A Cura Pelo Amor

Nós, enquanto seres humanos, podemos ser tolos em dados momentos da existência. Podemos dar ênfase ao que apenas nos faz sofrer e negligenciar aquilo que poderia ser vital para o nosso crescimento. Perdemos oportunidades únicas por orgulho. Deixamos algo importante passar por ignorância. Apesar de termos o invejável título de “racionais”, em dados momentos agimos pela impulsividade. E nos arrependemos. Só que às vezes esse arrependimento acontece tarde demais.

Viviane sentia-se irada. Como o marido pôde ser tão áspero em suas palavras? Por que ele não reconhecia que a sua rotina estava uma loucura? O hospital precisava dos seus serviços, pessoas dependiam da sua determinação para sobreviver, era tão difícil compreender isso? Mas ele insistia no fato de que estavam passando pouquíssimo tempo juntos. Ele sentia saudade. Mas quando ela tentou se explicar dizendo que seu trabalho era importante, ele levou para o pessoal e confrontou a esposa com a afirmação de que, para ela, mais importante do que sua família, era o seu emprego.

Aquilo, para Viviane, não era justo. Procurava ser uma esposa dedicada, procurava fazer a sua parte para que aquele relacionamento funcionasse, mas que culpa tinha se o mundo estava uma loucura? Se a cada hora centenas de pessoas perdiam suas vidas ao redor do mundo em virtude de um vírus de proporções inimagináveis? Aquela era a sua missão. Não escolheu enfermagem por diversão ou por que era a opção disponível. Estava naquele trabalho porque o contemplava como sendo o seu propósito na vida. O alívio dos pacientes era o seu alívio. A alegria dos familiares era a sua alegria. Aquilo a fazia se sentir viva e importante.

— Não percebe que estamos a cada dia mais distantes? — Pedro, seu marido, indagou.

— Não consigo entender o porquê dessa suposição — apressada em seu café da manhã, a enfermeira protestou —. Você precisa entender que sou necessária diante de tudo o que está acontecendo. Muitos colegas desistiram. E os que ficaram estão exaustos...

— Parece que os seus colegas sabem o que importa de verdade.

— O que quer dizer com isso? Que o nosso casamento não é importante para mim?

— É exatamente o que estou dizendo. Não percebe o risco no qual se mete todos os dias? Não consegue perceber o quão aflito me deixa a cada manhã que sai por essa porta? Não sabe como me sinto quando a vejo voltar para casa, preocupada, com medo de estar carregando alguma coisa... Não me preocupo por mim, mas por você. E daí passo a me preocupar com a nossa relação. E se o pior acontecer? Como vou ficar?

— Pedro... — ela suspirou cansada —. Esse é o meu trabalho.

— Também era o trabalho dos seus colegas.

— Eu tenho um propósito...

— Já entendi — o diretor de escola disse desanimado —. Já entendi qual é o meu grau de importância nisso tudo.

Antes que pudesse retrucar, Viviane viu o esposo lhe dar as costas. Refletiu por alguns instantes. Cogitou a ideia de se convencer de que o que fazia era loucura. Talvez tivesse tido sorte até aquele momento, mas quem garantia que a sorte continuaria ao seu lado? Mas também pessoas dependiam da sua coragem. Se todos se deixassem levar pelos próprios medos os hospitais estariam lotados de doentes sem qualquer auxílio, sem qualquer esperança de melhora.

Pegou a bolsa.

Colocou as chaves entre os dedos.

E partiu.

Devidamente equipada, como os soldados que se preparam para uma guerra, Viviane se preparava para mais um dia de luta. Não sabia o que a aguardava. Se poderia comemorar vidas salvas ou se teria que se lamentar por aqueles que partissem. Para ela, a partida de alguém nunca seria vista como algo natural, por mais que aquele fosse o desfecho de grande parte dos doentes. Cada pessoa que ia embora era uma história única, deixava pessoas únicas, deixava amores únicos.

Pegou o primeiro prontuário do dia.

Enquanto lia a gravidade do caso corria pelos corredores agitados.

Não havia se atentado para a idade do paciente.

Quando o viu, condoeu-se.

— Consegue tomar conta? — ao vê-la, o médico responsável sinalizou que precisava ir, tinha outros pacientes a tratar.

— Com certeza — assegurou.

— Em caso de urgência, sabe o que fazer.

— Sim, senhor — esperou o médico sair e se dirigiu ao jovem acamado —. Isaque — lançou um sorriso singelo com os olhos —. É um belo nome.

O rapaz apenas assentiu. Sentia-se enfraquecido. O corpo era tomado por dores. E o ato da respiração, algo que sempre fora tão fácil em sua vida, agora parecia um desafio de vida ou morte.

— Eu ainda não tenho filhos — seguindo as recomendações do prontuário, verificando a oxigenação e outros sinais vitais, a enfermeira tentava distrair aquele que se sentia ameaçado pela própria fragilidade —. Mas pretendo ter. Quero dizer, se o meu casamento resistir a tudo isso... Quero que que ele se chame Isaque...

O paciente sorriu como gesto de aprovação.

— Não fique com medo... Faremos o possível para que você saia por esses corredores andando com as próprias pernas... Mas precisamos que você também acredite nisso.

Gesticulando com a cabeça, Isaque demonstrou não acreditar naquela possibilidade.

— Um. Favor. — com esforço, afastando a máscara de oxigênio por alguns segundos, o rapaz fez soar a voz abafada.

— Por favor, preciso que poupe energia. Você precisará de toda força que puder poupar...

— Não... Eu preciso... — tentou se sentar, mas percebeu que era incapaz. Dos olhos, brotaram lágrimas.

Ciente do quanto aquele cenário era assustador a quem o vivia, sabendo que aqueles pacientes só queriam ter alguém que pudesse ouvi-los em seu desespero, Viviane se aproximou do jovem rapaz, ficou perto o bastante para que, mesmo falando baixo, ele pudesse ser ouvido.

— Eu não aguento mais... — reclamou como se estivesse pronto para se render.

— Não diga isso...

— Não. Eu preciso que me ouça... Estou fraco demais... Fraco demais para isso — seus olhos estavam fundos, sua pele era pálida, os lábios mal se mexiam para que as palavras fossem pronunciadas —. Só lamento muito porque vou deixar um amor que foi difícil ter o direito de viver...

Tosse.

O rapaz foi tomado por uma tosse violenta.

Ágil, Viviane recolocou a máscara de oxigênio em Isaque, ajudou-o a se deitar mais, massageou seu peito na esperança de acalmá-lo. Quando a crise cessou, o paciente tornou a falar.

— Diga que eu sempre vou amar...

— Precisa ficar em repouso — Viviane tentou mais uma vez.

— Eu preciso que me prometa isso... Diga... Diga que eu sempre vou amá-lo...

— Quem?

— Meu namorado... — Isaque abriu outro sorriso. Naquele instante a enfermeira percebeu um brilho discreto naquele olhar abatido. Era a manifestação dos sentimentos que existiam no peito daquele jovem que era tirado de todo um futuro —. Não foi fácil para a gente... Tudo começou escondido... Mas não se pode aguentar por muito tempo esconder algo que cresce a cada dia, não é? — fechou os olhos recolocando a máscara, retomando o fôlego, conseguindo um pouco mais de força para dar vazão ao que sentia —. Disseram que era só uma fase, mas a gente mostrou que não era. Estamos juntos há cinco anos... E gostaria de ter muitos outros ciclos de cinco... Mas não vou conseguir... Então eu preciso que me prometa que irá procurá-lo e irá dizer que em meus últimos instantes era apenas nele que eu conseguia pensar... Nele... Nele e no quanto me fez feliz...

— Não acha que seria melhor que você mesmo dissesse essas palavras?

— A gente brigou alguns dias antes de tudo acontecer e eu vir pra cá... Não conseguimos mais nos falar... Nem sei se ele gostaria de me ouvir... Só sei que eu gostaria que ele soubesse que sinto muito e que preciso que me perdoe...

Viviane, condoída pela história, colocou a campainha nas mãos do jovem rapaz. Instruiu-o para que a apertasse insistentemente caso sentisse alguma coisa. Em breve ela estaria de volta.

Trocando de equipamentos com rapidez, a mulher foi à recepção do hospital na esperança de que algum familiar do paciente a seus cuidados estivesse presente, anunciando pelo seu nome. Talvez não fosse a postura mais adequada, não estava se importando com as consequências, apenas precisava que uma história de amor tivesse um final feliz.

— É meu filho — uma mulher aflita se manifestou, tinha ao seu lado a companhia de um rapaz igualmente angustiado.

— Ele namora com alguém? — sem saber ao certo se a realidade do rapaz era conhecida por todos, Viviane fez a pergunta.

— Comigo — o rapaz se manifestou.

— Aceita conversar com ele?

— É claro!

— Preciso que me passe o seu número. Ele precisa ouvir que está tudo bem.

Correndo contra o tempo e as possibilidades, Viviane trocou sua roupa de proteção mais uma vez, levou consigo um celular, entrou no quarto de Isaque com desespero, sentia medo de que o tempo houvesse se esgotado.

— Isaque... — aproximou-se cautelosa. Seus olhos estavam fechados.

O paciente debilitado se mostrou presente.

— Preciso que fique calmo. Que se controle. Mas tem alguém que gostaria de conversar com você.

Colocando o celular diante dos olhos do paciente, Viviane se emocionou por ver a alegria dominar aquele rosto abatido e lágrimas de prazer se manifestarem.

— Pensei... Pensei... — respirou fundo —. Pensei que não poderia mais vê-lo...

— Pensou errado.

— Quero que me perdoe...

— Não há nada para se perdoar. Nós dois erramos. Fomos incompreensíveis um com o outro. Erramos juntos.

— Quem tenta acertar sempre pode errar.

— Sim. Sempre queremos acertar. E isso já basta.

— Sabe que eu amo você, né?

— E o sentimento é recíproco. Também amo você.

— Não se esqueça de mim.

— Impossível esquecer alguém que irá envelhecer ao seu lado — a voz do rapaz do outro lado se abalou, ele percebeu que aquela poderia ser uma despedida.

— E o que faremos quando estivermos velhos?

— Além de gritar um com o outro para que possamos nos ouvir?

— Sim... — Isaque riu com mais espontaneidade, um sorriso que contagiou a enfermeira ao seu lado —. Além de gritar um com o outro.

— Eu acho que iremos contar nossas histórias para os nossos netos. Iremos ensiná-los a nunca desistirem do que querem. Pode ser tudo o que importa.

— A gente não desistiu.

— Não. E não é agora que podemos desistir...

Conciliando com outros pacientes, Viviane não deixou de cuidar pessoalmente de Isaque. A cada instante procurava observá-lo. Perguntava se estava tudo bem e se alegrava por vê-lo fazer um “joia” com a mão. Foi assim até o final do expediente, quando a oxigenação do rapaz estava bem melhor em comparação com mais cedo e seu rosto parecia discretamente mais corado.

— Passarei essa noite com você.

— Não tem marido? Se me lembro bem, disse que gostaria de ter um filho se o seu casamento resistisse... Acho que deveria voltar para casa.

— Sim. Tem razão. Mas não agora.

— Eu acho que vou ficar bem. Acho que só precisava daquilo. Saber que ainda há tempo para amar. No fundo sempre há. Mesmo nos últimos minutos...

— Então para ter certeza de que você sairá daqui de mãos dadas com aquele rapaz, quero cuidar pessoalmente da sua saúde. Você será a minha última missão.

— Eu ainda não a agradeci pelo que fez... Foi importante...

A enfermeira sorriu. Dentro de si tinha uma certeza incontestável, aquele era o seu propósito: salvar um amor.

Isaque teve uma boa madrugada. Aguentou ficar fora do oxigênio por alguns momentos. Era sinal de que seu corpo reagia, fato que tranquilizava a dedicada enfermeira.

— Bom dia — cumprimentou o sonolento paciente.

— Vivo... — ele suspirou aliviado.

— Mais vivo do que nunca!

— E o seu marido?

— Não se esqueceu disso ainda?

— Pode ir. Eu vou ficar bem. E quando voltar me verá dando pulos nesse lugar!

— Está bem — divertindo-se, a enfermeira concordou —. Volto ao final da tarde. E se precisar peça que me chamem.

No caminho de volta para casa, comovida pelas últimas horas, Viviane se emocionou enquanto dirigia. Agora sua missão era salvar a própria história, era lutar pelo próprio amor.

— Pedro... — ao chegar, viu o marido ainda deitado. Colocou-se ao seu lado. Abraçou-o como há dias não fazia e sussurrou o seu nome —. Preciso que me perdoe...

— Vivi... — ele se voltou à esposa, permitindo que os olhos se encontrassem —. Não... Eu entendo que é o seu trabalho... Por mais que não goste.

— Mas além do meu trabalho há o que sinto. E o que sinto é mais importante do que tudo... Eu não quero ter que ficar na cama de um hospital, lutando para respirar, para então ter certeza de que deveria ter amado mais... Eu quero assumir essa certeza agora, enquanto tenho saúde, enquanto tenho disposição para demonstrar esse amor... Não quero sentir medo de não ter a oportunidade de ver o seu rosto, de dizer o que deveria, de declarar o quanto sou feliz pela sua existência. Então digo tudo agora. Eu amo você. E escolho você, escolho a nossa história!

Antes de se afastar de sua função, Viviane ficou por mais alguns dias em seu posto no hospital, apenas para acompanhar a recuperação de Isaque e ter a chance de vê-lo voar em direção à própria vida. O que não demorou muito. O amor se mostrou um grande remédio.

— Hoje é o grande dia! — ajudando o rapaz a organizar suas coisas, a enfermeira demonstrou sua satisfação.

— Eu pensei que não sairia mais daqui. Tinha certeza disso!

— Nossas certezas às vezes nos enganam.

— E que bom que é assim...

— Vai aproveitar a vida de uma forma melhor agora?

— Com certeza! Vou escolher pelo que brigar — soou uma risada divertida —. A gente perde tempo com bobagens. Um tempo que não volta jamais.

— Posso contar uma coisa?

— Claro.

— Você salvou a minha vida.

— Não foi o contrário?

— Posso ter ajudado na sua recuperação, mas você salvou o meu futuro. Foi meu último paciente. Estou saindo do hospital. Quero cuidar do meu marido, do nosso casamento, quero que em um dia de enfermidade, quando eu estiver quase desistindo de tudo, a simples ligação dele seja a cura que tantos procuram sem encontrar...

— Assim você me emociona... — afetuoso, Isaque abriu os braços e recebeu a enfermeira em um abraço de gratidão e emoção. É curioso como que entre pessoas desconhecidas possam nascer os mais sublimes sentimentos.

Acompanhando o paciente até à recepção, Viviane permitiu que o choro emotivo se manifestasse quando ela viu os dois amantes correrem um em direção ao outro depois de semanas de distanciamento e incerteza. Emocionou-se por, dentro de si, reconhecer que na vida nada importa mais do que o verdadeiro amor que podemos sentir por alguém.

(Conto por @Amilton.Jnior)