertido e ele com a sua simpatia e gentileza. Eu com as minhas confusões e incertezas e ele com as suas convicções e seguranças. Eu querendo ser feliz, mas sem saber como fazê-lo, e ele vivendo a felicidade e despertando a admiração em quem o observava. Quis negar. Fiz o possível para negar. Lutei contra mim mesmo desde que comecei a entender a vida, mas quando o conheci, pensando que seria mais uma luta vencida, percebi que quando o sentimento é real, quando é muito mais do que uma ilusão passageira, é impossível vencê-lo. Você pode confrontá-lo. Mas vai se machucar. E no final irá se render. Não seria mais fácil permitir-se a ele?

Viramos amigos. Eu com a minha timidez e ele com a sua espontaneidade. Tão opostos. Mas tão atraídos. Embora eu tentasse resistir àquela atração. O que iriam pensar? Como eu iria me portar? Como o mundo iria me ver? Quando somos muito jovens, ainda inexperientes em tantas coisas, a gente se importa demais com a opinião do restante do mundo, a gente se esforça desnecessariamente para atender às expectativas alheias. Mas a gente também percebe que enquanto fazemos os outros felizes, vamos nos afastando da nossa própria felicidade. E a vida vai se tornando enfadonha. Perdendo o encanto. Até deixar de fazer sentido.

Eu sabia o que sentia. E ele também tinha certeza do que existia entre nós. Mas eu não possuía coragem para viver o que era de meu direito. No entanto, ele tinha as forças que me faltavam.

— Depois de anos de vida, tendo que praticamente virar um adulto, enfim posso dizer que fiz uma amizade — indo para casa, após a prova final do semestre, acompanhado pelo olhar atento das estrelas, acompanhado, também, pela companhia cujo profundo significado eu ainda não conhecia, por fim declarei o que há semanas guardava apenas para mim: a gratidão por terem se aproximado. — Meus pais devem estar orgulhosos.

— Nunca teve amigos?

— Tenho conhecidos — respondi cauteloso, a cautela a qual sempre recorria quando precisava falar de mim —. Muitos conhecidos. Deve ter percebido que não sou um grosseiro que anda por aí sem cumprimentar as pessoas — rimos despreocupados —. Mas confiança é algo que valorizo muito. É algo que não se oferece a qualquer conhecido.

— Então está dizendo que me concedeu sua confiança?

Eu não respondi nada. Era verdade. Minha confiança estava em suas mãos, mas assumir em voz alta poderia ser arriscado. Não mais arriscado do que aconteceria a seguir.

— Eu fico grato por isso — ele continuou. — Receber a sua confiança diz muito sobre nós.

Permaneci em silêncio.

Talvez o nós que ele estava dizendo significasse outra coisa em sua concepção, mas eu sabia muito bem o que aquilo significava para mim. E sabia que sentia medo por aquilo.

— Eu não quero mais esperar — diante da minha mudez, insistiu em manter o silêncio afastado. — Na verdade esperei por todo o semestre. E não sei o que você vai fazer a respeito, mas sei que é o que quer. Não custa arriscar.

Então me beijou.

Eu não resisti, embora quisesse. Eu não o afastei, embora acreditasse que aquilo seria o certo a fazer. Eu não o rejeitei, embora fosse o mais seguro a ser feito. Retribuí. E quando percebi o que estava fazendo, a entrega a qual me rendia, então fugi. Corri pelas ruas escuras, iluminadas pelas luzes instáveis dos postes envelhecidos. Corri debaixo das estrelas que deviam zombar de mim naquele momento. Corri deixando para trás alguém que eu desejava que caminhasse ao meu lado, embora não soubesse como vencer meus mais íntimos receios para que aquilo acontecesse. Corri do amor.

Só que o amor sempre o acompanha. Você pode correr das pessoas. Pode correr das circunstâncias. Você pode correr de todas as situações. Mas não pode correr de si mesmo. Do que sente. Do que deseja. Você pode fugir para uma ilha deserta. Se possível fosse, você poderia embarcar em uma viagem rumo a um planeta distante e inabitado. Mas ainda assim estaria com a sua companhia, com os seus pensamentos, cercado pelos próprios sentimentos, com a certeza de quem é e do que deixou para trás. Não há como fugir de quem somos nem do que queremos.

As semanas se passaram. Eu já sabia há muito tempo da minha condição, sabia quais obstáculos teria que enfrentar se quisesse vivê-la e sabia por quem estava me apaixonando. Mas não sabia se eu era resistente às ameaças. Se eu daria conta das consequências. Eu não sabia como reagiria se as coisas não saíssem como o esperado e tudo o que me restasse fosse a desilusão e o fracasso. Eu não sabia que era inútil me preocupar com essas coisas enquanto o tempo corria e tudo o que me restava era viver a minha própria vida da maneira que me fizesse feliz.

E aquele afastamento começou a incomodar. Eu trabalhava com o meu próprio negócio, era professor de inglês enquanto cursava a faculdade de Direito. E o desempenho no meu trabalho que não diminuiu enquanto eu o conciliava com as noites mal dormidas por conta dos estudos que extrapolavam a meia-noite, começou a diminuir pelas confusões que tomaram conta de mim. Eu gostava dele, era inegável. E gostava de saber que aquilo que existia era em certa medida recíproco. Eu gostava da ideia de ter a chance de, ao menos uma vez, encontrar alguém com quem valesse a pena escrever uma boa história. Mas não gostava de saber que eu era covarde demais para tomar conta da minha própria vida. O que eu estava fazendo? Iria mesmo perder aquela chance? Iria mesmo ignorar os meus próprios anseios que tentavam me impulsionar a correr atrás do que eu queria? Iria mesmo rejeitar a minha vida em virtude do que poderiam ou não pensar a meu respeito? Iria mesmo desperdiçar a chance de ter satisfação? Mas e se optasse por atender ao que me chamava, estaria disposto a encarar todas as ondas que se levantariam? A sociedade ainda é intolerante e perigosa para quem não aceita as suas convenções, mas naquela época as coisas eram piores, as condições eram mais duras, eu não teria a quem recorrer diante das injustiças e das ameaças. Mas eu estava ignorando um fator primordial.

Depois daquelas semanas de silêncio e ansiedade, o reencontro aconteceu. Foi inesperado, apesar de desejado. Foi surpreendente, apesar de necessário. Foi desconcertante. Foi incômodo. Foi transformador.

A gente se encontrou na praça da cidade. Eu estava levando meu cachorro para passear um pouco, parecia muito estressado naqueles últimos dias, como se estivesse revoltado pela minha inércia diante da vida. E ele estava apenas passando por ali. Sem maiores pretensões. Mas com certeza disponível ao que fosse que o universo tinha a oferecer.

— Rafael... — falou meu nome como se não soubesse ao certo se era digno de dizê-lo ou se seria ignorado como da última vez.

— Luís... —respondi tentando demonstrar indiferença, como se dissesse apenas mais um nome, como se não significasse nada. Mas era “como”. Não era o fato.

Silêncio.

Desconforto.

— Podemos conversar? — por fim, ele pediu.

Não sabia o que responder. Não sabia se aceitava ao convite ou se corria dele outra vez. Não sabia se dava razão ao que pulsava dentro de mim ou se ignorava todos os meus sentimentos e permanecesse em uma vida pacata, regrada, que atendia ao que esperavam de mim, mas que não satisfazia ao que eu esperava da minha existência. Mas não era mais a hora de não saber. Era a hora de decidir. E aquela decisão poderia definir o meu futuro.

— Acho que sim — respondi inseguro.

Pensei ter visto um lampejo de esperança em seus olhos, um discreto e momentâneo sorriso em seus lábios. O que eu estava fazendo? Alguém queria a minha companhia. Alguém estava disposto a me aceitar como nunca alguém ousou fazer. E eu estava cogitando jogar aquilo fora.

Fomos para um canto um pouco mais reservado. Sentamo-nos a uma distância segura e confortável. Contudo não pudemos evitar que o constrangimento se manifestasse outra vez.

— Eu não sei onde estava com a cabeça — ele começou, os olhos voltados à paisagem ao redor, as mãos agitadas uma contra a outra. — Posso ter confundido as coisas e perdido um amigo. Bom... Pelo menos agora você já sabe quem eu sou, sabe tudo. Vou entender se preferir continuar afastado. É sua reputação em jogo.

— E se eu disser que você não confundiu coisa alguma? — sua atenção voltou-se a mim. Senti meu rosto ruborizar. Senti meu íntimo se incomodar. Eu tinha sua atenção.

— Não foi o que pareceu — disse sorrindo.

— Foi o que consegui fazer, apesar de querer ter feito outra coisa.

— Por que correu? Poderíamos ter conversado. Não precisaríamos ter que ficar dias sem contato, como dois estranhos. Não posso mais tratá-lo como um estranho.

— Como soube sobre mim?

— A gente sente quando gostam da gente. E a gente sente que tipo de gostar é esse.

— E por que eu?

— Por que eu?

Sorri. Naquela pergunta estava a minha resposta. Coisas que apenas o coração pode saber.

— Eu tenho medo — comecei a desabafar. — E tenho que assumir o meu medo. Mas além disso, tenho que concordar que não sou a sua melhor opção. O que um desinteressante introvertido tem a oferecer? O que um popular de sucesso pode obter de mim? Precisamos concordar que isso pode ser uma loucura não porque não existam sentimentos, mas porque eu sou insuficiente para o que alguém como você merece.

— Sabe se é isso o que penso?

— Deveria ser.

— Mas não é.

Seus olhos continuaram sobre mim e minha mente fervia em um turbilhão de desespero para que eu repetisse o último comportamento e corresse o quanto pudesse. Porém, meu coração me obrigava a ficar. Se corresse estaria apenas correndo rumo à minha infelicidade. Se corresse, nunca poderia saber qual seria o resultado de uma escolha diferente.

— Isso tudo me assusta — confessei. — Minha família é tradicional e as pessoas que nos cercam não são tão diferentes. As pessoas brincam sobre morrer de amor, mas no nosso caso isso não é uma simples brincadeira, no nosso caso isso é real, a gente pode morrer apenas por amar. E eu tenho medo disso. Tenho medo de me permitir, de conhecer a felicidade por pouco que seja, e tê-la roubada de mim. Tenho medo de não poder fazê-lo se sentir aceito entre as pessoas que são importantes na minha vida, pessoas que nem mesmo sei se continuariam ao meu lado. Tenho medo do que possa acontecer apenas por querer ser eu mesmo...

— O medo é a coisa mais natural que existe em qualquer ser humano. Ele só não pode paralisar — depois de me ouvir, ele falou. — Eu também sinto medo. Mas meu medo maior é o de não ser feliz. Meu maior medo é o de deixar escorrer por entre os meus dedos a oportunidade que me é oferecida de ser feliz ao lado de alguém. Você é o que preciso. E se acha que terá que passar por tudo sozinho está muito enganado. Se puder me aceitar, se puder me receber em sua vida como espero que me receba, estará recebendo muito mais do que alguém para amar e alguém por quem ser amado, estará recebendo alguém que lutará por você, que enfrentará seus medos junto a você, que combaterá contra o mundo, se necessário for, apenas para vê-lo sorrir ao final do dia. O amor não se vive sozinho. E se você puder aceitar o que quero oferecer verá que nunca mais terá motivos para temer a própria felicidade.

Nunca alguém havia me falado palavras tão bonitas e encorajadoras. Ao contrário, muitas vezes duvidaram de mim e da minha capacidade. Só que quando existe um sentimento real, verdadeiro, tudo o que você quer é que a outra pessoa saiba o quanto você a considera forte e especial, e o quanto acredita que juntos poderão vencer todo um mundo de invejas, ressentimentos e opressões.

— Sabe que o nosso amor é perigoso, não sabe? — perguntei.

— E qual amor não o é?

— Vai aceitar o Rex? — peguei meu cachorro no colo.

— Vou aceitar você e o que quer que faça parte de quem é.

— Então eu também o aceito...

Aceitar era tudo o que precisava fazer. Era a única coisa que eu deveria fazer. Embora fosse incômodo, embora fosse de certa forma difícil, era apenas aquela decisão que eu precisava tomar para começar a ser feliz. E é isso o que precisamos fazer em muitos momentos das nossas vidas – tomar uma simples decisão. É claro que elas geram consequências. Como gerou para mim e gerou para ele. É claro que torcerão os narizes, que invalidarão a sua felicidade, que torcerão contra a sua felicidade. Mas também é claro que isso não importa. Os sentimentos de quem não soma não importam nenhum pouco. Não importa a dor, não importa a rejeição, não importa a reprovação. Se você estiver feliz e ter ao seu lado o motivo da sua felicidade, o resto do mundo não importa. Deixa que eles desperdicem tempo destilando ódio. Faça você um bom uso do seu espalhando e se contagiando pelo amor.

(Conto por @Amilton.Jnior)