MENINA BRISA (Num Lugar entre Duas Vidas)
Me lembro que era um sábado. Não, eu não lembro… Mas… É bem provável. Pois estávamos todas nós juntas: eu, minha mãe, minhas duas irmãs… e isso só era possível aos sábados. Eu estudava de manhã e cursava a 3a série, fazia Karatê e reforços de Português e Matemática nas segundas e quartas-feiras. Ângela cursava a 5a série ainda mesclando com aulas de inglês e um curso de pintura. E Francisca que a gente chamava “carinhosamente” de “Franschata”, ou “Franschispa”, por ser mais velha, adolescente e nunca querer brincar com a gente… Estava prestes a fazer vestibular. Ela sempre dizia que ia conosco, pois era forçada e não tinha escolha…mas eu nunca vi a mamãe dizer coisas como: “você vai ter que ir se nãão…”, ou “você vai porque eu tô mandando!”, não era bem o modus operandi da Dona Mercedes, apesar de ser um Modus operandi de praticamente todas as mães de minhas amigas. Hum… Falei demais? Sim, SIM. Só pra justificar que era APENAS um sábado… Eu sei. Talvez esteja ganhando tempo… escrevendo palavras, criando coragem e certeza. Ainda decidindo se vou mesmo, contar o que aconteceu comigo.
Eu era muito agitada e extremamente encapetada. Era magérrima e extremamente ágil devido ao Karatê e também a – quase total – ausência de medo (e de peso). Se estivesse me divertindo tudo perdia limites. Avistei uma daquelas barras em fileiras… barras altas que ficavam um pouquinho mais distante dos brinquedos do parque justamente por NÃO SEREM brinquedos… Eram feitas para exercícios físicos, dos mais pesados! Apenas homens e mulheres muito fortes chegavam ali e conseguiam fazer geralmente séries de 10 a 20 flexões… E olhe lá! E lá estava eu… sendo eu. Sendo “A” Brisa (muito prazer!). “O nome da Brisa, foi uma verdadeira ironia…”. Era o que dizia minha mãe… E eu estava entediada e sem supervisão… E verdade seja dita: alguém sempre acabava machucado, quando isso acontecia. Sempre era eu que inventava alguma brincadeira que provavelmente terminaria mal pra mim ou pra alguém que se machucava por minha culpa. Corri e comecei a escalar a barra, ela era alta… Muito mais do que parecia ser de longe. E estava toda enferrujada! Não estava firme… Pulando eu não conseguiria alcançá-la. Então fui escalando como uma macaquinha… cheguei no topo e dei um grito de guerra, gargalhando alguma coisa como “CONSE-GUIII, O MUNDO É MEUUU!!” e a praça inteira gritou em minha direção num coro desesperado. Minhas irmãs correram e minha direção e minha mãe tapou os olhos gritando. Enquanto eu… não conseguia parar de rir e de fazer dancinhas pirracentas, enquanto andava por cima as barras.
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Um homem me segurou por trás, me afastando das barras e me pondo no chão… Sua mão era gelada, mas era fofa como um travesseiro… Ele era bem alto. Me pôs no chão e me olhou sorrindo. Se agachou até mim.
– Nossa! Você assustou todo mundo, hein princesinha?
– Ahahaha… !! Mas… puxa… agora fiquei tão cansada…eu queria dormir um pouco.
– Você não pode dormir agora. Sente um pouco aqui, ajude um senhor a se sentar e jogar um pouco de conversa fora, sim? Você deve ter muitas histórias pra contar, Brisa!
– Não me lembro deste banco aqui… – Resmunguei esfregando os olhos de sono.
O banco estava próximo do brinquedo… branco, com plantas que cresciam criando contornos entre os braços e espaços entre uma madeira e outra.
– Não lembro desse banco e… uau! Foi tão difícil subir e eu nem mesmo suei! E nem sujei o vestido!
– Você presta MESMO atenção em sua volta, amiguinha?? Observa as pessoas? Ou você prefere sempre ficar correndo e brincando?
– AHH… EU PREFIRO BRINCAR… UÉÉ… Hahah…
O homem sorria com calma e muita ternura no olhar… Era um sujeito moreno com cabelos enrolados, totalmente brancos. Estava fazendo muito frio e ele nem se importava em pôr um casaco. Usava uma calça longa e uma blusa azul clara muito fina, estava descalço (achei isso esquisito) e levava consigo uma bengala que era, segundo ele mesmo: “desnecessária, mas uso assim mesmo… usei por tanto tempo que já me acostumei.”.
– Sabe. Menina Brisa, na vida a gente sempre se arrisca muito… É BOM, se arriscar. Mas… não pode se arriscar TAAANTO, sabe… E nem o tempo todo, também! Sem pensar nas consequências…Me entende? Isso às vezes acaba dando trabalho, sabe? Pra sua mãe, suas irmãs… Pro seu Anjinho da guarda… – Eu estava me sentindo extremamente cansada, sem explicação… e sentia como se já o conhecesse. Então deitei com a cabeça em seu ombro. O homem pôs-se cantarolar uma música numa língua que eu não conhecia. Sua voz parecia ter eco… Imaginei que todos na praça estivessem ouvindo e por isso que fazia tanto silêncio. Era maravilhoso de se escutar.
Ele continuou falando: – Às vezes… sair de nós mesmos e daquilo que nos diverte… É muito importante também! É importante pensar nas pessoas que a gente ama. Às vezes a gente faz com que elas sofram e a gente nem percebe…
– Porque diz isso…? A mamãe se chateou comigo? E… desculpe se vou ser meio grossa, mas… eu conheço você?
– Ora, mas é claro que me conhece… Eu sou um anjo amigo seu… Sou o SEU anjo. Te conheci antes mesmo que sua própria mamãe. Tenho muitos anos de vida e moro no que vocês aqui chamam de “Céu”… Mas eu trabalho aqui, com VOCÊ. Humildemente posso falar que sei um pouquinho mais do que você, sobre essa vida… Sabe, Menina Brisa? A gente sempre é maravilhosamente talentoso em algumas coisas, mas em outras… NEM UM POUCO. Por exemplo: Sua irmã mais velha…
– A “Franchispa”!
– Sim, hehehe. A “Franchispa” é ótima nos estudos, uma garota muito concentrada. Não é verdade?
– humrum…
– Mas ela não tem coragem de se arriscar… não como você tem. Ela pensa demais antes de agir e geralmente pessoas assim, perdem uma oportunidade ou outra… Ela não tem a coragem que você teve hoje. Você é muito destemida! Mas hoje o que você fez com você e com sua família… Foi inconsequente demais, princesa… Quase que eu não consigo te salvar desta vez…
– O que você quer dizer? Elas estão bem ali… UÉ CADE MINHA MÃE? MÃE? MÃÃÃE!!!
Tentei me levantar e sair correndo mas senti meu corpo paralisado na cadeira, e percebi que era Ele quem estava me fazendo ficar. O homem se levantou…e repente, grandes asas que se pareciam asas de uma pombo gigante, brotaram de suas costas. Foi só então que passei a acreditar no que ele dizia. “Segure em mim. Vamos dar um passeio, você vai gostar!” - Levantamos voo pela cidade, eu montada nas costas dele, ia gargalhando e gritando o tempo inteiro. Feliz pela aventura, feliz por ser amiga de um anjo com asas SUPER MANEIRAS. Aquilo parecia ser o dia mais feliz de minha vida… mas… não era exatamente assim.
Aterrissamos em frente a porta de um hospital. Eu olhei em volta… Muita gente machucada entrando. Muitos gritos e muito choro… muito sangue. Tentei tapar os olhos nas asas do meu amigo. Mas ele me deu um leve empurrão, dizendo que eu precisava ver como era pra aquelas famílias, encontrar alguém a quem ame muito, lá dentro… Como era sofrido pra eles. Me agachei no chão e pus a chorar levando as mãos ao rosto. Sem saber se chorava pelo que via ou por ter sido empurrada pelo meu anjo, que não se importava nem um pouco com minha birra.
– Ei, Brisa, olhe!! Veja quem está ali.
Era minha mãe e minhas irmãs tentando – aos prantos – se aproximar duma pequena maca, levada por paramédicos que iam entregando-me a enfermeiros apressados na porta do hospital. – Brisa, aquela menina… é VOCÊ! - Disse o anjo. E eu, como seu anjo da guarda… fiz de tudo pra você ficar viva… Pois você merece. Eu pedi uma chance e nos deram… você é um docinho de criança. Deus ama MUITO você… E tem um futuro BRILHANTE pela frente! Mas… na vida a gente não pode fazer o que quer o tempo todo, apenas por QUERER fazer ou por achar que PODE fazer. Pois tudo que você faz… sempre afetará a vida de alguém, pro bem ou por mal. Principalmente as pessoas mais queridas… É assim que a humanidade funciona e o mundo gira. Deus nos deu livre arbítrio. Mas a sua maior benção, mesmo… foi essa habilidade de pensar sobre “como as nossas decisões podem afetar a vida das pessoas que amamos… e a partir desse conhecimento: como agir?”.
Neste momento eu já não chorava mais. Apenas olhava ele consentindo com a cabeça. Meu anjinho mantinha a sua ternura nos olhos doces que jamais esquecerei. E sei também que dificilmente alguém acreditará em minha história, mesmo agora… Já adulta. Mas, não me importo… Então… ele se ajoelhou em minha frente, de olhos fechados… Levantou as duas mãos para o céu, sorrindo. Uma espécie de vaga-lume dourado que emitia uma luz forte como se fosse uma estrelinha, veio voando em direção do meu rosto… – Não tenha medo, Brisa… Esta é sua centelha. Agora ela quer voltar pra você… Hoje mais cedo, você deu um baita susto nela! E ela acabou fugindo! Segure-a! - A luz veio em minha direção enquanto o anjo ia andando, indo embora calmamente. Quando segurei o pequeno vaga-lume… Uma luz enorme se fez e mais uma vez… tive que fechar os olhos…
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Acordei na cama do hospital com um monte de gente me encarando, chorando e sorrindo. O médico me fez algumas perguntas, me examinou e…ao que tudo indicava, eu estava ótima. Olhei em volta e vi vários buquês de flores que muitas pessoas queridas deixaram pra mim. Lembrei de meu anjo… me alertando a pensar um pouco mais, nestas pessoas… Minha mãe e minhas irmãs quando me viram ali, olhando em volta e sorrindo, praticamente se deitaram na maca em cima de mim, aos prantos.
Ficaríamos bem, afinal. Estávamos bem…
– Que susto eu te dei, né… mãe? – Perguntei, envergonhada.
– Não se preocupe com isso, meu amor… Foi um acidente! Você escorregou pra trás e caiu!
– Prometo que a partir de hoje… SEMPRE que eu pensar numa brincadeira, que seja assim… muito, muito, MUITO DIVERTIDA… Eu vou perguntar o que SENHORA acha primeiro! – Todos na sala riram. “Fran-chispa” acariciava meus cabelos com o rosto vermelho de tanto chorar… mas estava sorrindo. Ângela deu um grito “Será que a Brisa pode comer um super-hambúrguer??!!”, e todos em coro gritaram de volta: “NÃÃÃO…”.
– Filhota, você tem um ótimo anjo da guarda, viu? – Minha mãe completou, sorrindo, enquanto acariciava meu rosto.
– AHH, hahaha… Vocês não fazem ideia!