A razão e a morte
Em um dia mortiço, cansado e cinzento, fez-se esta indagação: “por que não hoje? ” Era incapaz de dormir, seus tormentos adensavam-se e já perdera a firmeza dos punhos e pernas. “Definitivamente, por que não? ”, pensou outra vez. “Será hoje, sim”.
Caminhava lentamente por ruas esguias, tendo por destino sua própria casa. Transeuntes passavam sem lhe dar muita atenção. Todos que via, sem exceções, pareciam-lhe hostis e cruéis, embora não o fossem totalmente. Um vento frio cortava suas carnes e penetrava seus ossos, mas sentia-se, de certa forma, imperturbável, como um homem grave e austero que acaba de tomar uma decisão grave e austera. E seria realmente cordato? Ou seria apenas mais um “homem ridículo”? Não, não. Era uma decisão certamente prudente e sensata. Ademais, vivera bem e felizmente, ao menos até onde pudera. Agora, longe de ser feliz, desenvolvera uma percepção mais apurada da realidade.
Antes, nada lhe era palpável. Em sua memória, uma vaga ideia de finitude se detinha, embora não a pudesse perceber totalmente. Vivia vigorosa e inevitavelmente, como se a morte, em essência, fosse distante aos vivos. Entretanto, o que definia a vida era a morte. Onde não houve a morte, não houve vida. Por conseguinte, morrer era um atributo de grande fortuna a alguns poucos. Desse modo, então, estabelecia-se uma contradição: mesmo que um grande tormento desolasse seus nervos e esfacelasse seus sentidos, ele ainda era um sortudo, justamente porque existiu e pôde sentir o que quer que fosse. Assim, mesmo o sofrimento era um fado improvável e soberbo. Sendo assim, deveria renunciar à dor e desabar deliberadamente sobre o esquecimento, mesmo levando em consideração as conclusões fornecidas pelo argumento?
“Sim, será hoje”, repetiu. Havia tomado uma razão fundada e bem assentada. Seu grande temor, na verdade, não era uma privação completa dos sentidos. Ele temia que houvesse algo. E se houvesse algo? “Não, nenhuma evidência sustenta qualquer linha de raciocínio semelhante. Simplesmente nenhuma. É improvável, altamente improvável”. De fato, era improvável, mas a dúvida ainda se retorcia nele como um desconfortável prurido. Seu pensamento era um tanto paradoxal. Onde grande parte das pessoas são aborrecidas por pensamentos histéricos, desesperados, sobre a tétrica possibilidade de ser apenas o que sentem momentaneamente conscientes e não existir nada mais, ele alimenta uma inquietação diametralmente oposta. A ideia de continuidade lhe é sombria.
“Não, não há continuidade. É improvável”.
Chegou à porta de sua casa. Por um momento, sentiu-se bem. Era como se já estivesse morto. Como se a decisão firme e resoluta de algo tão definitivo e, a si mesmo, monumental, houvesse lhe infundido a sensação prévia do que viria a ser o esquecimento. Não havia morte, não havia vida. Havia, entretanto, algo, e talvez fosse o desejo natural de conceder sentido e substância a um mistério tão comum e primitivo entre vivos e mortos.