Cheiro de chuva
A chuva de verão chega com intensidade nunca vista, sem avisar, inesperada, com trovões ronquejando ao longe para logo depois estrondear em alto e bom som balançando as paredes e os corações assustados - a chuva está vindo pessoal! De hoje não passa dizem alguns enquanto outros resistem em acreditar – mas desta vez ela veio trazendo sobressalto, mas acima de tudo esperança de dias melhores. E quando ela vem reaviva de imediato a lembrança gostosa do cheiro de chuva, da água escorregando sobre o solo desidratado e do mato verde se espalhando sobre a terra tórrida e amarronzada. Alegres, mas ainda desconfiados e tímidos, os moradores vivenciam aquele momento com um misto de susto e alívio para logo em seguida se imaginar no meio do aguaceiro correndo, rindo, gritando, chorando de felicidade, numa explosão de contentamento incomensurável.
A chuva rogada acontece após meses e meses de seca, de calor escaldante e de labaredas trêmulas que saem da terra nua trazendo consigo uma sensação incômoda de torpor e tristeza. Quando virá a chuva, meu Deus? Perguntam os moradores que rezam para Jesus, Maria e todos os Santos ajoelhados nos bancos da igreja ou sobre caroços de milho na varanda das casas de taipa. Até a pouca vegetação dos arredores, esturricada e quase sem folhas parece agradecer quando o vento que antecede o pé-d'água inicia sua trajetória fazendo vibrar as poucas folhas ainda verdes.
A chuva que ameaça cair vai muito além de só molhar o chão ou encher os tanques ou fazer correr os riachos temporários; na verdade, ela sinaliza um hiato, que seja, sem as agruras da seca por meses a fio. Nos momentos de trovoadas nada é comparável à escuridão repentina em pleno dia, ao cheiro de terra molhada, à visão da água entrando pelas portas e telhado, do corre-corre frenético com pano de chão, baldes e rodos para debelar as goteiras e empurrar para fora visitante tão ansiosamente aguardada e que insiste em entrar casa adentro à revelia de seus donos. Instantes sagrados e vividos com tanta intensidade que nem mesmo o ronco ameaçador dos trovões e o brilho incandescente dos raios cortando o céu são capazes de tirar a sensação de leveza misturada com paz e alegria numa receita inigualável de prazer.
Toda comunidade entra em transe absoluto com o aroma que se esvai da terra entrando pelas narinas e permitindo ao olfato experimentar uma sensação única. Não só o olfato, mas todos os sentidos ficam a mil e interligados explodindo de uma só vez pelo corpo e pela mente. No início do temporal, meio que envergonhado, põe-se a mão por entre a abertura das janelas para sentir as gotas tateando a pele, leve de início, quase a acariciando e, logo depois mais forte e intensa machucando as veias escondidas no braço. Também o som que vem com os trovões é gostoso de se ouvir, no começo suave para em seguida atingir o ápice do deleite. Ao rasgar o céu os raios estimulam a retina ao nível máximo clareando a nuvens escuras e o paladar, como não? Também fica aguçado pela alegria do momento.
As crianças vibram e ficam difíceis de controlar. Não há obediência, apesar dos reclamos. A excitação é maior que o medo do castigo que, sabe-se de antemão, não virá. Correm para as bicas que saem dos telhados em empurra, empurra alvoroçado pelo privilégio de se banhar naquela fonte dos céus. Todos desejam sentir impacto da coluna d’água caindo das cumeeiras sobre dorso, os salpicos das gotas de chuva sobre o corpo e, até mesmo, a sensação incômoda da roupa molhada e dos arrepios de frio. E ainda tem as poças de água que se formam nos buracos de terra batida nas quais o esfacelamento e gritos de contentamento eclodem aos brados dos nossos rebeldes de ocasião.
Ainda lembro com saudade dos momentos de gozo durante as trombas d’água e de vivenciar a esperança brotando da face mirrada das pessoas, seja em prece ou em agradecimento à mãe natureza acreditando, piamente, que a chuva tarda, mas não falta. Sinto muita saudade do cheiro “bom” de chuva que emana da terra ressequida ao ser molhada mas lembro, também, com pesar, de tudo que a seca representa para as populações que sofrem ano após ano com a falta de chuva e com as promessas não cumpridas dos gestores públicos e/ou privados do nosso País.
P.S. Pode parecer inadequado falar com alegria de aguaceiros num momento em que acontecem tragédias provocadas pelas chuvas nesse início de 2022 no Sul da Bahia, Minas Gerais e em Petrópolis com dezenas de mortes e de pessoas desabrigadas. No entanto, vivemos em um País de dimensões continentais onde tragédias de origens antagônicas “longos períodos de seca e chuvas em excesso”, sobrevivem ao descompromisso dos nossos governantes e ganham cada vez mais força com alterações climáticas em todo planeta, cujas causas não são apenas da responsabilidade do poder público, mas nossa também. E como são.