O andarilho e o suicida
Numa noite destas… Mais que incomuns (e incerta)… Que o vento assombra, com sombrio anuncio de tempestade… E parece que as nossas sensibilidades transbordam, se tornando visíveis… Até demais!
Um andarilho… Que poderia ser qualquer um aqui (quem sabe eu, ou tu, ela ou ele, ah, com certeza ele… Ah, sei lá!). Um andarilho como nós, amantes da boa cultura e do excelente vinho… Nós, que levamos a vida, meio que na corda bamba… Às vezes caindo, ou melhor, muitas vezes caindo! Mas também levantando, e estudando, e lutando, e trabalhando, e adivinhem! No fim do dia, ainda encontrando tempo para sorrir, olhe só!
Pois bem, eis que nestas andanças da vida, o nosso andarilho (muito observador) avista, no alto de um prédio de muitos andares, alguém prestes a cometer o velho (e não tão bom) suicídio!
Sem pensar três vezes, o nosso herói percorre as escadas em segundos e logo fica frente a frente com o suicida! Pensando no máximo cuidado que deveria ter, pois uma palavra errada poderia despachar ainda mais depressa o suicida para a terra dos pés juntos, passou a observar, e a observar, e observou mais um pouco, e mais, e enquanto nosso herói observava do outro lado, o trágico homem que queria saltar, respondia com um olhar daqueles, bem arregalados!
(Momentos de Tensão)
Até que o andarilho resolveu quebrar o silêncio e disparou: – Você gosta das Letras?
Uma cara de surpresa e pasmo acompanhou o suicida, que retribuiu com força: – Que porra é essa? Letras?
Letras, meu amigo, você desconhece o mundo das Letras? (perguntou o andarilho)
– Claro que conheço, droga! (Disse meio tremulo e gaguejante o suicida, que continuou) Letras: A, B, C, D, E…
Balançou a cabeça de forma negativa e irônica o andarilho, ao mesmo tempo em que explicou ao suicida:
– As Letras, o mundo maravilhoso das Letras, meu caro, não é limitado apenas ao saber ler e escrever… O mundo das Letras está em cada canção ouvida ou cantada, em cada poesia recitada, artigo publicado, aula ministrada ou conteúdo refletido, constituição promulgada, cartaz de protesto na rua, discurso inflamado, e até mesmo no sentimento declarado, seja em carta, crônica ou num pequeno bilhete assinado ou anônimo…
– Letras! Como saberíamos a história de nossa mais antiga memória, desde os primeiros símbolos gravados nas cavernas até os mais eruditos pergaminhos religiosos, se não fossem as letras?
– Letras! Como conseguiríamos suportar viver, a difícil labuta do dia, ou o que seriam das românticas histórias de amor, ou até mesmo como poderíamos atravessar uma tormenta horrível de dor, se não tivéssemos as canções, que são construídas, desde as primeiras notas até os últimos arranjos, por causa delas, as nossas sinceras meninas: as letras!
– Letras! De Beethoven a Renato Russo! De César a Getúlio! Sócrates a Hegel! Pestalozzi a Paulo Freire! Shakespeare a Nelson Rodrigues! Eu a você…
O suicida, depois de um breve silêncio, comentou:
– Ótimo… Parabéns! Mas você acha mesmo que toda essa baboseira falastrona e sentimental vai me fazer desistir de pular?
O andarilho respirou fundo e emitiu o desabafo:
– Sinceramente? Não… Mas já me sinto bastante aliviado em ter lhe ensinado um pouco do fascinante mundo das letras! Pelo menos, agora, você já pode morrer (ou não), bem mais consciente, bem mais “letrado” digamos assim…
E com essa fala, o andarilho se despediu, dando de ombros e deixando um suicida: completamente sozinho, altamente perplexo e o principal… Definitivamente mais pensativo!
Claucio Ciarlini (2013)
* Minha pequena homenagem ao Curso de Letras.